Meu disco favorito de 2023: Depeche Mode, por Davi Caro

MEU DISCO FAVORITO DE 2023 #11
“Memento Mori”, Depeche Mode
escolha de Davi Caro

Lançamento – 24/03/2023
Selo – Columbia / MUTE
Ouça – Spotify / Youtube

É invejável perceber a magnitude do legado do Depeche Mode. Ao longo de pouco mais de 40 anos, a banda abriu caminho em meio à toda uma infinidade de co-geracionais vidrados em sintetizadores e canções descartáveis que hoje são como um pequeno fragmento esquecido de consciência coletiva. Despertando tanto fascínio – por meio de seus inovadores usos de instrumentos eletrônicos e seu pioneirismo no uso dos samples como ferramenta pop – quanto intriga – graças aos cinemáticos e ambiciosos vídeos gravados por Anton Corbjin, postos em alta rotação na MTV e ainda dignos de nota e reverência – o Depeche conseguiu se estabelecer como referência quase universal no universo pop, referenciado tanto pelo mais alto olimpo do mainstream quanto pelas mais obscuras frentes do underground. Atravessando mudanças de formação, sempre se ergueram em meio a incontáveis contemporâneos e discípulos por meio de uma ética artística que priorizou, através de inúmeros percalços, a unidade.

O que quer dizer que poucos teriam se espantado caso “Memento Mori” (2023) nunca tivesse existido. O disco é o primeiro da carreira da banda sem contar com o aporte do tecladista e fundador Andy Fletcher, falecido em maio de 2022 em decorrência de problemas cardíacos. Qualquer incerteza sobre o futuro do grupo, porém, parece ter se dissipado rápido: ao invés de interromperem suas atividades (como muitos poderiam ter esperado), Dave Gahan (vocais) e Martin Gore (teclados e guitarras) entraram em estúdio em julho do mesmo ano para registrar o mais delicado conjunto de músicas creditados ao Depeche Mode em muito tempo. Ao passo que, nos últimos anos, as contribuições de Fletcher tenham se limitado a questões de gerenciamento do grupo (e já não contar com qualquer contribuição criativa no último trabalho lançado, “Spirit”, de 2017), sua falta permeia todas as canções encontradas aqui, ao mesmo tempo que seus companheiros de uma vida toda buscam preencher o vazio de sua ausência.

Dois elementos se fazem fundamentais para o resultado obtido nas canções: o primeiro é referente a James Ford, que também retorna do disco anterior, e consegue aqui ajudar a canalizar a perda de uma das figuras determinantes para a trajetória da banda com maestria enquanto também assume a bateria nas gravações. O segundo diz respeito à Richard Butler, vocalista dos também sobreviventes oitentistas do Psychedelic Furs: quatro das doze músicas contam com seu aporte – como é o caso do primeiro single, a reflexiva e memorável “Ghosts Again”. As outras parcerias também rendem bons momentos, com destaque para a balada “Don’t Say You Love Me” e a mais soturna “My Favorite Stranger”, que poderia estar no essencial “Violator” (1990).

Martin Gore, por sua vez, se mantém como o principal compositor, contribuindo com cinco canções e sendo parceiro na maioria das outras (as exceções, no caso, sendo a boa “Before We Drown” e a mediana “Speak To Me” no encerramento, onde Gahan colabora com outros compositores). A quase industrial abertura do disco, “My Cosmos Is Mine”, é uma reflexão que traz muito, nas palavras do próprio guitarrista, dos eventos que se sucederam à invasão da Ucrânia pela Rússia, e é um negativo fotográfico em comparação com o que se segue, nos ritmos 4/4 de “Wagging Tongue”. Se há uma ressalva a ser feita em relação ao tracklist, talvez seja ao posicionamento de “Always You”, uma boa jóia que fica mais escondida já no final do disco.

De todas as coisas que fazem de “Memento Mori” uma experiência no mínimo curiosa, não deixa de chamar a atenção a forma com a qual os dois membros remanescentes parecem refletir a perda de seu companheiro: Gahan parece se referir aos sentimentos de maneira mais visceral (como em “Before We Drown”), ao mesmo tempo em que Gore soa mais contemplativo (em “My Cosmos Is Mine”). A temática evocada aqui se converte em um disco mais confessional, passional e resoluto em sua introspecção, mas que não se fecha no luto ou na dor: o agora duo se mostra determinado a seguir fazendo o que fazem de melhor.

Mal-comparando, pode-se dizer que “Memento Mori” se assemelha a outro disco lançado em 2023 por uma outra instituição da chamada “música alternativa”: o mundo viu os Foo Fighters retornarem de um período próprio de incerteza com seu “But Here We Are…”, exorcizando o trauma da perda do baterista Taylor Hawkins. Da mesma forma que ocorreu com o grupo de Dave Grohl, Gahan e Gore se viram compelidos a externalizar sua dor em um disco que, por acaso, foi amplamente considerado um de seus melhores em muito tempo. Ao contrário dos Foos, porém, o Depeche Mode concebeu um trabalho onde a dor deu lugar a um repertório ao mesmo tempo intenso e delicado, (por vezes) barulhento e (sempre) muito bonito, sempre sutil e nunca abrasivo demais. “Memento Mori” é um documento da busca vinda da perda, e da procura pela esperança, esse fator tão puro, em meio à névoa de desilusão.


– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.

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