texto de Bruno Moraes
fotos de Ivana Cassuli
vídeos: Marcelo Borges (shows) e Rodinei Silveira (depoimentos)
DIA 4 – 12 de fevereiro de 2024 – Segunda-feira
Saiba como foi o Dia 1 / Dia 2 / Dia 3 / Dia 5
Começamos a segunda-feira, quarto dia do Psicodalia 2024, visitando a tenda do Cine Dália para assistir à Oficina de “Práticas Anticapacitistas na Curadoria Cultural”, apresentada pela minha esposa Giovanna Romaro, especializada em Produção e Gestão Cultural. Na oficina, Giovanna explicou uma série de conceitos e ideias pertinentes à questão da inclusão de pessoas com diversas deficiências, seja o autismo que ambos conhecemos de perto e em primeira pessoa, sejam deficiências físicas, sensoriais, intelectuais ou transtornos biopsicossociais. Ela também deixou dicas e provocações sobre a importância de não apenas valorizar e abrir espaço para pessoas com deficiência, mas principalmente promover uma inclusão real nos espaços e projetos de produção de cultura.
Na sequência da Oficina, após a discussão, tivemos a possibilidade de assistir ao fantástico documentário “Meu nome é Daniel”, criado pelo cineasta independente Daniel Gonçalves, natural de Barra Mansa (RJ), narrando sua história de vida e a busca por entender qual seria o diagnóstico preciso de sua deficiência, que nenhum dos médicos que o atenderam na infância soube identificar. Para além da programação de shows, o Psicodália tem exibições e discussões de filmes como este todos os dias, além de apresentações de teatro na tenda cênica, oficinas, vivências naturais como escalada e a possibilidade de banho de rio. Definitivamente são muitas coisas para uma equipe de quatro jornalistas cobrirem extensivamente.
Já no crepúsculo do dia, o Palco Lunar recebeu o quarteto portoalegrense As Aventuras. Formada como uma banda instrumental dedicada a releituras de clássicos do surf rock (como a banda The Ventures, inspiração para o nome da banda brasileira), As Aventuras apresentou um show musicalmente muito diverso, que atesta a diversificação sonora que veio com o amadurecimento do projeto. O show, assim como o EP “Mulher-Panthera” (2019), mostra a fusão entre as bases do surf rock estadunidense e ritmos puramente brasileiros como o samba-rock e a guitarrada, muitas vezes também associados a praias — oceânicas ou de rio.
O show animado d’As Aventuras foi seguido por outra experiência profundamente intimista e sublime: François Muleka. O multi-instrumentista, compositor e cantor brasileiro de origem congolesa iniciou a apresenta cantando sem instrumentos, acompanhado de bases feitas pela DJ Juanita. Logo em seguida, após presentear o público com uma performance memorável no contrabaixo, François convidou ao palco uma banda com muita técnica e feeling para acompanhar as belas e emocionais canções de um repertório doce. Destaque para a presença do lendário guitarrista Alegre Corrêa, além da tecladista Mona Lícia, as vozes de Sara Hana e Francis Pedemonte e o baixista Trovão Rocha, um time que deixou o público em puro êxtase, que se estendeu ao intervalo entre shows.
Em seguida, levantando a energia do Palco Lunar, a tradicional Confraria da Costa, única banda a tocar em todas as 21 edições do Psicodália. Com um show enérgico que bebe a largos goles do imaginário (e do rum) dos piratas, a Confraria é sempre um dos shows mais aguardados do evento, com alguns membros da plateia se caracterizando com chapéus de pirata e sempre pulando e dançando ao som multicultural que mistura influências de polka e outros ritmos do leste europeu, música dos povos Romani e, claro, cantilenas de marujos.
Encerrando uma longa segunda-feira, foi anunciada no Palco Lunar uma das icônicas bandas do rock progressivo setentista brasileiro, o Casa das Máquinas, que entrou com um show de peso misturando faixas do álbum mais recente, “Brilho nos Olhos” (2022), com clássicos dos anos 1970. Mário Testoni Jr., único membro da formação clássica no palco, deu à plateia do Psicodália não apenas a chance de ver executadas ao vivo linhas de órgão, piano e sintetizador que eram velhas conhecidas dos fãs da banda, mas também trouxe pequenas citações musicais que iam de Bach a Black Sabbath e mesmo a melodia que serve de “motivo condutor” para o álbum “The Myths and Legends of King Arthur and the Knights of the Round Table” de Rick Wakeman. A formação nova do Casa das Máquinas tem ainda a marca de vocais muito diferentes dos habituais da banda, com a colocação vocal de Rodrigo Grecco mais próxima do heavy metal do que do prog e hard rock setentistas. Com ou sem diferenças, a plateia — como em todos os shows — pediu bis, e a banda reprisou “A Natureza”, clássico do psicodélico LP de estreia.
Depois do show e das entrevistas, a equipe de cobertura do Scream & Yell conseguiu pela primeira vez passar mais tempo junta. Conversamos durante horas sobre diversos tópicos, profissionais, existenciais e artísticos e tomamos um pouco de cerveja na Festa da Rádio. Voltando para o camping, e energizado pela conversa, rascunhei alguns parágrafos antes de dormir: O final de todos os dias de cobertura do Psicodália é bem parecido: das barracas, o leve zumbido nos ouvidos — ainda processando a quantidade, diversidade e o volume de música — se confunde com o zumbido de grilos e o sibilar de tantos outros insetos que também procuram o carnaval de seu intenso período reprodutivo. Por cima desses sons constantes, a música nas Festas da Rádio chega cristalina aos campings, e pode envolver “Xique-Xique” de Tom Zé tocada na sequência dos Beatles. Ou a surpresa de uma multidão, pequena em número, mas imensa em intensidade, dançando animada “Lee Van Cleef” do Primus.
Mais discreta, mas em maior proximidade, uma roda de violão entre as barracas aqui e ali, trazendo outras surpresas. O cansaço eventualmente toma conta, e você para de cantar mentalmente as músicas. Às vezes, passa das 3h da manhã quando você consegue prosseguir para sonhos curtos, que serão fatalmente interrompidos pelo calor do sol às 7h30. Sempre um tanto a menos de sono do que o corpo precisa. Mas quando você olha a pauta de entrevistas do dia, o ânimo supera qualquer possibilidade que o cansaço teria de derrubar a sua mente. Substâncias que a humanidade descobriu há milhares de anos e ajudam na energia e criatividade, como a cafeína e o álcool, também são boas aliadas.
Curioso pensar que a espécie humana, que domesticou e teve como parte integral de suas culturas diversas plantas e microrganismos capazes de alterar o funcionamento de seus corpos, nas últimas décadas resolveu decidir quais boas aliadas podem ser encontradas por cães farejadores e quais resultam em problemas institucionais. E nem te conto quem domesticou tanto os cães quanto o arbusto do café e do chá, a erva-mate, a levedura da cerveja, a planta da maconha, e algumas centenas de formas de vida estimulantes, sagradas, calmantes, cicatrizantes, psicodélicas… e as de cheiro reconhecível por cães farejadores.
Não tendo muito tempo até que o sol me desperte e me faça desviar de mais uma viatura e ir correndo atrás de um café bem forte, preparo-me para fechar meu caderno e ir para a barraca. Então percebo que estou sendo espiado bem de perto por um visitante nada domesticado. Felizmente, ainda há muita natureza intocada pelos impulsos controladores da contraditória espécie humana.
Saiba como foi o Dia 1 / Dia 2 / Dia 3 / Dia 5
– Bruno de Sousa Moraes migrou das ciências biológicas para a comunicação depois de um curso de jornalismo científico. Desde então, publica matérias sobre ecologia e conservação da biodiversidade, e está se arriscando pelo jornalismo musical.