texto por João Paulo Barreto
Quando Elvis Presley conheceu Priscilla Ann Wagner, ela tinha apenas 14 anos. Ele, então com 24, já era uma lenda da música. Naquele momento, servia ao Exército dos Estados Unidos e estava na Alemanha. O ano era 1959 e a jovem, filha de militares, estava lá por conta dos serviços prestados por seu pai, um militar de alta patente. O Rei do Rock tinha acabado de perder sua mãe, Gladys, meses antes. Ela era uma mulher fundamental na sua vida e por quem o artista nutria uma devoção única. Para Elvis, Gladys era um símbolo de pureza e inspiração que se equiparavam à virgem madona católica, espelhando-a em sua, quase fanática, própria fé religiosa. A morte de sua progenitora poucos meses antes, juntamente ao exílio forçado pelo Tio Sam, tornou o cantor ainda mais frágil em sua psique, algo que seu visual estonteante, bem como sua voz e talento extraordinários, não tardariam em deixar de esconder.
O roteiro de “Priscilla” (2023), filme escrito e dirigido por Sofia Coppola, pontua que encontrar a jovem que viria a ser sua esposa, naquele momento de ainda luto, representou para Presley quase que uma salvação bíblica. Não que a então adolescente tivesse qualquer consciência de representar um status de pureza celestial naquela proximidade com alguém que ela mesma já tinha como ídolo musical. Para o Rei, porém, tal pureza da menina era vista como algo sagrado, mas, ainda assim, deslocado e bizarro de se conceber em um relacionamento que se pretende amoroso. Para Priscilla, o encantamento diante de um homem como o filho de Gladys era um processo de descoberta de um amor ao qual ela, como seria de se esperar, buscaria dar vazão de modo romântico, afetivo e, finalmente, carnal. E é justamente nesse desequilíbrio entre as formas de dedicação àquela sintonia (ou ausência dela) que o filme homônimo se desenvolverá. E, infeliz e previsivelmente, esse desequilíbrio descambará para a violência física e psicológica.
Desenhando sua abordagem a partir desse viés, mas trazendo o ponto de vista da própria Priscilla (vivida pela jovem Cailee Spaeny, que consegue entregar tanto a insegurança quase infantil quanto a determinação adulta de sua personagem) em seu amadurecimento precoce ao se ver naquele turbilhão emocional, Coppola, a partir do livro escrito por Sandra Harmon e pela própria ex-esposa de Elvis, coloca em destaque o desenvolvimento de sua protagonista diante dos conflitos internos e externos que se acumularão durante a década de 1960 e começo da seguinte. Ausente da vida da adolescente por três anos, tempo em que a vida da então menina parou (uma pena que a elipse do filme, ao ilustrar essa passagem, se atenha a algo tal simplório e preguiçoso quanto o arrancar de folhas em um calendário), quando retornou aos Estados Unidos e continuou sua carreira como ator, Elvis retoma seu contato com a jovem somente quando esta chega aos 17 anos. É quando ele a convida a passar uma temporada nos Estados Unidos, para onde é levada de primeira classe e sob condições restritas impostas pelo pai militar da menina. E é quando a estranheza incomum daquele relacionamento começará a se tornar evidente.
A presença física impressionante de Jacob Elordi cria, desde sua primeira aparição, um contraste imagético entre o seu Elvis e a Priscila de Spaeny. Perceptivelmente muito mais alto do que era o verdadeiro Rei do Rock, que tinha 1m e 82cm, Elordi surge em cena com seus 1m e 96 cm de altura a causar certo estranhamento para qualquer pessoa que conheça minimamente a história de cantor. A opção acertada em escalar o ator, no entanto, se justifica justamente por contrastar-se à fragilidade física de Priscilla, que encontra na diminuta Cailee Spaeny o contraste preciso da animosidade que eventualmente ocupará, naquela relação, o lugar do que antes eram gentilezas e carinhos amorosos.
E acompanhado dessa gradativa falta de afeto, vêm as excentricidades do cantor, que diante da citada objetificação sacra da jovem ainda virgem com quem está se relacionando (alguém que, de forma humana e natural, quer dar vazão à sua paixão de forma física, mas é censurada pelo namorado), criam em Elvis as nuances de alguém com sérios problemas comportamentais e ligados a um doentio sentimento de posse. Some isso a um constante uso de remédios, algo que notoriamente se tornará um problema físico para Presley no futuro, e a percepção de um, em muito breve, declínio daquele relacionamento se dá de maneira antecipada. Para ele, Priscilla passa a ser um modelo idealizado. Alguém que ele busca moldar ao escolher suas roupas, seu cabelo, sua maquiagem. Em sua visão anormal de afeto, a presenteia com uma arma de fogo, algo que já carrega na cintura e tem na já conhecida patota que o cerca, vários a empunhar outras. Pouco a pouco, a jovem começa a perceber e a se incomodar com aquele modo curioso de vida. Mas o amor que sente ainda a faz seguir.
A plasticidade de sua protagonista também é algo colocado em destaque por Sofia Coppola em detalhes de sua direção, como quando o filme se inicia com enquadramentos dos objetos de maquiagem que Priscilla usa e peças de belas roupas, algo natural a qualquer jovem vaidosa. Tais inserções, porém, vão encontrar sua rima ao serem contrastadas ao momento em que, já em trabalho de parto e precisando ir ao hospital, a agora gestante madona idealizada de Elvis precisa parar para colocar seus cílios postiços e seguir para o hospital. Possivelmente, teria sido hostilizada pelo homem de sua vida se não estivesse bonita como ele imagina necessário naquele momento de tamanha de dedicação física ao qual ela estava prestes a se submeter.
Com foco evidente na vida além dos holofotes de Elvis, “Priscilla”, o filme, consegue equilibrar de modo até competente a disparidade entre o que se seguiu para ambos nos seis anos que durou seu casamento, momento em que a carreira do músico passou por altos e baixos e culminou com a série infinita e nociva de apresentações em Las Vegas. Essa fase até surge em uma montagem de uma elipse bem mais competente que a do calendário, diga-se de passagem. Mas trazendo seu olhar para o que acontece com sua protagonista, o roteiro de Coppola chega até a pincelar, mesmo não aprofundando como deveria, o famoso caso que Priscilla teve com seu instrutor de karatê, atividade que ela passou a fazer para suprir o tempo em que era relegada durante as turnês e gravações de filmes do marido.
Perceptivelmente ausente, o repertório musical de Elvis Presley até que não faz falta na trilha sonora escolhida por Sofia Coppola, uma vez que, se fosse dado destaque às suas músicas no contar da vida de Priscilla, todo propósito do filme se perderia. E seu fechamento, ao som da clássica versão de 1973 de “I Will Always Love You”, de Dolly Parton (que Whitney Houston imortalizaria ainda mais nos anos 1990), capta com precisão o ato definitivo de liberdade de Priscilla que, mesmo nutrindo o sentimento pontuado pela canção naquele momento chave de decisão, escolhera não mais ser Presley.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.