texto de João Paulo Barreto
Existem riscos em se assumir uma proposta de revisita a uma saga como a de “Mad Max”. E seu criador George Miller tem, obviamente, total ciência de tais riscos. Estes, por sua vez, estão centrados na possibilidade de se estragar uma franquia cujo filme-origem alcançou perfeição que poucas vezes uma sortuda audiência encontrou na ida ao cinema: um equilíbrio entre a sétima arte como entretenimento calcado na ação e no espetáculo visual bem como um roteiro inteligente levado à frente por atuações competentes. Apenas como ilustração, vale lembrar dois exemplos notórios desse tipo de cinema como uma ideia exata dessa junção de sucesso: a proposta de filme de super-herói apresentada por Christopher Nolan em “Batman – O Cavaleiro das Trevas” (2008); e “O Retorno do Rei” (2003), capítulo final da trilogia “O Senhor dos Anéis”, adaptação exitosa da obra de Tolkien trazida às telas por Peter Jackson.
Após retornar a esse universo com a indefectível obra-prima de 2015, “Mad Max – Estrada da Fúria”, o cineasta australiano George Miller não precisava provar mais nada. Afinal, o que encontramos com o filme estrelado por Charlize Theron e Tom Hardy foi exatamente a definição precisa do equilíbrio uníssono entre o espetáculo visual e a escrita citados acima. No entanto, ao retornar à wasteland da Austrália, já sabíamos quem era o Max Louco vivido por Hardy. Mas a curiosidade em sabermos mais da personagem de Theron, com seu braço mecânico, destreza ao volante e domínio brutal de sua autodefesa, fazia o espectador ansiar em conhecer a fundo Furiosa e todos os seus traumas pregressos que a levaram até aquele momento. E é justamente como esse complemento à perfeição cinematográfica de nove anos atrás que “Furiosa – Uma Saga Mad Max” (“Furiosa: A Mad Max Saga”, 2024) nos leva a mergulhar nessa trajetória de traumas da jovem que desafiou tiranos em busca de vingança.
Miller, que volta a assinar o roteiro junto ao parceiro Nick Lathouris, expõe logo de cara vários de seus elementos marcantes, como as cores saturadas do árido deserto australiano, ambiente cujo calor e secura se tornam palpáveis para o espectador, e que, em uma transição de encher os olhos durante uma perseguição, se tornam frias e ásperas diante do adentrar no azul da noite (méritos para o diretor de fotografia, Simon Duggan). Já em seu desenho de som, o rasgar dos motores que define a franquia se faz presente logo na apresentação de seu logo. Mas é no acelerar de motos a trilhar dunas e penhascos em sua sequência de abertura que somos levados a mergulhar naquele ambiente catártico de fumaça, sangue e combustível inflamável.
Neste processo, surge um convite a se conhecer novos personagens e criaturas daquele universo, além de se reencontrar outros já conhecidos. Dentre os novos, Dr. Dementus, figura que ilustra com exatidão um mescla do que há de patético, dissimulado e da brutalidade oriunda da tirania, é daquelas oportunidades que qualquer ator sonha em agarrar. Por sorte, Chris Hemsworth, felizmente, percebeu sua chance. Emulando um sotaque australiano caipira (que entrega sua existência pregressa antes o caos) em uma capacidade eloquente de domínio de fracos, a presença de Dementus em cena denota a ideia do oportunista que soube o momento exato em se utilizar da sua capacidade de conquistar seguidores para sobressair-se em domínio de massas desnorteadas.
No encontro dele com outra figura já conhecida pelo espectador, Immortan Joe, cuja presença divina controla o ímpeto suicida de vários outros soldados a tê-lo como messias, percebe-se a intenção que beira o satírico de seu personagem e da inserção de George Miller visando justificar sua existência em uma reflexão centrada justamente na ideia do poder de influenciar como um elemento precioso nas mãos de quem almeja controle. Aqui, o encontro de ambos gera algo que vai bem além de uma simples análise científica, mostrando como tal capacidade de dominação mental e messiânica pode significar a concretização de algo radical e irracional. Os abutres, sim, têm fome e vão encontrar seu saciar em uma pretensa fé cega e suicida.
E sendo um filme prequel cujo original tinha alguém do porte talentoso de Charlize Theron, George Miller precisava de uma atriz à altura. Por sorte, a estrela em ascensão demonstrada por Anya Taylor-Joy, que, desde 2015 com “A Bruxa”, jovem clássico de Robert Eggers, demonstra seu talento de modo exponencial, não decepcionou. Com sua Furiosa, a jovem atriz de 28 anos traz para o protagonismo da obra uma intensidade brutal e necessária, encontrando na proposta de realismo e violência do seu diretor uma sintonia precisa.
Em sua presença, com sequências que mostram o apuro técnico de George Miller (com quase 80 anos de idade!) a criar momentos de tensão em alta velocidade, Joy prova estar à altura de sua predecessora. São cenas, por exemplo, como a que envolve uma fuga por entre as engrenagens de um caminhão em movimento ou quando sua vingança finalmente se aproxima. Aqui, o simbolismo de seu último ato perante aquele que causou toda sua tragédia de vida rima com o aspecto lendário e mítico que sua trajetória vai alcançar.
E Miller e Lathouris criam com exatidão para o espectador essa simbologia através do ato final de Furiosa em utilizar a brutalidade e a parcimônia daquele momento para saborear de forma vingativa a desgraça alheia de quem quase lhe destruiu. E de maneira a emular exatamente a criação desse mito originário que somente lendas como ela possuem, o modo como seu regozijo vingativo é alcançado se mistura em várias versões apresentadas de maneiras diversas ao espectador. Mas, o que é verdade? O que é mito? O que é lenda?
Ao final, a constatação mais exata é que é disso que são feitos os épicos.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde, de Salvador.