entrevista de Leonardo Vinhas
“Cabeça Quente” é apenas o nome da faixa de abertura do terceiro disco de Diego Xavier, mas poderia dar título ao álbum, de tão bem que resume o estado de espírito das suas oito faixas. É um disco sem meias palavras, em estado de tensão permanente, com momentos para explosão. O álbum, na verdade, se chama “Trio”, o que gera uma certa confusão, já que o trabalho em questão pode tanto ser entendido como um projeto solista ou uma banda chamada Diego Xavier Trio (ou simplesmente DX). Tendo o nome do guitarrista, vocalista e compositor à frente, seria fácil optar pelo primeiro caso, mas o próprio Xavier destaca a importância de Ricardo Garofalo (baixo) e Rodrigo Leal (bateria) nas canções.
Seja como for, “Trio” é um álbum extremamente pessoal, em que Diego Xavier traz à tona toda a raiva, frustração e desesperança que vieram como consequência de uma turnê do BIKE pela Europa em 2019 – para quem não sabe, Xavier é um dos vocalistas e guitarristas da banda. Quem olha de fora e só escuta as histórias de decadência sexual e festas químicas pode até se deixar enganar pela mítica do rock’n’roll na estrada, mas qualquer um que já vivenciou uma turnê sabe que a realidade é bem diferente. Falta de sono, de dinheiro e de refeições decentes se misturam à pressão para que cada show seja “uma experiência”, e somados ao consumo desregrado de álcool e outras substâncias, resultam numa combinação cruel – e nem falamos dos perrengues de estrada, promotores picaretas e caloteiros, fãs sem noção, falta de público e outras coisas que costumam dar as caras em empreitadas deste tipo.
O tema não é novo: o Camisa de Vênus fez a bela “Chamam Isso Rock’n’Roll” (presente no álbum “Duplo Sentido”, de 1987) para falar do desencanto com a estrada; os Titãs retrataram o tédio e o deslocamento pessoal inerentes a esse tipo de empreitada em “Turnê” e, mesmo em outros idiomas, não são poucas as bandas que falaram do tema: do Creedence Clearwater Revival (“Lodi”) aos uruguaios La Vela Puerca (“Sanar”), passando pela antológica “Turn the Page” (Pete Seeger), não foram poucos os que trouxeram à tona a realidade que até os fãs preferem ignorar.
“Já são três dias quase sem dormir / E o saldo ainda no vermelho / Esquecer a saudade ou talvez me iludir / Espero apenas que dê certo”, vocifera Diego Xavier em “Estrada”, primeiro single do álbum. Na mesma faixa, ele ainda confessa: “Eu sei, eu sei, eu sei / Sou chato, tô velho / Tem umas fitas que eu não gosto mais / Eu continuo me jogando, mas até quando? / São três cabeças num colchão de ar / Às vezes banho, as vezes tem jantar / Em casa me acham o rockstar / Acho melhor nem contar…”
“Pra Aprender”, por sua vez, é puro ódio direcionado aos companheiros da banda. Quem passou dias dividindo van ou um carro apertado na companhia de outras pessoas tão cansadas ou frustradas quanto irá reconhecer o vitupério no ato. Na já citada “Cabeça Quente”, a raiva se mistura ao sentimento de deslocamento, com espaço para memórias pessoais. “Meu pai me disse uma vez que não tinha amigos / E isso nunca foi tão triste”, entrega Diego em um canto falado. E em “Tempo Já Se Foi”, a desilusão é agravada pela saudade de um parceiro das antigas já falecido: “E já fazem 10 que partiu aos 23 /Vê se aparece em mais um sonho outra vez” são os versos que encerram a canção e o álbum.
Musicalmente, o disco acompanha em intensidade. Ao contrário de sua banda mais conhecida, Xavier entrega um som bastante direto, calcado majoritariamente em riffs, e se nem todas as faixas seguem o formato “parte A + refrão + parte B+ refrão”, ele é decididamente menos hermético, repetitivo e etéreo que o BIKE. Na primeira metade, em especial, os resultados são notáveis, conseguindo resgatar com frescor e senso melódico as dissonâncias que caracterizavam o underground paulista do começo dos anos 2000. De seu estúdio em São José dos Campos, Diego Xavier abriu a câmera para dar uma entrevista tão direta e confessional quanto seu disco.
Você tem um estúdio (Wasabi, em São José dos Campos), onde gravou os dois álbuns anteriores do DX. Esse último foi gravado El Rocha, em São Paulo, e ao vivo. Por que você optou por mudar não só o estúdio, mas também a própria abordagem de produção?
Ah, primeiro sempre foi meio que um sonho gravar no (El) Rocha. Tanto pra mim quanto pro Ricardo e pro Rodrigo, porque a gente veio de banda punk. Antes do BIKE, antes de tudo, a gente veio dessa cena de punk e hardcore, que foi muito forte aqui no Vale do Paraíba. O [Fernando] Sanches gravou muita banda que a gente gosta, tem muito disco clássico desse período que foi ele quem produziu, e também fez vários clássicos do indie nacional depois. O trio sempre ficou um pouco de escanteio por causa do BIKE, os meninos também têm outras bandas, mas a gente sempre teve esse sonho. Aí eu falei, “pô, bicho, vamos investir no terceiro disco”. Os dois primeiros tinham sido feitos por aqui e eu queria meio que mudar o template (risos). Pensei em a gente chegar com um som mais pronto para poder economizar [em horas de estúdio]. E foi isso: a gente pegou uma diária já desde o começo, eu já falei pro Fernando que a gente ia mandar tudo ao vivo. Por isso a gente já estava ensaiando as músicas pra caramba aqui no estúdio [Wasabi]. As músicas já estavam sendo trabalhadas desde 2019, mas veio a pandemia… Quando retomamos, a gente continuou malhando aquelas músicas, e quando a gente marcou a data do Fernando, a gente entrou numas de ensaiar para tentar arredondar o máximo possível. No fim, a gente viu que o disco estava mastigado, não ia mudar nada. Então a gente levou nossas referências de som e foi. A gente ama os discos do Hurtmold, em especial o som da bateria do [Mauricio] Takara – que é irmão do Sanches – é bem o som da sala, e eu queria trazer isso pro disco do Trio.
Então ele não é um disco pandêmico. Foi feito antes, certo?
Sim. Mas acabou que a pandemia deixou o negócio mais trasheira, mais pesado lírica e instrumentalmente. Os dois primeiros discos que eu tinha feito para a DX eram bem mais light.
Eu já ia perguntar sobre isso, porque o release assume que o disco foi inspirado pela turnê europeia do BIKE em 2019, que não só causou uma baita fadiga, mas fez você questionar sua própria vida como músico, como produtor. E se passados cinco anos, você está trazendo isso de novo, eu imagino que seja um desconforto grande, e que ainda faz sentido para você falar sobre ele.
Sim, sim, sim. Até porque a gente começou a compor depois dessa turnê. Tem umas duas músicas ali que não tinham saído no “Recortes” (segundo álbum, de 2019) e a gente tinha começado a compor algumas bases instrumentais. Aí veio a turnê, logo depois a pandemia. Eu consegui ficar por seis meses em casa, peguei auxílio, fiz rifa e escambau. Consegui me virar, mas nesses seis meses eu falei pra mim mesmo que não ia ficar parado, então decidi tentar resolver o disco. Consegui fazer o blend sozinho em casa, pegando aquelas demos instrumentais gravadas no celular, juntando com as letras que eu tinha feito lá na Europa, e pegando o que a gente já tinha também. Foi meio que uma tentativa de costurar a parada toda. Só que desde o comecinho eu falei pros moleques que eu queria que o terceiro disco fosse mais pesado. Só não achei que ia ser tão pesado (risos). É que a tour do BIKE foi trash, cara. Esse foi um negócio meio deprê. Na verdade, foi deprê pra caralho (risos). Não sei nem como é que o BIKE não acabou: foi um negócio feio, com preju, perrengue, briga interna… Na pandemia, a gente conseguiu alguns editais, girou um dinheiro pro BIKE, mas mesmo assim foi muito conturbado, a gente estava remoendo muita coisa que aconteceu ainda da turnê na Europa. E acabou que eu ter feito o disco foi meio terapia, botar para fora coisas que a gente sentiu e viveu. Depois os moleques [do Diego Xavier Trio] ouviram e falaram, “cara, você fez um disco da DX que é praticamente sobre o BIKE” (risos). Então é meio que isso, muita coisa foi maturada nesse disco.
Na primeira audição, o disco me soou muito puto mesmo. Mas depois, prestando atenção nas audições seguintes, deu pra ver que não é só raiva: tem desencanto, uma coisa bem forte numa onda “o sonho acabou”.
Mas foi essa sensação mesmo que a gente [BIKE] teve no fim da turnê. Foi um balde de água fria tão grande… E aí entrou pandemia, fiquei desanimado pra caralho, velho. E tinha tudo o mais rolando, as coisas todas que estavam acontecendo no Brasil, tanto o cenário político quanto o musical… Chegou num ponto que a gente passou a achar que a gente não se enquadrava mais na parada. Parecia que em, sei lá, três ou quatro anos, o negócio mudou totalmente, virou uma chave brutal no Brasil. Então foi exatamente isso, uma parada de desilusão mesmo. Eu falei, “vou parar”. Todo mundo no BIKE pensou isso, não fui só eu. Mas eu pensei em largar a música mesmo: BIKE, DX, largar mão do estúdio e voltar a trabalhar em outra coisa. Foi um processo difícil, e acho que só agora que lancei esse disco que superei esse período. Foi uma digestão grande. Agora que lançou, tem gente ouvindo e comentando bastante essa coisa das letras. O September Guest tocou no show de lançamento do disco, e o Boi (Fernando Lalli, vocalista e guitarrista da referida banda) me disse, “pera aí, você teve a pachorra de fazer uma disso tão sincero? Mas isso é muito a sua cara” (risos). Tá ligado? Era isso, eu queria fazer uma parada muito na cara, muito verdadeira, crua até nas letras. E ficou mais cru com o som gravado ao vivo: não tem edição, não tem afinação, é aquilo que está ali.
Mas mesmo com a crueza e a raiva, ele é bem cancioneiro, né? Talvez o disco com mais canções que você já fez, seja com qual banda for. Isso foi um efeito colateral da raiva (risos) ou já era uma intenção concreta de descomplicar, de “despsicodelizar” as faixas?
Teve um pouco de intenção, sim, porque eu lembro que, desde o começo do Trio, vinham pessoas que falavam que tal e tal músicas lembravam o BIKE. Eu nunca achei isso do Trio. Lógico que vai ter influência, porque é uma referência minha, tem uma coisa ou outra ali que pode lembrar. Mas comecei a reparar que a galera achava mesmo que era música psicodélica. Porra, velho, o “Recortes” é bem emo, busquei uma parada bem daquele emo velho dos anos 1990. Ele até deu uma cortada nesse papo, mas por causa das jams longas, a galera ainda acha que é psicodélico. Por isso também esse lance do som ter saído pesado, porque falei “cara, não quero nada psicodélico” (risos). Eu queria um negócio cru mesmo. Acabou rolando de duas das músicas serem mais longas, mas tentei dar uma fugida consciente mesmo. No BIKE, a gente tentou fugir um pouco das canções para tentar chegar a uma sonoridade mais própria. Só que, quando a gente surgiu, logo veio aquela modinha de Tame Impala, Boogarins, e a gente era associado a esse grupo (de bandas). Depois de um tempo, a gente pegou meio que um ranço dessa parada e, a partir do terceiro disco, a gente resolveu mudar, ficar esquisito, buscar uma cara própria. E no “Arte Bruta” acho que a gente chegou nisso, a galera já meio que sabe como é o som do BIKE. No DX, pensei em ser “a canção do Diego”, mesmo porque as minhas músicas do BIKE são as mais cancioneiras, as que têm refrão. Para a DX quis deixar isso ainda mais evidente, e o lance de ter muito riff também contribui pra isso. O primeiro disco do Trio tinha uns acordões, aquele som que vai mais solto, mas esse não, a gente deixou os riffs comandarem a parada. Eu gosto de canção, pô, sempre gostei muito de Dinosaur Jr., o J Mascis acabou de lançar o disco dele com violão (“What Do We Do Now”). Não tem fuzz, mas tem a mesma coisa que ele sempre fez, e está bonito pra caralho! Gosto muito dessa estrutura mais “catchy” da coisa, então ao mesmo tempo que eu queria que fosse mais pesado e mais punk, queria também que fosse algo que a galera pudesse sacar que é essa a minha estética, minha escrita.
Antes do show do BIKE com Tagore em São Paulo, conversei com Júlio [Cavalcante, o outro guitarrista/vocalista do BIKE] e ele falou que vocês eram bem conscientes das limitações que as vozes que cada um têm. Ele contou que isso inclusive faz com que vocês já componham pro BIKE pensando em como acomodar as vozes. Mas nesse disco da DX, sua voz tem muitos registros diferentes, e as canções vão para outros caminhos que exigem mais dela. Você decidiu explorar outros jeitos de cantar, outros usos do teu registro?
Basicamente foi isso, sim. Foi uma coisa que foi amadurecendo ali na no quebra-cabeça da pandemia. Tentei algumas coisas que eu nunca tinha feito com a minha voz. Na pandemia fiquei muito na pira de Nick Cave, Dry Cleaning, que têm uma coisa meio spoken word. Eu queria fazer uma parada assim, só que é muito difícil você fazer esse canto falado tocando guitarra, porque você está ali falando, mas o que você está fazendo ritmicamente no instrumento, num determinado BPM, é outra coisa. Então foi um negócio que penei para encontrar meu caminho. Mas foi importante, porque esse negócio do berro, das músicas mais gritadas, é uma parada que tento evitar. Gosto muito, acho legal, mas sinto que a minha voz mudou com a idade. Cara, já não tenho tanta voz. Esse negócio de gritar arrebenta muito a voz, é muito desgastante. Então vi que ia ter que aprender a cantar diferente, de um jeito que eu consiga executar numa boa. Nessa de cantar diferente, as letras também foram mudando, porque não dava pra falar certas coisas que eu tinha escrito sem berrar. Então fui pirando mais na fonética, nos tempos. Como o disco demorou muito pra sair, deu pra me aprofundar nessa parada, ensaiando, testando. A gente começou a compor em 2019, gravou em 2022. E tem coisas que a gente gravou que decidimos não colocar no disco, porque a gente julgava que não eram pesadas, não tinham a ver com o clima do disco. Realmente, elas são mais baladas, uma coisa meio pós-“Recortes”, ainda tanto bonitinho e tal.
Por que um disco gravado dois anos atrás está saindo agora?
(risos) BIKE, tudo BIKE. Veio o “Arte Bruta”, e a banda era prioridade. Se eu tivesse lançado [o “Trio”], teria passado batido.
Eu vi o BIKE no festival Paraíso do Rock em 2023 e estava claro que o clima entre a banda não estava bom. Reencontrei vocês quando abriram pro Los Espiritus em São Paulo, e o [Daniel] Fumega me disse que vocês iam aproveitar pra dar uma respirada e olhar com calma algumas coisas da banda. Então parece que as nuvens que se instalaram com a turnê de 2019 ainda não se dissiparam. Além disso, você falou que chegou a se questionar enquanto músico, produtor. Então, cabe perguntar, já que você tá revisitando tudo com esse disco: como você está em relação à música hoje?
Cara, hoje eu me sinto um pouco mais confortável. Tipo, depois de todas essas DRs aí, depois do papelão que a gente fez no festival (Paraíso do Rock), isso tudo foi um motivo enorme pra gente sentar e conversar (nota: a banda fez uma apresentação sofrível, como contou Bruno Capelas na cobertura para o Scream & Yell). Hoje acho que a gente está bem mais alinhado. Foram várias, várias conversas várias DRS, tinha muita coisa para alinhar pra poder começar esse ano de um jeito legal, sem tretar. Realmente, o negócio estava foda, a coisa da expectativa versus realidade… Cada um estava numa fase da vida, com a sua correria e agora em 2024 a gente conseguiu acertar muitas coisas no termo pessoal de cada um. O João [Gouveia, baixista], por exemplo, é professor e estava bem enrolado com as aulas dele. Ele também acabou abrindo um estúdio aqui em São José, e o Wasabi, o meu estúdio, estava bem ruim até o ano passado. Eu estava bem desacreditado mesmo, não tinha nem banda ensaiando, mas parece que virou o ano e o negócio deu uma mudada grande. Eu até mandei mensagem para os caras numa semana que vieram duas bandas – banda de moleque, mesmo, cara que a mãe vem trazer para ensaiar, tá ligado? –coisa que só vi dez anos atrás, quando abri o estúdio. Bandas boas. Comecei a sentir que estava dando uma mudada no meu cenário profissional, e isso já me deu um conforto maior. Até o ano passado, a gente basicamente estava vivendo de edital, e as bandas também estavam dentro de editais, agora eu sinto que que a galera – pelo menos aqui no Vale do Paraíba – está meio que dando uma reavivada da cena autoral de bandas de rock. Então comigo me acertando, o João também se acertando, as coisas começam a melhorar. Porque era isso, a gente estava se jogando pra caralho. Uma turnê nos Estados Unidos é muito investimento, e depois que você faz o rolê, precisa pagar as contas, velho. E como eu ficava nessa? Porque o BIKE vai pagando as contas do próprio BIKE, e a grana demora para chegar na gente. Então agora chegamos a um ponto em que esse lance melhorou bem, já não é mais aquela postura quase de guerrilha. Era muito tempo fora de casa, muito tempo sem trampo, indo tocar aonde fosse… Esse ano a gente já decidiu que só vai tocar no que a gente for chamado, não vamos ficar inventando show, correndo atrás. Vamos tentar um pouco botar as coisas no lugar.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell. A foto que abre o texto é de Ana Karina Zaratin