MEU DISCO FAVORITO DE 2023 #5
“Chill Kill“, Red Velvet
escolha de Ana Clara Matta
Lançamento – 13/11/2023
Selo – S.M. Entertainment
Ouça – Spotify / Youtube
“Medo, a atração do não-usual, acaso, o gosto por coisas extravagantes são todas estratégias que podemos sempre evocar sem o medo de enganação. Existem contos de fadas a serem escritos para adultos, contos de fada ainda quase azuis”, BRETON, André
Talvez você não espere que seu primeiro instinto após ouvir o novo disco de um veterano “girl group” de pop sul-coreano seja reler o “Manifesto Surrealista” de André Breton ou rever um filme de David Lynch.
A ilusão da ordem causada por regras e categorias é uma das forças mais presentes na manutenção da racionalidade e, sinceramente, da paz de espírito humana. Ser capaz de olhar para um objeto e dizer, com absoluta certeza, o que ele é. Qual é seu nome. Se ele deveria, ou não, estar naquele local ou contexto. Ser capaz de definir o gênero do seu interlocutor sem a armadilha da androginia. Saber se uma obra é de comédia ou drama, e dessa maneira se sentir confortável em rir ou chorar na frente dos seus pares. Saber se uma música é feita para dança ou contemplação, para uma discoteca ou uma orquestra. Prevenir a qualquer custo a dissonância cognitiva.
Você move um objeto em uma sala sem avisar para a pessoa, ausente no momento, que mora ali. Quando a pessoa chega em seu lar, a dúvida paira sobre sua cabeça. Algo está diferente? Algo está fora do lugar? Se sim, o que? E se o elemento estranho é identificado, que tipo de ameaça o moveu? A casa é o ápice da sensação de segurança humana, e qualquer perturbação nesse ambiente é amplificada ao máximo. “A ligação está vindo de dentro da casa”, já diriam os roteiros de horror.
Na arte, as noções de gênero e categoria são espaços cheios de códigos em que você se sente confortável em apertar “play” sem o risco de alguma disrupção grande demais. Um desses gêneros, curiosamente, tende a se passar dentro da casa, dentro da sala, um espaço simbólico seguro dentro de um espaço físico seguro – a Sitcom, comédia focada no cotidiano familiar e entre amigos, com situações engraçadas e inofensivas a cada episódio. Em obras como o viral “Too Many Cooks”, do canal Adult Swim, e no curta-metragem surrealista “Rabbits”, de David Lynch, a ameaça invade a forma da sitcom, e de repente você não está mais seguro no mais confortável dos ambientes. Lynch, sobre sua obra, afirma: “O lar é um local em que as coisas ruins podem acontecer” .
Esse ambiente também pode ser a canção pop, a sempre segura canção pop, que você escuta desde a infância em cada rádio e plano de fundo, algo harmônico e melódico interrompido pela agressividade de um ruído inesperado. Ouvindo “Chill Kill”, álbum novo do quinteto Red Velvet, meu cérebro retomava sempre imagens do curta “Rabbits” de David Lynch, de algo estranho e ameaçador acontecendo dentro do mais familiar dos ambientes.
As cores sempre foram importantes para a compreensão da obra da Red Velvet. Desde a estreia do grupo foi determinado que a concepção de cada novo lançamento oscilaria entre o conceito “Vermelho”, animado, alegre, otimista, dançante, e o conceito “Veludo”, sempre de tons escuros, temas sombrios, perigo, sensualidade e imagens remetentes ao universo noir. Pouco antes do lançamento de “Chill Kill”, a integrante Kang Seulgi disse aos fãs que eles poderiam, pela primeira vez na carreira da Red Velvet, esperar a união dos dois conceitos. A entrada do perigo no universo do “vermelho” Red Velvetiano, ou, de maneira ainda mais desconcertante, otimismo e alegria presentes em plenos temas sombrios do “Veludo”. Foi exatamente o que “Chill Kill”, a música-título do terceiro álbum completo do girl group, entregou.
“Eu não saberia o que fazer com cores. Cor para mim é real demais. É limitador. Não permite muito do sonho. Quanto mais preto você joga em uma cor, mais onírico fica… preto tem profundidade. É como uma pequena saída; você pode entrar nela, e porque continua a ficar mais escura, a mente é ativada, e muitas coisas que estão acontecendo ali se manifestam. E você começa a ver o que você teme. Você começa a ver o que você ama, e se torna como um sonho.” David Lynch em “Lynch on Lynch”.
“Chill Kill” começa com floreios instrumentais dignos da trilha sonora de um conto de fadas e um suspiro limpo de Wendy, vocalista principal, interrompidos por Seulgi acompanhada da entrada do denso contrabaixo – “Chill kill entra como trovão” – uma cena trágica se desenhando. Toda a estrutura instrumental da música pinga reverb e distorção. A cada pré-refrão, a aceleração instrumental e notas altas repentinas perturbam a superfície até que a tensão esteja máxima, uma crise prestes a irromper no refrão. Mas o refrão traz no primeiro plano apenas euforia – “Não pense sobre amanhã, se esqueça da sua tristeza” – enquanto no background se escondem sussurros ameaçadores e ataques de synth distorcido que trazem desconforto e estranhamento enquanto a letra reafirma sua segurança e tranquilidade. A ponte é interrompida por uma nota alta – um grito? – uma batida antes do esperado. Um jump scare, estratégia dos filmes de horror, transformada em estratégia musical.
“Eu não sei. (Pausa) Eu tive um sonho. Na verdade, foi na noite em que conheci você. (Olha para cima através do pára-brisa, gradualmente se encantando enquanto explica o sonho) No sonho, existia o nosso mundo, e o mundo era escuro pois não existiam rouxinóis, e os rouxinóis representavam amor, e por muito tempo, existia apenas essa escuridão, e de repente, milhares de rouxinóis foram soltos, e eles mergulharam dos céus e trouxeram essa luz cegante de amor, e parecia que amor seria a única coisa que faria qualquer diferença. E fez.” Veludo Azul (Dir. David Lynch)
.A tensão dos versos escuros é sempre interrompida pelo otimismo e calor dos refrões em “Chill Kill”, mas nem tudo é luz. Algo está à espreita em cada canto do [álbum, mesmo quando a perfeição vocal dos “rouxinóis” do Red Velvet nos asseguram que tudo está bem. O clipe da canção tira essa análise do campo da suposição e coloca as cinco membros em um cenário de violência e crise, encobrindo um assassinato.
Esta é, inclusive, a melhor maneira de apreciar a faixa-título do novo disco da Red Velvet, num processo de expansão da música através do YouTube. O clipe reforça sua mensagem, uma versão com “sons ocultos” expandidos produzida por um fã aumenta sua compreensão da produção, e o “Behind the scenes” da gravação mostra o processo criativo de intérpretes que, com alterações em melodias, criações de adlibs e desenhos de harmonias, se tornam co-criadores.
A segunda música do álbum dá continuidade a essa brincadeira de luz e sombras. Em “Knock Knock (Who’s There?)”, o Red Velvet mais uma vez reinventa uma canção clássica (recentemente lançaram “Birthday” sobre uma base de Gershwin e “Feel My Rhythm” sobre uma base de Bach). A obra em questão, dessa vez, é a “Dança da Fada Açucarada”, do balé “O Quebra-Nozes”, de Tchaikovsky. Nessa música, o uso da celesta buscava trazer leveza e encantamento para a personagem, fada que atrai crianças para um mundo de doces e balas, mas esse mesmo uso de celesta influenciou anos e anos de trilhas sonoras de filmes de horror e é usada pelo Red Velvet numa história de atração fatal, romântica, sexual e perigosa. Um outro tipo de encantamento.
Esse tema de truques, ilusão e magia percorre o álbum em faixas como a r&b descaradamente jazzy de “One Kiss” e nas camadas de synth-pop, guitarra e batidas de deep house do destaque hipnótico “Will I ever see you again?”. A produção também faz sua parte para esse show de ilusionismo – em “Underwater”, canção sensual sobre se apaixonar e afogar no outro, o processamento do áudio cria a sensação de algo que se ouve embaixo d’água.
O mundo dos sonhos, tão caro a qualquer surrealista, Breton, Lynch ou o Red Velvet, é o protagonista em “Nightmare” – cantada como uma inocente canção de ninar, celebrando o pesadelo, unindo sinos agudos e drones de baixo, e falando com uma casualidade assustadora “Tudo é pesadelo, pesadelo, apenas desaparece… só tente aproveitar.” O Red Velvet quer que enxerguemos o perverso por trás do verniz de normalidade, claro. Mas não quer que apenas enxerguemos – quer que aproveitemos um pouco também. Toda beleza tem um pouco de terror. Toda segurança tem um pouco de ambiguidade. A escuridão é bonita pois nela podemos ver o que quisermos – um pouco de amor, um grande perigo.
“A imagem é uma pura criação da mente. Ela não pode nascer de uma comparação e sim da justaposição de duas ou mais realidades distantes. Quanto mais a relação entre as duas realidades sobrepostas é distante e real, mais forte a imagem será – maior é seu poder emocional e realidade poética.” REVERDY, Pierre
– Ana Clara Matta (@_ana_c) é editora do Ovo de Fantasma e escreve para o Scream & Yell desde 2016.