texto de Renan Guerra
Lucía tem oito anos e mora com a família na França, porém, nas férias de verão, eles se dirigem para a casa da avó no País Basco, a comunidade autônoma ao norte da Espanha. É por lá, entre abelhas e as mulheres da família, que a pequena começa a se questionar ainda mais sobre o fato de que as pessoas se dirigem a ela de maneiras confusas, borrando as dualidades entre o feminino e o masculino. Isso tudo abre uma jornada de descoberta para Lucía, tanto das histórias de sua família, das tradições orais da região, quanto de sua própria identidade no mundo.
Esse é o ponto de partida de “20.000 Espécies de Abelhas” (“20.000 Especies de Abejas”, 2023), de Estibaliz Urresola Solaguren, filme que já havia sido apresentado em festivais brasileiros como o Mix Brasil e o Festival do Rio, e que agora estreia comercialmente nas salas de cinema do país. Bem recebido por onde passou, o longa de Estibaliz navega por temas complexos ao adentrar no coração dessa família em sua maioria feminina, em que as histórias do passado ainda parecem mal resolvidas quando a história da pequena Lucía começa a desabrochar. Para essa narrativa, o filme opta por uma construção lenta e delicada, em que cada nuance das personagens é construída de forma detalhada, com uma câmera que as segue e as acompanha, muitas vezes na altura dos olhos de Lucía.
O coração do filme está em Sofía Otero, a pequena atriz que interpreta Lucía. É seu olhar e sua delicadeza que conduzem a história, nos apresentando em cada gesto as dúvidas, os medos e os desejos dessa protagonista. A performance rendeu o Urso de Prata para Sofía de melhor interpretação no Festival de Cinema de Berlim. Sofía, a atriz, é uma pessoa cis e isso adentra uma outra discussão mais ampla cada vez mais forte dentro das produções de arte: a de que personagens trans deveriam ser interpretados por atores trans, considerando uma importante luta por espaço na indústria cultural. Sofía foi escolhida entre mais de 500 crianças que passaram pelos testes da produção, porém não temos uma informação oficial se essa perspectiva dos profissionais trans foi considerada dentro do filme.
De todo modo, para além dos debates externos provocados pelo filme, vamos voltar ao que nos é apresentado na tela. “20.000 Espécies de Abelhas” segue muitos do padrões atuais do cinema europeu quando pensamos em linguagem, tanto na sua construção narrativa quanto em suas escolhas estéticas, mas é interessante como o filme dialoga com um tipo de narrativa que teve seu espaço no cinema comercial norte-americano dos anos 1980 e 1990: os filmes com muitas personagens femininas reunidas em um espaço específica com um recorte de tempo delimitado, isto é, filmes de famílias e amigas reunidas em férias de verão, viagens ou encontros, algo meio “Flores de Aço” (1988), “Colcha de Retalhos” (1995) e outras narrativas com enfoque nessa interação entre mulheres. O filme de Estibaliz consegue construir um roteiro recheado dessas mulheres que contam histórias, que resgatam vivências felizes ou tristes, que recontam suas narrativas orais, que revelam suas crenças e superstições e que ajudam a compor esse painel diverso de histórias e de diferentes possibilidades de ser mulher.
Dentro desse universo destacam-se duas personagens: Ane (Patricia López Arnaiz), a mãe de Lucía, uma mulher que tenta lidar com os impasses entre maternidade, casamento e carreira, ao mesmo tempo que tenta construir um mundo mais livre e diverso para seus filhos; e a tia Lourdes (Ane Gabarain), a apicultora da família, que nos ajuda na construção de muitas das metáforas que são fundamentais na jornada de Lucía e uma das primeiras personagens a acolher a complexidade de sentimentos da criança. Dentre essas diversas narrativas que se entrecruzam é interessante como “20.000 Espécies de Abelhas” consegue manter seu fio condutor sempre muito bem delimitado, nos guiando ao lado de Lucía em um processo complexo, que é cheio de dores, mas que também é recheado de momentos de esplendorosa beleza.
Ainda que esse texto passe uma imagem de que esse é um filme complexo ou hermético, não se engane: “20.000 Espécies de Abelhas” é simples, direto e cativante, e são essas características que tornam esta uma história tão universal e emocionante, levando o espectador para dentro dessas complexidades todas da forma mais humana e sincera possível, nos fazendo sair da sessão mais abertos as complexidades e inseguranças do outro. Por isso vá ao cinema de coração aberto e descubra junto com Lucía a mágica dessas “20.000 Espécies de Abelhas”.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.
Muito bonito você escrevendo sobre o filme onde só existe Lucia <3 porque era Lucia desde o primeiro bilhetinho na fogueira.