Goiânia Noise Festival 2024: Entre clichês, fusões e muito stoner, veteranas Devotos e Nação Zumbi se destacam no primeiro dia

texto por Bruno Capelas
fotos por @cinemargherito

Saiba como foi o dia 2 / dia 3

No princípio, era o rock – pelo menos, no princípio dos festivais independentes brasileiros, muitos deles surgidos em meados da década de 1990. A esta veterana classe pertence honrosamente o Goiânia Noise Festival, realizado desde 1995 na cidade que lhe dá o nome. Não fosse a pandemia, estaríamos comemorando em 2024 a trigésima edição do evento, que ficou dois anos (2020 e 2021) fora do ar. Mas, enquanto muitos de seus pares e influenciados passaram de reuniões guitarreiras para mostruários da diversidade da música independente nacional, abraçando entre erros e acerts gêneros como a MPB e o rap, o Goiânia Noise encerra sua terceira década inequivocadamente como um festival de rock – ou, como o próprio festival se intitula, “a grande festa do rock independente brasileiro”.

Quem quisesse disputar essa discussão perderia seus primeiros argumentos ao adentrar o Palácio da Música do espacial Centro Cultural Oscar Niemeyer na sexta-feira, 12 de abril, pontualmente às 18h. Enquanto o sol se punha lá fora no Planalto Central, no luxuoso teatro a banda local Gladio Tempus abria os trabalhos da primeira noite do Goiânia Noise. Com dois integrantes vestindo camisetas do Motorhead (e torcida uniformizada na plateia), o grupo versou pelos clichês do metal, com direito a muitos gritos, letras em inglês razoavelmente incompreensíveis e claro, morte, sangue e outros símbolos trevosos. É um tipo de som que há muito já não frequenta certos festivais outrora conhecidos pelas guitarras, mas que deu suas caras por meia hora em Goiânia – o período de 30 minutos, aliás, é padrão no festival para quase todas as bandas que se intercalam nos dois palcos, com exceção de dois ou três headliners por noite.

Gladio Tempus

Para dar início ao palco da Esplanada, uma tenda colocada no piso térreo do Centro Cultural Oscar Niemeyer, a missão ficou com a Cabrosa, de um som pesado situado na virada dos anos 1990 pros 2000. Trafegando entre o new metal e o hardcore, o quarteto trouxe canções de amor e letras engajadas sem sair do esperado (palavras-chave: “alienado”, “censurar”). A mensagem mais importante da banda – “sem anistia pra golpista” – veio numa faixa estendida sobre os amplificadores, dando início a um desfile de bandeiras empunhadas no festival.

Cabrosa

Uma das mais populares foi a bandeira palestina, hasteada pela primeira vez na noite no show do Black Lines, que entrou no palco provocando Elon Musk (“Fio de uma égua! Cadê a Starlink, tá aqui pegando nóis?”). De vocação stoner, o trio goiano comemora 10 anos em 2024 e prometeu, de maneira discreta, um disco novo pro fim do ano. O primeiro spoiler veio no fim do show, com “That’s An Obscurity”, uma pedrada de 10 minutos capaz de dividir opiniões. De um lado, a faixa que deve chegar às plataformas no fim do mês tem bons trechos viajandões. Do outro, porém, lembra aquela velha piada de um amigo sobre bandas stoner: “parece que quem está no palco socando os instrumentos está se divertindo mais que quem está na plateia”.

Black Lines

Viajante também foi o Urumbeta do Espaço, também de Goiás, alçando voo pela superfície do Centro Cultural Oscar Niemeyer. Aproveitando-se do fato que as construções projetadas pelo arquiteto comunista por vezes se assemelham a discos voadores, o quarteto instrumental capitaneado pelo tecladista Zó Dias enveredou por paragens que ora soavam post-rock, ora lembravam o rock progressivo ou se encostaram no math rock, debaixo de muita fumaça (de gelo seco, que fique bem claro). Aliens, baby, aliens: eu quero acreditar.

Urumbeta do Espaço

Primeira banda a conseguir se distanciar de maneira original dos clichês do rrrrock, o Mundhumano fez um dos slots mais interessantes da noite no palco do Palácio da Música, inserido num subsolo do Centro Cultural. Parte do mérito se deve à presença de palco da vocalista Nina Soldera, que pegou o público pela mão e o levou a caminhar pela combinação de guitarras pesadas, flauta transversal, percussão e sonoridades como ijexá, samba ou cumbia. Destaque ainda para o multinstrumentista Pedro Verano, que, ao dominar diversos instrumentos, contribuiu para ajudar a banda a sair do esquema clássico guitarra-violão-baixo-bateria.

Mundhumano

De volta à superfície, o Terra Cabula manteve a energia lá no alto desde a abertura, com as interessantes faixas “Mulher Demônia” e “Ewa”. Assim como o Mundhumano, o grupo traz raízes da cultura popular brasileira para estabelecer seu som balançado e intenso – e não à toa ambos foram escalados na mesma noite da Nação Zumbi. Ambos trazem seu DNA a lição aprendida que a mistura de guitarras estrondosas com o que é de nosso chão, lama ou terra pode servir como antídoto para a mesmice do rock mais convencional, cheio de decalques. Vale a pena ficar de olho no trabalho do vocalista Vinicius Bolívar, que aproveitou o público já crescente para botar a tenda da Esplanada pra dançar.

Terra Cabula

1-2-3-4: “essa é para as sapatas!”. Com apenas uma frase, é fácil descobrir qual era a bandeira no Palácio da Música durante o show do quarteto paulistano The Mönic: a do arco-íris, claro. Pela terceira vez em Goiânia, o grupo faz aquele hardcore/pop-punk simples, mas eficiente, com canções cheias de coros fáceis de aprender. A interação com a plateia é outro ponto alto – e chegou ao ápice quando a guitarrista Dani Buarque convidou uma fã da plateia para assumir seu instrumento, enquanto ela descia à pista para invocar uma roda de pogo (tarefa difícil numa pista cheia de degraus). “Cadê as mina? Todos os bagunceiros aqui pra frente!”, conclamava Buarque, em claro exemplo do rock na era da interatividade.

The Mönic

Na sequência, foi a vez de testemunhar um verdadeiro rolo compressor em Goiânia: os Devotos. Fazendo a conexão entre hardcore e embolada, Canibal (baixo e voz) comandava a massa e trazia balanço para uma tenda já bastante cheia, enquanto Neilton (guitarra) e Celo (bateria) colocavam muita lenha pra queimar. Entre mensagens pedindo por cultura e denunciando violência policial e “fé demais que deixa doente”, o grupo fez uma passagem tão veloz quanto impactante – e abriu espaço para uma roda só de mulheres na indefectível “Roda Punk”. Pra fechar, ainda deu tempo de “Pressa de Vencer” e o hino que marca quase quatro décadas de banda, desde a origem lá no Alto José do Pinho: “Punk Rock Hardcore”. Foi rápido, mas foi do caralho.

Devotos

Se Carlos Drummond de Andrade fosse goianiense, provavelmente diria que tinha um stoner no meio do caminho – afinal, bandas do estilo parecem brotar do asfalto em Goiânia. Mas dentre todas elas, os veteranos do Mechanics talvez mereçam uma atenção especial. Completando 30 anos de carreira, em franca sincronia com o Goiânia Noise, o grupo fez um show interessante no palco do Palácio da Música, muito em graças (ou a despeito) da presença do vocalista Márcio Jr.. Cheio de marra, o frontman do grupo pregou contra o fascismo e a burrice, disse que “30 anos de sucesso é moleza, quero ver é 30 anos de fracasso” e até brincou com quem estava sendo apresentado naquele instante a uma das instituições do Noise. “Quem nunca viu o Mechanics? Cês eram felizes e não sabiam…”. Ou não, já dizia Walter Franco.

Mechanics

Também veteranos, os gaúchos do Krisiun atraíram bom público de camisas-pretas à tenda, interessados nas décadas de death metal que o trio de irmãos Camargo-Koslene tem à disposição. Durante o show, um amigo levantou questões mais “psicanalíticas”, por assim dizer: “eu queria mesmo era conhecer a mãe desses três”. Filosofias e psicologias à parte, para quem não estava afeito às porradas cavalares do Krisiun, foi também a chance de uma pausa rápida para reabastecer. De um lado, com um chope Pilsen da cervejaria local Asturia (R$ 10, 300 ml); do outro, com um hambúrguer do Cão Véio, franquia criada pelo chefe Henrique Fogaça e recém-chegada à capital goiana (R$ 32, com pão-carne-queijo-bacon e molho BBQ, mas pequeno para a fome deste repórter).

Krisiun

Em meio à digestão, já ficava mais difícil transitar pelo Centro Cultural Oscar Niemeyer. Pela primeira vez no festival, o Palácio da Música ficava repleto de gente, desta vez interessada em ver a despedida de uma banda mais marcantes de sua geração em cima de um palco: a Francisco el Hombre. Desde o primeiro instante em que se põe sob a ribalta, o grupo já tem o público na mão – e sabe bem o que fazer em termos instrumentais e performáticos para carregar os presentes, pesando forte a mão no aspecto percussivo. Não é um método novo: há muito tempo já se sabe que existe forte poder em envolver o corpo numa dança enquanto se discutem ideias. Mas, a despeito de uma canção-hino como “Triste, Louca ou Má”, é salutar questinar a profundidade geral dessa experiência ao se ouvir gritos de “estátua”, “arrasta pra cá, arrasta para lá” e empinadas de quadril.

Francisco el Hombre

De repente, vem à mente uma comparação heterodoxa. Se nos anos 1990 o Padre Marcelo Rossi evangelizava com dancinhas abraçando a “aeróbica do senhor”, a Francisco el Hombre faz a “aeróbica do CA”. Ambos pregam para os convertidos: a certo ponto, Mateo Piracés-Ugarte é ovacionado ao dizer que “fazemos parte da onda que derrota a extrema direita na América Latina”, mas… faltou ler as manchetes dos últimos dias para desconfiar desse otimismo com pitadinhas messiânicas. Messianismo, aliás, rima com Dom Sebastião, em um truque antigo mas bastante popular nos nossos dias. Sem nem se despedir direito dos palcos, a Francisco diz que já joga “sementes para o futuro”, quase negando o princípio básico de que “ir é necessário para voltar”, como diria Gilberto Gil. Fosse uma veterana banda pensando na aposentadoria, poderia até ser compreensível. Mas para um grupo que se diz tão contemporâneo, o público merecia mais do que uma promessa vazia na hora do adeus.

Um ano antes da primeira edição do Goiânia Noise, sinais muito especiais foram emitidos na música brasileira a partir de uma antena em Pernambuco. Quem conhece o mangue sabe quem tá chegando: no mês em que “Da Lama ao Caos” completa 30 anos, coube à Nação Zumbi a tarefa de encerrar a primeira noite do festival goiano. De canto de boca, pode se até discutir se esta Nação Zumbi faça jus ao nome que carrega: daquela lama original, apenas três integrantes ainda se mantém na formação do grupo, em meio a amigos de estrada e vida. Em um primeiro momento, é fácil tomar esta como uma iteração menos interesante da banda. O grupo, por sua vez, sobe ao palco sem facilitar, fugindo inicialmente da rota dos hits e deixando o público mais em posição de reverência do que de apreciação.

Nação Zumbi

É também o momento em que muita gente pode considerar que Lúcio Maia faz falta nas guitarras: seu substituto, Neilton (o mesmo do Devotos, cumprindo evidente dupla jornada), é um instrumentista mais quadrado do que o psicodélico Maia. Mas, à medida que a apresentação se desenrola, seu peso traz características interessantes para o som da banda, como se pode na balada “Um Sonho” ou no indefectível número de “Quando A Maré Encher”, o maior caso de usucapião do rock pernambucano. Da guitarra de Neilton para a voz de Jorge du Peixe e o resto da banda, parece emergir uma intensidade marcante e inesperada.

Por mais que se possa dizer que esta Nação Zumbi talvez seja mais uma marca do que a banda com o ímpeto criativo de outrora, é difícil resistir à sua força ao vivo. Não é difícil entender o porquê: a junção de guitarras distorcidas, a tecnologia de diferentes ramos da música preta e a tradição da cultura popular, amplificada pela antena parabólica enfiada na lama, é uma das ideias mais poderosas já criadas na música brasileira. Mesmo longe de seu momento máximo, esta é ainda uma banda capaz de oferecer, a quem lhe escuta, uma série de lições para novas criações. (Não à toa, os dois nomes mais interessantes das bandas locais do dia, Mundhumano e Terra Cabula, bebem desta fonte). Se tá complicado demais, dá pra simplificar: é só ouvir “A Praieira”, 30 anos depois, ou “Banditismo Por Questão de Classe”, ou “Da Lama ao Caos”, todas gritadas a plenos pulmões no Palácio da Música. Precisa de mais uma prova? Então tá: “anamauê, auêia, aê” – um refrão histórico para embalar os presentes até o caminho de casa, já perto das três da manhã. Amanhã tem mais, Goiânia.

Saiba como foi o dia 2 / dia 3

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010. 

2 thoughts on “Goiânia Noise Festival 2024: Entre clichês, fusões e muito stoner, veteranas Devotos e Nação Zumbi se destacam no primeiro dia

  1. O comentário sobre Francisco, el hombre, além de ser um texto quase incompreensível (jornalista querendo chamar mais atenção que a banda? Conheço essa história) me pareceu ranço pessoal. Aí complica.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.