texto por Gabriel Pinheiro
Uma mulher acorda sem memória. Sem saber quem é ou onde está. Enterrada, a boca cheia de areia, os olhos grudados de lama, ela se vê, enfim, reencontrando a luz, retornando a um mundo que, aparentemente, lhe havia sido apartado. A personagem terá mais de um nome ao longo desta trajetória recomeçada, renascida: há um nome de agora, mas há outro do passado, que insiste em se esconder, enterrado pela areia do esquecimento. De início, vamos chamá-la de Cida. “Oração para desaparecer” é o novo romance da escritora cearense Socorro Acioli, autora do celebrado “A cabeça do santo”, publicado pela Companhia das Letras.
“Cheguei a me convencer de que talvez aquilo fosse uma área de transição, um descanso para o que viria depois. Vida e morte são mistérios que ninguém alcança. Tudo o que se fala sobre nascer e morrer é mera aposta. A morte é dolorosa, mas talvez o nascimento seja pior, e minha desgraça estava ali, entre uma coisa e outra”.
Cida desperta do outro lado do Atlântico, numa cidadezinha portuguesa chamada Almofala. Ali, um grupo de estranhos a resgata. Se, para a personagem, esse despertar soa estranho, para aqueles que a resgatam, o seu aparecimento – ou, digamos, renascimento – era um acontecimento muito esperado. ”Ouvia suas vozes apressadas comentando como era pesada, cuidado para o pescoço não quebrar e matar de uma vez, puxe o braço com jeito para não arrancar o ombro, que pele fria, será que a criatura está viva?” São muitos os mistérios que rondam, a partir de então, a trajetória de Cida. Qual o grave acontecimento que me levou até ali? De onde eu vim? Quem são estes que me ajudaram a renascer? Quem sou eu? “Morrer teria sido mais fácil que atravessar o túnel de terra, há um motivo para que esta sua vida prossiga”.
Em Almofala, Cida se vê obrigada a se reinventar e construir uma nova persona. Neste processo doloroso, a memória surge com breves e inconclusivos lapsos, sonhos que insistem em entregar pouca ou nenhuma explicação. “Sonhar era como andar sobre uma fumaça frágil, eu caía sempre”. Sem contar com o passado, resta começar a construir no presente um novo futuro. E este novo futuro passa a ser trilhado ao lado de Jorge, uma paixão avassaladora e inesperada. Mas talvez exista um amor que permaneça aceso no tempo passado.
“Só nos resta aceitar e seguir vivendo porque estamos nessa aventura às cegas. Todos nós. Quando a gente acha que entendeu tudo, o caos aparece para relembrar que somos coisa nenhuma”.
“Oração para desaparecer” é um livro que transborda encantamento. É mesmo mágica a história que temos em mãos. Numa prosa sedutora, Socorro Acioli nos fisga, construindo uma narrativa que pouco a pouco se revela, nunca entregando tudo, sempre deixando que algo pulse por debaixo da folha, nas entrelinhas. Num texto que desafia a lógica do tempo, o romance atravessa gerações, remontando um Brasil colonial e as feridas que permanecem abertas após séculos de violência e resistência. Socorro escreve um texto que é uma espécie de cartografia desenhada pelo afeto e pelo amor, olhando para o exílio e para a memória de uma maneira originalíssima. Das melhores surpresas que o ano, quase no final, reservou em nossa literatura.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.