entrevista por Leonardo Vinhas
Mariano Esain é uma das maiores referências do underground argentino – e isso já há mais de três décadas. Porém, apenas agora, em 2023, ele saiu com seu primeiro disco solo. “Inventario” (Fuego Amigo Discos) é uma coleção de canções cuja essência folk e pop é distorcida por ruídos, interferências e texturas sonoras. É dream pop para essa era onde nem o sonho é silencioso, delicadas peças sonoras para embalar insônia.
O álbum sai assinado como “manza / Mariano Esain”. O apelido de toda a vida, pelo qual também é conhecido no mundo musical, se soma ao nome de batismo. Seria uma dupla afirmação de identidade, mas a verdade é que há um terceiro reforço pessoal: a música honra a assinatura melódica que fez sua fama à frente do quarteto indie Valle de Muñecas, com o qual gravou quatro discos, fez incontáveis shows (dois deles no Brasil, ambos em 2013, nos festivais Paraíso do Rock e El Mapa de Todos), e firmou um estilo único dentro do cenário underground argentino.
Manza sempre foi um esteta do pop enquanto compositor, um apreciador de bons refrões e de melodias acessíveis. Ouça “Grandes Éxitos” ou “Diario de Viajes”, desse mais recente lançamento, e veja que isso não mudou. O que muda – bastante – é a roupagem que ele decidiu dar às suas composições, em um disco onde tudo, da execução à masterização, ficou a seu cargo, sem que em momento algum ele incorresse na armadilha da autoindulgência.
Por vídeochamada, o músico e compositor conversou com o Scream & Yell contando a gênese desse disco, os dilemas criativos que enfrentou durante o processo, e o destino do Valle de Muñecas.
Apesar da estética mais lo-fi e com bastante espaço para ruídos, me parece que esse disco solo traz muitas das influências que sempre estiveram presentes no seu trabalho. Você diria que está bebendo nas fontes de sempre, mas mirando a criação de algo diferente, ou chegou mesmo a buscar outras inspirações?
Tem um montão de músicas que escutei na minha vida que de alguma maneira se colou na música que faço. Mas também acredito que, em cada projeto, cada um tem algumas influências que prioriza, e que em geral têm a ver com as pessoas com quem se está tocando. Acho que, neste disco, acabaram saindo algumas coisas que sempre estiveram por aqui, mas de forma mais subliminar, ou que apareciam antes em pequenos momentos. Mas de fato, não tem nada de tão novo assim. A maneira de pensar uma canção, de escrever melodias, é a mesma de todos os meus discos anteriores, mas em uma roupagem distinta, digamos. Mas tem algo meio conceitual também, que é o ponto de partida do disco. Eu sabia que queria trabalhar com ruídos e com paisagens sonoras, com sons degradados ou distorcidos, e também sabia que queria abrir mão da ideia de ter uma seção rítmica (nota: baixo e bateria) tal qual se costuma pensar em um disco de rock. Não queria que soasse como uma banda e, ao mesmo tempo, não queria fazer um disco acústico. Então comecei a procurar um pouco em meio a toda a música que escuto onde estava essa ideia que me interessava, e acabei encontrando as referências que buscava em coisas que estavam no que eu ouvi em toda a minha vida, mas também em muita música nova. Quando comecei o disco, eu pensei em mim como um crooner com uma orquestra por trás, só que, em vez de uma sinfônica, com cordas e metais, era uma orquestra de colagens e ruídos, provenientes de acoplamentos de guitarra, gravações do campo, samples, teclados processados com equipamentos de guitarra e pedais. Essa era a ideia.
É um disco que você gravou 100% solo. Quando compõe para o Valle de Muñecas, imagino que você já compõe pensando em quem vai executar as composições. Então queria saber como foi estar responsável por tudo, como foi compor sabendo que caberia a você executar tudo o que estava criando.
Não sei se quando eu faço as canções tenho em mente quem vai tocar o que – isso pro Valle de Muñecas. A grande novidade disso tudo comparada ao trabalho com a banda é colocar-se diante de uma folha completamente em branco. São tantas as possibilidades que é meio difícil dizer pra onde ir. Quando comecei ainda não tinha bem claro como eu ia fazer. Tem algumas canções que tiveram muitas versões antes de chegar ao que finalmente ficou no disco. A última canção do álbum foi também a última que eu terminei, mas foi a primeira em que comecei a trabalhar. A primeira demo dela tinha bateria, baixo e guitarra, como uma base do Valle de Muñecas, e conforme fui armando o disco com as outras canções, olhei para essa faixa e vi que ela estava totalmente deslocada do contexto. Voltei a pensar nela, e fiz mais umas três versões até chegar a essa última, todas bem diferentes. Com uma banda, você já tem uma estrutura básica, e sabe que vai usá-la para armar a canção. Pode ser que algumas coisas mudem durante a produção, mas você já tem coisas estabelecidas que te ajudam a tomar uma decisão. A essa altura, já estou com outro projeto na cabeça, e esse disco me serviu um pouco para eu saber mais ou menos qual é essa minha base de trabalho [enquanto solista], qual vai ser a minha “orquestra”.
Gosto muito de uma fala do Florian Schneider na qual ele diz que o Kraftwerk fazia “música folk do século XX”, e que essa era a ideia deles desde o começo, porque lhes parecia absurdo que a música folk de um mundo pós-guerra ainda fosse feita com instrumentos do século anterior. Você gosta muito de folk, tanto que é esse o título do segundo álbum do Valle de Muñecas, e fico pensando se esse seu disco não é, de certa forma, uma vontade de fazer música folk para o século XXI, um período tomado por ruídos, dissonâncias e vazios.
Nunca tinha pensado dessa maneira (hesita). Mas sim, acredito que é um disco de canções para o século XXI. A canção é o material principal da música folk, então poderia ser (risos). Há alguns anos, um jornalista argentino escreveu sobre mim e usou a palavra “soundwriter”, e gosto muito dela para me definir, tanto que a emprego nas minhas biografias nas redes sociais.
Esse disco começou a ser gestado durante a pandemia?
Não, algumas coisas vêm de antes, até. As primeiras demos são do verão anterior à pandemia.
O que levou, então, a que ele demorasse tanto tempo para ser finalizado e lançado? Por que só está saindo agora, no final de 2023?
Acontece que em todos os discos do Valle de Muñecas e também nesse sou eu quem se ocupa de tudo: as gravações, a mixagem, a masterização, e me custa encontrar tempo suficiente para dar conta de tudo, porque obviamente tenho que priorizar as pessoas que me pagam para fazer isso. Eu não gosto de dedicar o tempo livre, o tempo que sobra para meus projetos. Eu prefiro pegar um momento quando sei que vou poder ocupar-me exclusivamente dele, tipo ter uma semana inteira para ficar dedicado, para que eu possa me colocar no clima que a música que estou fazendo necessita. Às vezes não é fácil encontrar esses momentos. Durante o primeiro ano da pandemia pude desenvolver bastante esse disco, mas quando saímos da pandemia, tive uma enxurrada de trabalho. Mesmo com a crise econômica, foi um período muito intenso. Eu tiro meu sustento do trabalho como técnico de som e como produtor, e no primeiro caso, é algo que me faz viajar muito, ficar em turnê por vários lugares, e essa não é a situação ideal para encarregar-me de um projeto no qual tem tanto conteúdo emocional.
Por falar nisso: a estética sonora pode ter mudado, mas o universo lírico desse disco está bem dentro do que costumamos ver em suas composições: inconstância, solidão, desconexão, isolamento. São temas pessoais recorrentes, ou apenas parte de um universo que você gosta de explorar enquanto compositor?
Um pouco das duas coisas, acho. Mas no que diz respeito ao lado mais confessional, isso não quer dizer que eu esteja vivendo ou sentido isso todos os dias o tempo todo. Como o melômano que sou, gosto muito das músicas com letras que falam disso, e sei que criei um corpo de obra no qual muitas letras estão centradas nesses tópicos. Então é bem meio a meio: metade vem de ter vivido situações semelhantes e a outra metade vem por eu ter consumido um monte de obras que giram em torno disso.
É um trabalho totalmente solo, de estúdio, como já falamos. Ainda assim, você pensa em algum formato no qual ele pode funcionar ao vivo?
Sim, é um “work in progress”, mas estou pensando (risos). Fiz alguns shows com guitarra elétrica, disparando algumas texturas de fundo, alguns momentos instrumentais. Agora em dezembro faço uns shows em Buenos Aires e vou ser acompanhado por um músico amigo, mas estou pensando em armar alguma estrutura… Não acho que as versões ao vivo tenham que ser fiéis às do disco, o que me parece é que tenho que capturar o espírito que é transmitido por essas canções e trazer uma estética similar, mas não que sejam os mesmos sons ou os mesmos instrumentos.
Estamos terminando a entrevista, mas é inevitável perguntar: e o Valle de Muñecas? Vocês estão em um desses “hiatos indefinidos” que viraram moda recentemente? (risos) Ou pararam de vez?
Acho que vamos voltar a tocar, mas me parece que, para que isso aconteça, nós quatro temos que estar com vontade ao mesmo tempo. Mas não acho que isso seja difícil. Nos damos bem, sempre um sabe o que o outro está fazendo, e Fernando [Blanco, guitarrista] e Mariano [López Gringauz, baixista) estão tocando juntos em uma banda que ainda não estreou ao vivo (Viaje Relámpago), mas que tem boas perspectivas. O que eu tenho dificuldade é de imaginar o Valle de Muñecas como uma banda em funcionamento constante, com dois ensaios por semana, como era até 2019, mas não me custa nada voltar a tocar a cada tanto com a banda. Uma coisa que me veio à mente quando comecei a pensar em um disco solo foi que eu tinha feito discos muito bons com a banda, e que para o formato de duas guitarras, baixo e bateria, a gente tinha chegado muito perto do teto: eu não sabia o quanto melhor eu poderia fazer em um novo disco. Por isso eu precisava buscar novos formatos, outras cores para as canções. “La Autopista Corre del Océano hasta el Amanecer” (2011) e “El Final de las Primaveras” (2015) eram discos muito bons, e eu não sabia se iria poder fazer algo tão criativo sem me repetir. Eu teria que dar um salto muito maior. Ainda assim, tenho ideias de canções o tempo todo, e tem uma série de canções para as quais eu digo, “não, isso é para uma banda”, e quando imagino uma banda, imagino o Valle de Muñecas.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.