texto de Davi Caro
Qualquer espectador menos atento poderia, nos primeiros instantes de “Puan”, pensar estar assistindo a um documentário. Filme argentino de 2023 disponível para o Brasil via Amazon Prime, “Puan”, escrito e dirigido pela dupla María Alche e Benjamin Naishtat, é atualmente a produção mais assistida no país vizinho, e não é preciso se embrenhar muito em seus 109 minutos de duração para que se tenha uma ideia do porquê: apresentando uma narrativa que, em momentos, esbarra no cômico, ainda que flertando com as melancólicas realidades do dia-a-dia, “Puan” aborda com espontaneidade o tipo de realidade com a qual tantos, por todos os cantos da América Latina, infelizmente já conhecem como um fato perpétuo.
Marcelo Pena (Marcelo Subiotto) é um professor universitário de Filosofia que pertence ao corpo docente da Universidade Pública de Buenos Aires, e cujo mundo sofre um verdadeiro baque com a repentina morte de seu mentor, e figura maior do departamento pelo qual leciona. Sua vida familiar, a exemplo de muitos de seus conterrâneos e colegas de profissão, consiste em caminhar a tênue linha da instabilidade econômica pelo qual o país vive, no qual o pagamento de bolsas de estudo e salários aos professores é uma constante incerteza, na busca por manter um padrão no mínimo decente de vida. Sua esposa, Vicky (Mara Bestelli), é uma determinada militante feminista que busca apoiar e motivar o marido, segurando as pontas na criação do filho, Manolo (Gaspar Offhenden).
A já frágil luta diária, que inclui tanto aulas particulares à uma abastada anciã (Zulema Galperin) quanto nas regiões periféricas da capital do país, encontra um novo desafio na forma do antigo colega e também professor Rafael Sujarchuk (Leonardo Sbaraglia), um completo fotonegativo de Pena recém-chegado da Europa, que é uma figura carismática, articulada, charmosa e bem sucedida, facilmente visto em notícias graças a seu romance com uma atriz famosa (Lali Esposito). Seu retorno, inicialmente visto com ceticismo e desconfiança pelos outros membros da universidade, acaba envolvendo mesmo os mais reticentes, e não tarda para que Sujarchuk comece a atrair a atenção de alunos com seu discurso apaixonante e moderno, tão contrastante com o estilo mais ortodoxo de Marcelo. E, quando a abertura da vaga deixada pelo falecido mentor deste último se torna um alvo para seu oponente teórico, o veterano começa a questionar seus valores a fim de se provar digno de ocupar o cargo, à medida que novos desafios se impõem e colocam sua profissão e sua vocação em risco.
“Puan” é, antes de mais nada, um filme bastante imersivo em sua simplicidade. As passagens que se dão em salas de aula e nos demais ambientes da universidade alimentam a sensação de contemporaneidade (olhos mais treinados podem inclusive enxergar o rosto do presidente Lula estampado em cartazes, por exemplo) ao mesmo tempo que conversam com o restante da trama e justificam a persistente ideia de preservação da própria história através da memória, tão inerente ao povo argentino. A sonorização da produção também merece destaque, ainda que esparsa – principalmente no uso da canção “Dos Cero Uno (Transas)”, de Charly García, tanto em sua abertura quanto em seu desfecho – ajudando a reforçar o ciclo narrativo do protagonista e traçando uma linha conceitual que reflete os avanços e retrocessos de um país que segue prometendo muito e caindo em impasses perpétuos.
Mas é claro que o elenco é o segredo por trás do bem amarrado enredo: Marcelo Subiotto possui uma energia intrigante no papel do protagonista com o qual divide o primeiro nome. Seu desencaixe em muitas das situações nas quais seu personagem se encontra contagia em sua estranheza, mesmo em momentos mais introspectivos. E a dinâmica entre ele e a Vicky de Mara Bestelli funciona de forma ímpar, apesar de os dois demorarem para contracenar de fato, a princípio. Do outro lado deste ringue ideológico, o professor Sujarchuk vivido por Leonardo Sbaraglia transborda magnetismo, inicialmente como uma figura inconveniente e pretensiosa, e cativa o espectador à medida que o ambiente mostrado, e os coadjuvantes, passam a acomodá-lo melhor. Já a atuação de seu par romântico, interpretado pela popstar argentina Lali Esposito, se beneficia de apenas uma cena – ainda que seja mais presente através de constantes, e propositalmente intrusivas, menções. Praticamente o oposto do garoto Gaspar Offhanden, que já havia surpreendido ao dar vida a um jovem Fito Paez (na série “El Amor Despues Del Amor”, da Netflix) e cujo papel aqui como o filho do casal central à trama ajuda a sublinhar a tensão da situação vivida. Apesar de menos focalizado, o restante do elenco passa longe de ser inexpressivo, ajudando a externalizar os ideais centrados pelos diretores Alche e Naishtat.
O fato de “Puan” ser o filme mais assistido na Argentina no momento atual não passa nem perto de ser uma surpresa. Atravessando atualmente uma maré de medidas atrozes escondidas atrás de uma ilusão de melhoria, onde o governo de Javier Milei segue podando o poder de compra dos hermanos e os incentivos à cultura e à educação seguem sendo vítimas de um processo cruel de cortes orçamentários, é no mínimo revelador que um filme que lida com tais dilemas chame tanto a atenção – apesar de trazer em seu roteiro boas doses de humor e leveza pontual. Com um desfecho que esclarece a determinação em lutar pelo patrimônio intelectual, social e histórico – ainda que em contraponto com uma passagem mais delicada, e pra lá de reflexiva – “Puan” certamente se faz merecedor de um lugar em meio às melhores, e mais significativas, produções cinematográficas latino-americanas da última década. Para chorar de gargalhar e de emoção, e às vezes sem saber distinguir uma emoção da outra, mas apenas para sentir.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.