entrevista por Homero Pivotto Jr.
O punk pode ser escola. O faça você mesmo, o menos é mais, a contestação, a aceitação (de si e das outras pessoas) e o entendimento de mundo por uma perspectiva menos careta são lições que se pode tomar com o estilo músico-comportamental. Colocando alguns desses conceitos em prática, Os Replicantes criaram o bordão, digamos, educativo: “seja punk, mas não seja burro”. Agora, o verso da politizada faixa ‘Tom & Jerry’ (do segundo álbum, “Histórias De Sexo e Violência”, de 1987) ganha notoriedade novamente não apenas pelo didatismo em poucas palavras, mas também porque foi escolhido como título para um documentário que revisita os 40 anos de história do grupo gaúcho, completados em 2024.
“Acho que além de ser emblemático [o nome da obra], é um elogio ao nosso público, que queremos que faça parte importante da narrativa do filme”, adianta a vocalista Julia Barth, que assina direção e roteiro ao lado da amiga Virginia Simone.
Fora depoimentos dos fãs, famosos ou anônimos, o longa-metragem deve incluir declarações de todos os músicos que já estiveram no conjunto com alcunha inspirada nos robôs humanoides do filme “Blade Runner” (1982), de Ridley Scott. Outras pessoas envolvidas na trajetória d’Os Replicantes também ganham espaço, bem como gente influenciada pelos veteranos, criando uma história com pontos de vista dos artistas e do público. Porém, a ideia não é fazer apenas uma compilação de relatos.
“Também queremos explorar a influência d’Os Replicantes no início de novas bandas (quantas pessoas começaram tocando um cover de Replicantes? Eu comecei!) e revelar ao público o processo criativo de cada androide na composição desses hinos que marcam gerações. Mas não queremos ficar só em cabeças falantes, um filme de entrevistas não nos interessa. Queremos uma narrativa bem musical, punk rock, com tudo isso que já falei e mais toda a cobertura de bastidores da construção do grande show de 40 anos”, afirma Julia.
Para viabilizar a execução do projeto, com previsão inicial de lançamento em 2025, o time envolvido — que tem ainda Matheus Walter como diretor de produção — iniciou um financiamento coletivo que pode ser acessado e apoia.se/osreplicantesofilme. As recompensas vão de créditos no mural de apoiadores da campanha a brindes diversos (ingressos para eventos, camiseta, bottom, zine e outros mimos). Os valores do investimento variam entre R$ 10 e R$ 15 mil.
Com nove álbuns de estúdio entre 1986 e 2018, Os Replicantes seguem se reprogramando para manter a festa punk. Na formação atual, além da vocalista, estão os irmãos Cláudio (guitarra) e Heron Heinz (baixo), e Cleber Andrade (bateria). Carlos Gerbase (bateria e voz), Wander Wildner (voz), Luciana Tomasi (teclado e voz) são alguns dos nomes que assumiram papel de replicante no passado.
Na entrevista a seguir, Julia aborda a importância dos registros históricos, a relação que tem com o audiovisual, o olhar feminino sobre o legado do Repli e projetos futuros. Go ahead!
Os Replicantes completam quatro décadas dessa jornada que é uma verdadeira festa punk. O que acredita que mudou ao longo desse tempo — se é que houve alterações — no conceito de punk (essa palavrinha tão forte, que é adjetivo pra uns e sinônimo de algo negativo pra outros)?
Bom, o conceito de punk não é unânime nem para os punks, né?!! Pergunta complexa! Muita coisa mudou nos últimos 40 anos. Só para começar, o “movimento” saiu dos buracos e periferias, tornou-se moda e chegou até os palcos do mainstream. Depois, na maior parte dos lugares e casos, voltou para o underground (risos). A forma como a informação circula mudou muito. No século passado, a gente não tinha internet, compartilhava informação pelos correios, zines, coletâneas caseiras em K7 e demotapes. As bandas tinham uma dificuldade enorme para registrar as músicas em um disco e, maior ainda depois, para distribuir. Mas era bem divertido, sem querer ser saudosista.
Hoje, todo mundo pode gravar até com um celular, o que é ótimo, e disponibilizar na hora seus arquivos na internet. A informação pode cruzar o mundo em segundos. É redundante falar isso, mas acho que tem toda uma gurizada que não se dá conta que isso (de não ter internet) foi ontem, não nos tempos dos dinossauros (hahaha). Bom, tudo isso para dizer que o punk e a maneira de fazer punk mudaram muito. Mas, na essência, eu diria que os punks de hoje, muito além do estilo visual e musical, seguem sendo as pessoas que fazem as coisas acontecerem de forma independente (faça você mesmo!) e que de alguma maneira tentam chacoalhar o status quo com sua arte.
Os Replicantes passaram por tudo isso também: começaram na garagem, assinaram com uma grande gravadora, depois voltaram para a cena independente e estão sempre se reinventando, recomeçando. Androides que se reprogramam, mas não perdem nunca a essência DIY.
Teve algum episódio pontual que te levou a querer fazer esse documentário? Ou é uma ideia que vem sendo gestada há tempos?
Na real, eu não queria fazer esse documentário, no início. O episódio que despertou a ideia foi: vamos fazer 40 anos de banda e seria legal ter um documentário em longa-metragem. Paola (produtora da banda) e eu confabulamos que deveria ser uma mulher a dirigir, para que a história fosse contada de outro ponto de vista (todos os registros sobre a banda e o rock gaúcho em geral, foram escritos e dirigidos por homens, está na hora de contarmos essas histórias por outros ângulos, né?!!!).
Não conseguimos achar um nome que fosse unânime e acabou que a própria banda me incentivou a ser a diretora do projeto. Como eu sou também um personagem desse documentário, e não quero que ele seja em primeira pessoa, precisava de alguém junto comigo na empreitada. Na época, trabalhava num outro filme com meus amigos e grandes parceiros de cinema de guerrilha (que é como chamamos fazer filmes sem dinheiro) do coletivo Avalanche: Virginia Simone e Matheus Walter. Ao mesmo tempo, eles estavam montando um filme sobre o músico Flávio Chaminé chamado “O Sucesso e o Abstrato”. Quando eu vi o corte, tive certeza de que eles eram as pessoas certas pra fazer esse projeto, com pouco dinheiro, mas diferente dos documentários de música que a gente vê sempre por aí. A equipe estava formada. E gente, vejam “O Sucesso e o Abstrato” (trailer aqui)!
Todo registro histórico é válido, mesmo das trajetórias mais anônimas. Antes da música e do cinema, eu fui uma estudante de História e tenho certeza de que tudo é documento. Contar sobre os 40 anos dos Replicantes também é contar a história das últimas quatro décadas do mundo — claro que sempre levando em conta os recortes sociais, regionais, de raça, gênero e tudo que nos faz singulares de alguma forma. E isso valeria para qualquer pessoa, para o padeiro, o catador de lixo, o congressista ou o dono da multinacional. Mas me interessam mais as vidas dos padeiros e dos catadores.
Tu tens relação com o audiovisual desde muito nova (participou do clássico “Ilha das Flores”, do Jorge Furtado, com cerca de oito anos, além de outros trabalhos de atuação em produções como “Houve Uma Vez Dois Verões“, “Sal de Prata” e “Vai Dar Nada”). E atrás das câmeras, já tinha trampado? O que tua experiência com cinema te faz perceber como atrativos em adaptar a história d’Os Replicantes para as telas?
Sim, venho de uma família das artes, meus pais sempre trabalharam com cinema e teatro, então cresci nos sets e coxias (de teatro). Comecei cedo como atriz e fiz muitos bicos em outras funções (no figurino, assistência de produção e direção e também na arte). Depois quis ir para trás das câmeras e me formei em Produção Audiovisual na PUCRS. Dirigi dois curtas de ficção na universidade, “Roda Gigante” (2011) e “Roupa Suja” (2014), e alguns videoclipes por aí. Mas a carreira musical, a produção de eventos (que desde 2006 são meu ganha pão) e os filhos me deixam pouco tempo pra me dedicar ao que eu mais gosto: escrever roteiros. Durante a pandemia, quando todas as minhas atividades pararam, comecei a querer brincar mais com o vídeo, algo que dava pra fazer sozinha, e criamos em coletivo um programa de variedades no YouTube chamado MiniMundo. Foi um fracasso de público, mas nos manteve sãos naquela loucura toda. Produzir no ócio me fez ter vontade de investir novamente no audiovisual. Foi então que comecei a trabalhar sistematicamente com a Virginia e o Matheus. Ainda no distanciamento, nos unimos para fazer o Socorro Ocidente Show, para que o bar Ocidente não entrasse em falência — esse sim foi um sucesso. Juntos, começamos a ver que era hora de contar essas histórias, do Ocidente, dos Replicantes e de tantos outros, antes que as pessoas todas morram. Afinal, ninguém está ficando mais jovem e percebemos como a existência é frágil. Acho que essa é uma urgência: registrar as pessoas e as coisas antes que elas não estejam mais aqui.
Não vai ser o primeiro filme documental sobre o quarteto, considerando “O Futuro é Vortex” (que foca no estúdio de mesmo nome que o Repli teve e ajudou a fomentar o circuito underground no sul) e “Libertà” (que retrata o processo de criação do álbum homônimo, o mais recente do grupo até então) – assista aos dois no final do texto. O que esse doc dos 40 anos pretende explorar exatamente?
Vamos explorar os 40 anos por meio de material de arquivo, revisitando esses documentos visuais que já existem e captando novas entrevistas, tanto com todos os membros que passaram pela banda quanto com parceiros, amigos e fãs, anônimos e famosos, que acompanharam essa trajetória. Também queremos explorar a influência dos Replicantes no início de novas bandas (quantas pessoas começaram tocando um cover de Replicantes? Eu comecei!) e revelar ao público o processo criativo de cada androide na composição desses hinos que marcam gerações. Mas não queremos ficar só em cabeças falantes não, um filme de entrevistas não nos interessa, queremos uma narrativa bem musical, punk rock, com tudo isso que já falei e mais toda a cobertura de bastidores da construção do grande show de 40 anos. Vamos buscar uma narrativa ágil, com muitas imagens de arquivo sobrepostas com animações e inspirada em filmes como “Dogtown and Z-Boys” (Stacy Peralta, 2001), “L7: Pretend we’re Dead” (Sarah Price, 2016), “Moonage Daydream” (Brett Morgen, 2022) e “A Vida Até Parece Uma Festa” (Branco Mello e Oscar Rodrigues Alves, 2008).
O que já se tem de acervo para compor a obra? Há algo que ainda não veio a público?
Temos horas de entrevistas da banda em várias fases, além dos já citados filmes pontuais sobre a carreira, o que ajuda a dar corpo ao projeto. Estamos na fase de pesquisa de material de arquivo e ainda produziremos entrevistas e registros inéditos da banda.
Tu estás na banda há 18 anos, mas já curtia antes de fazer parte. Tens dito que a ideia para o documentário é cruzar essas duas visões: de fã e de integrante. Como fazer? Na tua cabeça, o que muda em cada uma dessas perspectivas?
A questão de artista/público é simbiótica, um não existe sem o outro. Quer dizer, a gente pode fazer arte só para nós, mas ela só terá relevância se comover algum outro. Quando começamos a pensar esse documentário, Virginia e eu ficamos refletindo… Poxa, a história toda que os guris falam — como Gerbase e Wander se conhecendo no exército, ou como os irmão Heinz escolheram qual instrumento queriam tocar —, tudo isso está contado. Posso passar uma lista de links para vídeos com essas histórias. Mas a relação com os fãs, as bandas que começaram inspiradas na gente, o nosso público que junta galera de todas as camadas sociais e de vários cantos do país, isso não tem em lugar nenhum. E eles são tão importantes quanto nós!
O nome sugerido para o doc é “Seja Punk Mas Não Seja Burro”, verso da música ‘Tom & Herry’ que é bem emblemático & objetivo (dá o recado em poucas palavras). Além de ser uma expressão impactante, tem alguma outra razão para a escolha do título?
Acho que além de ser emblemática, é um elogio ao nosso público, que queremos que faça parte importante da narrativa do filme.
O meio punk, supostamente, é pra ser mais progressista, mais acolhedor para diferentes tipos de públicos e artistas. Por ser uma banda que tem à frente uma mulher e que contou com a colaboração de outra artista no decorrer de sua existência, a tecladista e produtora Luciana Tomasi, as questões femininas devem ganhar espaço na obra? Aliás, qual tua leitura sobre a aceitação de uma frontwoman no meio punk/hc, tanto dentro da banda como pelo público?
Bom, a questão feminina vai estar no filme de qualquer forma, porque é um filme dirigido por mulheres. Alguém esses dias até brincou que normalmente os caras dirigem e as mulheres produzem, e nesse filme a gente inverteu esses papeis. E é bem isso: invertemos. Nossos corpos são políticos sempre. E isso se reflete no nosso discurso. No caso, um discurso visual na forma de um documentário. Não dá pra fingir que existe documentário imparcial. A gente vê as coisas a partir do nosso lugar no mundo. De qualquer forma, a questão feminista provavelmente vai aparecer com força e naturalmente quando falarmos dos fãs e, principalmente das fãs, do meu tempo como vocalista. Então nem preciso prever esse tema (eheheh). De todos os estilos musicais, me parece que o punk foi o que a mulher sempre circulou com mais naturalidade, onde nos sentimos mais à vontade para tocar sem tantas pressões estéticas e cobranças de virtuosidade musical. Mas isso não quer dizer que foi e é fácil para a gente estar no meio. A violência e o sexismo são estruturais e afetam até os ditos progressistas. O que a gente fez foi começar a se articular mais e se proteger entre iguais, e os eventos/encontros/festivais feministas têm nos preparado melhor pra lidar com tudo isso e buscar uma transformação.
Há uma previsão para possível lançamento?
Depende do orçamento (risos). O mais provável é lançarmos até o fim do primeiro semestre de 2025. Se acontecer um milagre, eu quero acreditar, quem sabe a gente consegue lançar ainda neste ano dos 40.
Além do doc, o que mais deve rolar para celebrar os 40 anos do Repli?
Vem exposição no Museu do Trabalho, em Porto Alegre. Vem um livro escrito pelo Juann Acosta e com pesquisa do Samarone Silveira. E, claro, o grande show, dia 16 de maio, também na capital gaúcha.
– Homero Pivotto Jr. é jornalista, vocalista da Diokane e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal. A foto que abre o texto é de Fernanda Chemale.
Quando eu era jovem em meados de 1986, eu com 15 anos na época, saia de casa quase que escondido para bailes da época com os amigos, e nesse período foi que eu comecei a me identificar com gostos musicais e me deparei que gostava de Rock independente do estilo, pois estavamos em um período muito fértil em rock in Roll por assim dizer. Mas quando eu ouvi Os Replicantes, tanto na rádio 89fm quanto nos bailes onde eu ia, me identifiquei com o estilo musical e assim que possível adquiri ul LP dos Replicantes ( O futuro é vórtex) junto com um LP dos Ramones. Até hoje não me canso de ouvir Replicantes, assisti a show da banda aqui no Sesc Sp (Pompéia e Belenzinho) com a vocalista Julia Barth, É uma das melhores bandas nacional, pelas letras e pela sonoridade, quero ver alguém ficar parado em um show dos Replicantes. Gosto de outras bandas também, na vertente do Punk rock e rock nacional, mas entre as minhas duas bandas prediletas estão Os Replicantes e Inocentes, que influenciaram minha vida em termos musicais. Vida longa aos Replicantes!