texto de Manoel Magalhães
fotos: Circo Voador
Quando pensamos em bandas nacionais, inevitavelmente citamos artistas dos anos 1980: Titãs, Paralamas, Legião. Assim, só abordamos o rock e esquecemos que os grupos de música brasileira também são grandes bandas. Boca Livre e MPB4, por exemplo, estão entre as mais inovadoras do país e produziram discos que ainda precisam passar por um processo de redescoberta mais profundo. Suas marcas de sonoridade podem ser sentidas significativamente em grupos pós-anos 2000, como Los Hermanos e O Terno, mas raramente os discos são citados em listas de melhores do século XX ou de raridades a se descobrir.
Em seu retorno ao Circo Voador, depois de um longo hiato no principal palco alternativo do Rio de Janeiro, o Boca Livre mostrou que as excelências vocal e instrumental continuam intactas, mesmo depois de mais de 45 anos de carreira. Sem deixar de mirar o futuro, apresentando canções inéditas de parceiros jovens, o grupo reforça o presente com o repertório que lhes rendeu um Grammy e ainda repassa toda a carreira lírica baseada na canção. Sempre com o foco em sua principal qualidade: o talento de tomar a música dos outros para si e reconstruí-la.
O repertório autoral esteve mais presente no início do show com canções como “Feito Mistério”, composição do vocalista e flautista Lourenço Baeta em parceria com o poeta Cacaso, e “Mistérios”, do baixista Maurício Maestro com a cantora Joyce. As duas integram o álbum autointitulado de estreia, de 1979, lançado de forma independente. Nestas, destaca-se o impacto da precisão vocal dos quatro integrantes e da capacidade de alternarem entre as vozes sem sobressaltos. Na sequência, pulam do primeiro ao mais recente lançamento com “Rio Grande”, single de 2023 feito por Zé Renato em parceria com Nando Reis. A canção com levada característica da música de Minas Gerais fala de amor e estrada de ferro e poderia passar despercebida no cancioneiro do Clube da Esquina.
O bloco de parcerias recentes segue com uma interpretação de “Mesmo Se Você Não Vê”, uma releitura ainda inédita para a composição de Tim Bernardes, lançada originalmente no disco “Mil Coisas Invisíveis” (2022). É o ponto em que o Boca Livre garante nunca ter visto o tempo passar e interpreta a canção como uma balada pop contemporânea, dando a cor e o swing que a versão de Tim não tem.
Na sequência, veio a leva de canções que integram o álbum “Pasieros”, com o qual a banda foi premiada na categoria melhor álbum de pop latino do Grammy 2023 – disco produzido em parceria com o artista panamenho Rubén Blades. “Sin Tu Cariño” e “Día a Día” foram executadas e bem recebidas pela plateia, que parecia ainda pouco familiarizada com o novo repertório. Fato compensado pela coesão da interpretação do grupo mesmo nas novidades.
David Tygel é uma espécie de guitar hero da MPB. Com sua viola, ele briga contra a lógica da dificuldade de afinação. No show, chega a brincar que em 50 anos tocando “ainda continua tentando afinar o instrumento”, mas o que se viu foram quase duas horas de uma viola brasileira e brilhante. Zé Renato é um cantor de assinatura, além de transitar bem entre o violão de aço e de nylon, assim como o Boca Livre varia entre a música brasileira e o pop folk internacional.
Lourenço Baeta é a voz que se destaca no meio das canções e ainda um contraponto melódico na flauta. E Maurício Maestro, além de arranjar todos os vocais, ainda é um dos grandes baixistas de sua geração. Poucos em bandas pós-1970 foram tão precisos e reverentes à função do instrumento. É sorte presenciar um time assim em atividade. E ainda recebendo o suporte de músicos com uma grande lista de créditos em álbuns da discografia nacional, como o baterista Marcelo Costa e o pianista João Carlos Coutinho.
O ponto alto da noite foi a versão de “Cruzada”, canção de Tavinho Moura e Márcio Borges, que teve o refrão conduzido pelas vozes do público no Circo Voador. Apesar da perceptível faixa etária mais avançada dos presentes, muitas vozes mais jovens também acompanharam os versos “você parece comigo, nenhum senhor te acompanha”.
Nesse ponto vale lembrar que o grupo havia rompido em janeiro de 2021 e o motivo aventado na imprensa teria sido o apoio de Maurício Maestro a Jair Bolsonaro. Em sua despedida da formação à época, David Tygel disse que “o país que está asfixiado precisa se curar primeiro para depois voltar a amar”. E parece que foi o que aconteceu também com o grupo. Depois da vitória no Grammy, os quatro integrantes apararam as arestas e retomaram a estrada da criação, que promete um disco novo para 2024.
A parte final da apresentação destacou sucessos como “Toada”, a versão do clássico “Panis et Circenses”, de Caetano e Gil, que foi registrada pelo grupo no álbum ao vivo “Songboca”, e mais duas faixas do álbum de 1979, “Quem Tem a Viola” e “Diana”, a última executada no bis, que foi encerrado com uma versão à capela de “Ponta de Areia”, de Milton Nascimento, acompanhada com furor pelo coro do público presente no Circo.
O show é só uma confirmação de que o Boca Livre voltou. Ao ambiente cultural do Rio de Janeiro, aos registros fonográficos, à carreira que logo completará 50 anos, e a ser uma das mais importantes e criativas bandas brasileiras em atividade. Os quatro mostram que o tempo, mesmo que não pare, anda ao lado deles. E é mais um companheiro de estrada.
– Manoel Magalhães (@manoelmagalhaez) é músico, jornalista e produtor. Vive no Rio de Janeiro.
Que o bolsonarista tenha se curado da doença.
fecho com Ismael acima. Bsixo astral total saber de artistas que apoiaram (ou ainda apoiam?!) um monstro perverso e diabólico dessa natureza. Bem, gostei muito do texto e da plateia tão efusiva. Valeu, Manoel.