Meu disco favorito de 2023: ANOHNI, por Renan Guerra

MEU DISCO FAVORITO DE 2023 #1
“My Back Was A Bridge For You To Cross”, ANOHNI and the Johnsons
escolha de Renan Guerra

Lançamento – 07/07/2023
Selo – Secretly Canadian
Ouça – Youtube / Spotify / Bandcamp

ANOHNI é uma das maiores artistas de nosso tempo e isso não é exagero nosso, mas sim uma constatação de seus pares. De Marina Abramovic a Lou Reed, de Björk a CocoRosie, uma série de artistas já colaborou com ela e também já declarou seu amor de fã. Artista underground de origem inglesa, ANOHNI fez história no teatro experimental e de vanguarda de Nova York nos anos 90, misturando cabaret, experimentalismo e arte queer no palco. Ela aos poucos foi transbordando isso para a música com o projeto ao lado do The Johnsons, grupo que ficou marcado pela beleza e delicadeza dos arranjos atrelado às composições dolorosas e intensas da artista, que sempre falou de forma sincera em suas criações sobre a sua experiência enquanto pessoa queer nesse mundo extremamente violento. É desse processo que nasce um dos discos mais lindos deste século, “I Am A Bird Now”, de 2005.

Nos últimos anos, ANOHNI se aventurou em projetos solos e cada vez mais experimentais. A música eletrônica e a destruição do planeta foram o mote de “HOPELESSNESS” (2016), seu primeiro disco assinado de forma solo e que destrinchamos por aqui na época do lançamento. Depois disso, repetidas vezes ouvimos a voz da cantora encoberta cada vez mais por ruídos e distorções em processos bastante experimentais. Porém esse ano ela decidiu que era a vez de novamente colocar seus versos incisivos em canções de beleza límpida, com sua voz casada a construções que remetem ao soul dos anos 60 e 70. De Marvin Gaye a Nina Simone, a playlist de referências da artista é um passeio pela história da música negra norte-americana. E o que ela faz é dialogar com todas essas referências, criando conexões com temas que sempre estiveram lá, mas que foram muitas vezes deixados de lado, como a preservação ambiental e a violência urbana. Desse processo de pesquisa e de criação nasce “My Back Was A Bridge For You To Cross”, disco que marca o reencontro de ANOHNI com o the Johnsons.

Para a revista Interview, Bjork fez uma belíssima entrevista com ANOHNI (recomendamos muito a leitura!), e nesse papo a islandesa diz em certo momento que a voz de ANOHNI soa mais bonita que nunca neste novo disco e é uma percepção muito interessante, pois a maturidade e todos esses outros projetos criativos de ANOHNI parecem ter nos levado até esse momento em que sua voz parece ainda mais cristalina e etérea. Sob essas camadas de som criadas pelo the Johnsons, a artista parece ainda mais essa figura obtusa que soa inicialmente bela, mas que nos conta sobre coisas aterradoras e que nos faz caminhar por suas chagas e feridas. Se em “HOPELESSNESS” ela nos apresentava cenas de um planeta entrando em colapso por problemas de ordem política e climática, em “My Back Was A Bridge For You To Cross” ela nos coloca na perspectiva dessas personas que são destruídas pela violência – e aí temos canções que partem dessa perspectiva de corpos desviantes da norma binária cis-normativa ou mesmo pela perspectiva do planeta como um todo ao ser vilipendiado pelo homem – ou mesmo da perspectiva de quem comete essas violências.

Escrevendo assim, pode parecer que a tese é maior que o disco e que essas discussões político-sociais são tudo que o disco tem a oferecer. Não se deixe enganar. Se você ainda não ouviu “My Back Was A Bridge For You To Cross”, essa é a hora de parar esse texto e ir lá ouvir. Não se apegue inicialmente às letras, nem aos temas, se entregue inicialmente aos sons, às camadas de instrumentos, à voz de ANOHNI, e aí depois siga essa leitura. Audição feita, é interessante pensar que o disco da banda tem essa grandiosidade de ser uma obra de arte que entende as potencialidades da beleza e do horror dentro da criação artística. A beleza e experiência quase religiosa que há nesses sons se choca com a força imagética das canções. No refrão de “Spacegoat” ela canta “I can punch you / And take all of my hate / Into your body”, já em “Go Ahead” ela vocifera “Go ahead, kill your friends / You are an addict / Go ahead, hate yourself”. Duas canções sobre violência, ódio e flagelo, sobre como o mundo nos coloca – e às vezes nós mesmos nos colocamos – em situações de vulnerabilidade e horror.

E é interessante como já somos apresentados a tudo isso logo de cara, com a abertura absurda em “It Must Change”, uma canção pungente e forte com um poema amplo sobre a nossas desilusões, perdas e mudanças – seja de uma perspectiva completamente pessoal ou como uma leitura do colapso ambiental do planeta – tudo envelopado em uma harmonia crescente e forte que reverbera as referências setentistas. Outro exemplo interessantíssimo desse casamento entre canção poderosa e olhar desolador sobre o mundo pode ser visto em “Its My Fault”, uma espécie de elegia para o planeta e as nossas possibilidades de lidar com isso.

De todo modo, tudo isso não torna o disco de ANOHNI and the Johnsons em algo estóico ou desilusório, pelo contrário, há uma crença interessante na beleza da vida e na importância das nossas lutas. Exemplo disso está na poesia absolutamente bela de “Silver of Ice”, que relata a sensação de sentir o gelo derreter na língua como uma experiência quase metafísica sobre a vida. O interessante é que essa canção nasceu de um relato de Lou Reed, parceiro artístico e amigo pessoal de ANOHNI. Pouco antes de morrer, ele contou a ela sobre essa experiência de, já bastante debilitado, sentir essa sensação bastante única do gelo derretendo entre a língua e o céu da boca. Desse relato simples e delicado, ela compôs uma bela homenagem ao amigo, em uma canção sobre a paixão pela vida.

Essa força e essa paixão é reforçada nas figuras que cercam e inspiram a banda. A capa do disco é um retrato da ativista trans Marsha P. Johnson tirado pelo fotógrafo Alvin Baltrop. Aqui é importante revisitar a importância dessas duas figuras: Marsha é uma das figuras proeminentes na revolta de Stonewall, em 1969, evento marcado pelo enfrentamento entre pessoas LGBTQIA+ e a polícia de Nova York e que é considerado um símbolo da mudança de rota na luta dos direitos LGBTQIA+ no século XX. Posteriormente, Marsha se tornaria também um nome importante na luta em torno do HIV/AIDS, trabalhando ao lado do grupo ACT UP. Mas é simbólica a escolha aqui por ser uma foto tirada por Alvin Baltrop, fotógrafo negro nova-iorquino que tem um trabalho amplo de registro da comunidade gay negra nos anos 70 e 80, na era pré-AIDS. Em diferentes momentos de sua carreira, Baltrop teve sua obra desvalorizada em face do racismo, porém suas fotografias são um registro fundamental de uma comunidade marginalizada.

ANOHNI and the Johnsons já usou outras fotos históricas em suas capas, como a foto icônica da atriz transexual Candy Darling, uma das integrantes da Factory de Andy Warhol, em sua leito de morte, em foto de Peter Hujar, no disco “I Am A Bird Now” (2005), ou o dançarino Kazuo Ohno no disco “The Crying Light” (2009), mas Marsha tem outro fator ainda mais importante para a banda, pois o the Johnsons vem diretamente do sobrenome de Marsha, é uma homenagem direta do grupo para a ativista. Além da capa, para completar o universo do disco foram lançados clipes que também envolvem figuras importantes no ativismo trans atualmente: “It Must Change” é estrelado pela modelo e ativista inglesa Munroe Bergdorf, já o vídeo de “Why Am I Alive Now?” tem direção da atriz Hunter Schafer, que ficou famosa como a Jules da série “Euphoria”, da HBO. Assista aos dois abaixo!

É interessantíssimo como ANOHNI and the Johnsons conseguem criar esses fios narrativos cheios de riqueza e de coisas a serem descobertas, isso apenas enriquece e engrandece uma obra que poderia ser apenas a beleza por si que já estaria lindo, mas não, se entrega em complexidade e política. ANOHNI é um corpo político, é uma artista que entende a sua voz, a sua potência e a sua força criativa e por isso é tão poderoso poder ouvir um disco como “My Back Was A Bridge For You To Cross”. Que maravilha é existir no meu tempo que artistas assim e poder se encantar pela poesia, pela canção e pela força da arte.


– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava

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