Meu disco favorito de 2023: Grian Chatten, por Igor Müller

MEU DISCO FAVORITO DE 2023 #13
“Chaos For The Fly”, Grian Chatten
escolha de Igor Müller

Lançamento – 30 de junho de 2023
Selo – Partisan
Ouça – Spotify / Youtube / Bandcamp

Dublin é uma cidade que transpira literatura ao mesmo tempo em que exala álcool pelos poros. Através de caminhos estreitos povoados por predinhos graciosos que escondem mitologias de seres elementais pagãos, surge um povo esmagado pelo domínio imperial que afoga seu infortúnio histórico em intermináveis garrafas. Essa dicotomia é um alimento nutritivo para a criação artística e está no espírito íntimo não apenas da capital, mas espalhado por toda a Irlanda. Na música, artistas como Van Morrison conseguem ir do mais singelo à grandiosidade orquestral com toques de big band, da beleza pastoral ao azedume mais ressentido e, em escala mais universal, transita da emulação mais original do espírito do Delta Mississipi ao ufanismo regionalista. Essa habilidade está manifestada no mais relevante acontecimento da música recente do país: o Fontaines D.C. e seu frontman Grian Chatten, um ex-funcionário de biblioteca que escolheu o nome de um bar para sua banda.

Após três discos sólidos e o reconhecimento mundial como um dos acontecimentos recentes mais interessantes da música, Grian aparece com “Chaos For The Fly”, uma obra que alarga seu horizonte poético. Sua estreia solo estica a corda para além da máquina bem azeitada de estruturas pós-punks oferecidas pelo instrumental de seus colegas de banda. Beats eletrônicos acompanham violões que lembram muito do folk celta, delicadezas atmosféricas cândidas, arranjos de cordas suaves e outras minúcias denotam a evolução de um Grian que parece pedir em seu trabalho solo uma maior concordância entre o instrumental e a sua lírica.

A contradição típica do irlandês surge pelo contraste como suas letras contrapõem com delicadeza a aspereza típica do pós-punk produzido pelo Fontaines. Seu percurso denota uma evolução que começa na persona do bardo encenado por Ray Davies e que retorna com louros nos anos noventa através de figuras como Jarvis Cocker e o Damon Albarn da fase “Parklife”. “Dogrel”, a estreia do Fontaines D.C, é um passeio por personagens e humores dublinenses encapsulados numa música que balança entre o punk “para beber e brigar” e um corte bem definido de pós-punk que remete à bandas como The Fall e a primeira fase do Wire. Dentro da arquitetura bem definida, as letras de Grian Chatten emergem com referências ainda tímidas, mas com um topos afirmativo incomum para essa tradição. Grian parece ter encontrado o balanço perfeito entre uma tópica britpop e joyceana, através de uma sonoridade mais crua que os menestréis do britpop costumavam fazer.

Esse aspecto é mais evidente no segundo álbum da banda, “A Hero’s Death”, totalmente calcado na lição pós-punk, mais melancólico e apocalíptico, erigido sob o signo da pandemia. O contraste, que na obra anterior surge do choque entre a juventude beberrona dublinense e o poeta sensível das ruas, aqui é dado pelo conflito de algumas letras singelamente otimistas e a aspereza soturna do instrumental presente no álbum. Enquanto o instrumental acompanha a urgência de uma segunda década de século XXI estrelada por líderes políticos que flertam com o fascismo, pandemia e a desinformação geral, Grian ainda encontra um suspiro para dizer que a vida não é sempre vazia, assim como Gogo e Didi resolvem acreditar no menino que diz que Godot ainda virá. Esperança entre os escombros de não pertencer a ninguém, de alguém que desliza entre amores que se alienam, assim como na obra de Beckett.

“Skinty Fia”, o terceiro e mais recente trabalho da banda, parece ser o mais consonante da carreira dos irlandeses. Mais aberto, dançante e até erótico, o disco aproveita o sucesso represado durante a pandemia para atingir um público ainda maior. Ainda que momentos como “Nabokov” atinjam a tensão de outros momentos, a obra parece satisfeita consigo mesma. Canções como “I Love You” e “Jackie Down The Line” apresentam a instrumentação esmerada e a afiada perspectiva de Grian, mas ficam no meio do caminho entre um som de pista apático e a verve artística em segunda potência. Se por um lado consolida o Fontaines como uma das bandas mais sólidas dos últimos anos, por outro os paródia naquilo que eles tem de melhor: a criação através do choque entre a lírica e as texturas pós-punk tão bem elaboradas.

“Chaos For The Fly” é também consonante, mas nem de perto compromete a lírica de Grian Chatten. Ainda que irregular e algumas vezes tateante, o disco cria estruturas e sonoridades delicadas que impulsionam o olhar poético do autor. Grian é um bardo que encena o próprio cenário onde canta suas odes. A beleza de suas letras agora desaguam em atmosferas sonoras delicadas, até mesmo quando o álbum acelera em uma versão mais intimista do próprio Fontaines. Grian parece ter encontrado uma armação estável para que sua obra possa escalar em uma lírica bem original em relação às suas influências.

“The Score”, faixa escolhida para abrir o disco, é uma canção de amor, como muitas vezes Grian cantou no Fontaines, mas agora o sentimento não precisa ser gritado para ser ouvido ante a massa sonora. Um violão dedilhado é cortado por um delicado farfalhar de beats, formando o canvas sonoro ideal para que o tema central não precise ser diretamente mencionado na música. Tudo conflui e cria o ambiente para que a verve poética possa se ocupar de figuras mais complexas e indiretas; o instrumental catapulta a lírica.

O tom barítono de Grian, o mesmo de Frank Sinatra, é o trunfo de “Bob’s Casino”, um swing melancólico e desajeitado, banhado pelo mar céltico e por uma porção de pints de Guinness. O glamour das apostas e dos smokings da Las Vegas de Sinatra passa longe do real efeito dos jogos na vida das pessoas comuns. A voz central é carregada da bufonaria beckettiana, um bêbado à beira do cais, ouvindo os ecos da voz angelical do refrão, uma fada, consolando suas desditas ao ouvido.

As fadas também passeiam em “Fairlies”, a música que guarda a maior lembrança da sonoridade do Fontaines D.C. Um loud quiet loud com reminiscências do celtic folk, passeando por elementos do paganismo celta com a mesma facilidade que entra na mitologia cristã do inferno. O fiddle irlandês que anuncia a entrada é o mesmo que entra em ebulição nos momentos mais altos da música, um resíduo da alma cáustica irlandesa, uma demonstração que o peso punk não é a única forma de romper com a apatia cotidiana. Uma rapsódia moderna, “Farlies” encena a danação eterna, o mundo animado por seres elementais em contraste com a mesquinhez da vida, o envelhecer, o sonho de prosperar sempre olhando para o outro lado do mar.

Uma estreia flutuante e assimétrica no total, porém repleta de excelentes momentos que iluminam novos caminhos para um talento emergente como Grian Chatten. Novas estruturas (e algumas reformadas) oferecem uma moldura menos conflitante, criando o cenário ideal para uma alma com o potencial de transitar entre o atrofiamento contemporâneo e os símbolos tradicionais, aliás, um mérito dos melhores poetas Sinn Féin. “Chaos For The Fly” é uma constelação em que a linha mais forte, que forma o desenho do signo, prevalece através de suas estrelas mais brilhantes, ocultando suas ramificações e irregularidades.


Igor Müller é locutor da Rádio Eldorado e um dos responsáveis pelo Programa de Indie

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