entrevista por Leonardo Vinhas
“Muitas pessoas que viveram as décadas de 1980 e 1990 tendem a ser puristas, ficam tão presas em qual pedal usar, e acabam não trazendo o que considero mais interessante, que é ouvir um rock que mexe com as emoções primeiramente, que te toca, que te faz suspirar seja por conseguir expurgar sentimentos através do cantar em coro junto com a banda ou se conectar com o instrumental de forma mágica”.
A frase acima é de Nath Pollaris, baixista da Lúbrica, e pode, em boa medida, ser usada para falar do resultado obtido no primeiro EP da banda paulista, “Descompasso” (2023). Não é nada de novo, ainda assim soa fresco. Não mira a genialidade ou a “esperteza”, e sim o prazer e a fruição. Antes do conceito, traz a alegria de fazer música, sem ficar ensimesmado na própria inabilidade de comunicação ou vaidade.
Faz tempo que você não vê esses termos associados a uma banda nova de rock? Se sim, fico feliz por você, e recomendo que dê uma escutada na banda. Se não, manda a dica dessas bandas pra esse repórter, por favor. Música assim é sempre bem-vinda, e é por isso que o Scream & Yell foi entrevistar a banda para conhecer mais do que se trata.
“Descompasso” abre com uma quase vinheta desnecessária, “Mari e Joana”, mas logo engrena em quatro faixas em que as referências do pós-punk, da cena nova-iorquina dos anos 2000 e o indie dos anos 2010 se fazem presentes. Porém, a crueza e a economia dos ingredientes tiram toda a cara de música requentada que a mistura poderia ter, e o resultado é um EP veloz, divertido e com toda a pinta de que pode ser o primeiro passo para composições ainda mais interessantes.
Mas sem futurologia por ora. O papo online com Nath, Rafaela Antonelli (bateria), e Gabriel Felipe Jacomel (voz) – ficou de fora o guitarrista Diego Lucon – foi sobre o breve passado da banda e o momento atual. E, claro, versa sobre a música.
“Descompasso” parece um título adequado para o momento atual, por várias razões – não faltam coisas descompassadas por aí (risos). Mas vamos nos ater às canções. Esse título, de alguma forma, se relaciona com o processo de composição ou de produção da banda?
Gabriel: Totalmente! Sempre que tentamos explicar o próprio processo de formação do grupo, e o modo como as músicas surgiram, a coisa fica tão repleta de idas e vindas que até a gente se perde. A primeira versão de “Pixels”, por exemplo, é de 2014, antes mesmo de a banda nascer oficialmente. De lá pra cá, eu fiquei torrando a paciência da Rafa e do Diego pra gente retomar o processo de composição – e tomando ghosting a torto! Em 2019, as macumbas deram certo e surgiu a Lúbrica, surgiu Nath, e todas essas músicas praticamente com a estrutura que estão no EP. A dinâmica de composição também ficou mais aberta, e atualmente acredito que todos se sentem mais à vontade pra mostrar composições, já que o estilo da banda foi irremediavelmente se expandindo. Quer dizer, entre o surgimento da Lúbrica em 2019 e o lançamento em 2023, muita coisa aconteceu (cof), mas parece esses dias… rola um descompasso interno também, a vida como um sonho de alguém que está pra acordar hora dessas.
Percebi uma influência tanto do pós-punk original como de bandas que beberam nessa fonte em anos mais recentes – a cena nova-iorquina dos anos 2000, por exemplo. Digo isso pelos timbres, pela condução rápida das melodias e até pela estética dos vocais masculino e feminino em contraste/complementação. É um dos referentes musicais da banda mesmo, ou a mira era outra?
Gabriel: Com certeza. Eu inclusive assisti neste ano àquele documentário “Meet me in the Bathroom” (nota: baseado no livro do mesmo nome, cobre os bastidores – e muitas fofocas – da cena nova-iorquina do começo do século). Pra mim, que tinha 15 anos em 2000, ano em que fiz meu primeiro show, essa cena de NY foi muito formadora de caráter. Então, claro, temos uma camada de referências mais óbvias do pós-punk e do rock alternativo (The Smiths, Pixies, The Smashing Pumpkins, Nirvana, Hole e John Frusciante, na minha opinião, são as mais gritantes), e depois uma camada de referências mais sutis onde o bicho pega mesmo. O Diego tem um talento enciclopedista pra tudo que é banda obscura de vertentes posteriores ao punk, gringas e nacionais. Rafa tem um ouvido mais voltado ao rock clássico, e a Nath, pro indie pop. Eu sou obcecado por Fiona Apple e Miles Davis em igual medida… daí já viu! Pessoal que foi nos shows já falou que lembra Terno Rei, Sonic Youth, Charlie Brown Jr. (risos). E, óbvio, a coisa dos vocais dialoga muito com a galera new wave. Mas também sempre tive como um norte a coisa do Queen, de todo mundo cantar, trazer composições, e total liberdade estética.
Os registros da banda em estúdio seguem aquele que, hoje, é o caminho inescapável: primeiro os singles, agora um EP, quem sabe um álbum algum dia. Pra vocês, que não viveram essa “era do disco”, faz sentido pensar em álbum, ou isso só é papo de jornalista e músico véios? (risos)
Gabriel: Olha, não quero expor ninguém aqui, mas todo mundo já está com um pezinho na casa de repouso… Geral viveu os loucos anos 80 (risos)! Nosso produtor fala que fazemos “rock jovem”, então creio que a gente engana bem. Mas sim, eu mesmo sou um aficionado por LPs e por essa relação mais estendida e contemplativa junto a uma obra, de mergulhar em um álbum por sucessivas audições, e concordo que há aí uma questão geracional com tudo que é mídia convergindo para a hiperatividade e o déficit de atenção. Dá até uma tristeza quando você vê uma artista de que você gosta largando mão de projetos com mais fôlego em prol de uma sucessão de petiscos desconexos que não saciam a fome de tudo. Muitos argumentam com a relação custo/benefício, o que dá pra entender, mas não acho que tudo se resuma a termos mercadológicos. Por sorte, vivemos em uma época em que também existe a possibilidade de um Mac DeMarco lançar um álbum excelente com 199 músicas. Long live long play! Como não sofremos de forma alguma com bloqueio criativo, material pra isso a gente tem!
Rafaela: Aprofundando essa questão, acho que vale enfatizar o quanto gostamos daquela ideia de álbum-conceito, de juntar outras artes, referências paralelas etc. Aceitamos bem o formato atual de singles isolados, mas também temos essa preocupação com produzir uma “obra completa”…
Gabriel: Exato, a própria ordem das músicas no EP foi pensada no intuito de sugerir uma espécie de continuidade em torno de uma narrativa maior.
Nath: Eu super curto estar em um momento em que podemos tanto apreciar os formatos mais atuais de reprodução que facilitam a experiência musical de forma dinâmica, como super amaria poder ter um material físico com tudo que tem direito (encarte com letra, cifra, fotos, etc), e ficaria mais feliz ainda de saber que em algum lugar do planeta, pessoas se conectam com nosso trabalho a ponto de querer ter essa “experiência completa” que vivemos alguns anos atrás de ver, pegar, folhear… Se um dia conseguirmos ter condições de preparar esse tipo de material com um álbum de 12 faixas, vou dar um check na minha lista de coisas a serem conquistadas.
“Descompasso” é o primeiro registro formal da banda. O quanto ele correspondeu às próprias expectativas da banda? Deu aquela satisfação completa, ou veio já aquela coisa de “hmmm, o próximo vamos ter que mudar isso e aquilo”?
Gabriel: Superou nossas mais altas expectativas. Tínhamos total confiança na qualidade das músicas, mas quando o Henrique assumiu a produção, foi a hora de se olhar e falar: “OK, apertem os cintos!” Ele tem uma abordagem quase arquitetônica do som, um ouvido muito atencioso pra timbragem e uma boa noção de onde queria chegar. Isso tornou a captação mais robusta, com uma sobreposição de takes muito bem cuidada. Antes a gente estava pensando em algo mais cru, com os vocais enterrados na mix… Ele falou que a voz estava muito bonita pra fazer uma sandice dessas (risos).
Nath: Tenho muito orgulho desse material, realmente superou todas as expectativas! Na real, do jeito que sou ansiosa e neurada, pra mim o sentimento é de “caramba, vamos conseguir fazer algo tão gostoso no próximo lançamento?”. Acho muito massa como conseguimos, mesmo sendo tão “experientes de vida” (risos), fazer música com essa sensação de “rock jovem”, como o Gabs comentou. Muitas pessoas que viveram as décadas de 1980 e 1990 tendem a ser puristas, ficam tão presas em qual pedal usar, e acabam não trazendo o que considero mais interessante, que é ouvir um rock que mexe com as emoções primeiramente, que te toca, que te faz suspirar seja por conseguir expurgar sentimentos através do cantar em coro junto com a banda ou se conectar com o instrumental de forma mágica. Nos poucos shows que fizemos eu senti essas emoções ali como a pessoa que executa parte dessa obra, mas também senti a conexão com as pessoas que estavam curtindo de uma forma que me pegou profundamente. Então sim, pra mim esse trabalho está do jeito que deveria ser!
Agora, falando um pouco mais amplamente sobre isso, tem uma questão que sempre me chama atenção quando vejo bandas novas (de formação e de idade). O rock está cada vez mais nichado, com público e projeção menores, escassas chances de tocar sem tomar prejuízo e, dependendo do ambiente, gozando de grande má vontade por parte dos ouvintes. Como é tentar construir uma carreira com uma banda no meio disso tudo?
Gabriel: Nossa, é um equilíbrio sutilíssimo. Porque adoramos tocar ao vivo, tem ali uma magia insubstituível quando nós quatro nos juntamos pra fazer música, então sempre faremos o possível pro convite virar em meio a todas essas situações adversas que atingem a cadeia de ponta a ponta. Mas também chegamos a um ponto em que passamos mais da metade das nossas vidas fazendo corre de show e fomos aprimorando nosso faro pra roubada (risos). Ninguém merece chegar na hora de tocar e estar esgotada porque passou o dia inteiro pra cima e pra baixo, montando e desmontando. Temos conseguido não ficar responsáveis pela produção dos eventos, o que tira um enorme peso das costas. Mas isso frequentemente gera algum tipo de ônus, quando a gente vê estamos subindo novamente no palco sem uma mísera passagem de som. E segue o baile!
Nath: O Gabs resumiu bem! (risos)
Todos os integrantes estavam envolvidos em outras bandas antes do Lúbrica, todas bem underground. Esse é o espaço onde vocês querem transitar com o Lúbrica, ou há ambições de procurar ir além disso?
Gabriel: Nós temos uma espécie de acordo tácito que gira em torno de um respeito profundo pelo tempo de cada um, da manutenção da saúde material, mental e espiritual de todo mundo. Cada membro da banda tem mil projetos outros, e sempre será livre pra outros mil, o que só reforça a lealdade para com a Lúbrica, torna nossos laços mais fortes e resistentes a intempéries climáticas, simplesmente porque a gente se dá bem e consegue extrair bastante alegria mesmo do nosso material mais melancólico. Agora, creio que cada pessoa tem suas próprias projeções e “cenários ideais” na cabeça em relação à nossa trajetória. Sei que o Diego é muito desconfiado de quaisquer unanimidades do mainstream… Claro, o mainstream sempre tentou fagocitar o underground quando conveniente – e, com as possibilidades da internet, a descartabilidade do novo tomou com certeza outras dimensões. Então a gente joga o jogo das redes sociais, mas queremos poder dar as cartas também. Sem se humilhar por reações, buscando chegar em pessoas que se conectem de maneira mais profunda com o que fazemos e evitando imediatismos pra que o trampo perdure e chegue a quem tem que chegar no momento mais apropriado, conforme as leis universais do eletromagnetismo.
Nath: Exatamente isso! Gabs sempre consegue sintetizar muito bem as coisas, ele tem o dom! (risos) Se consigo acrescentar algo, é que não odiamos a ideia de sermos notados e conseguirmos tocar em diversos canais que tragam grandes projeções, porém se isso compromete nossa forma de levar nossos projetos pessoais ou a nossa própria saúde, não tem motivos pra fazer da Lúbrica um peso. Então até o momento, estamos em paz com a maneira que temos levado a Lúbrica.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.