texto por Lê Almeida
Eu queria encontrar palavras que definissem o que é se sentir no céu. Independente de crença e qualquer orientação religiosa, apenas o sentimento livre de se sentir leve o suficiente para estar tão alto quanto no céu. Não encontrei essas palavras, mas me surgiu um mundo de pensamentos, anotações e insights sobre como criar e gravar fora de um ambiente violento influenciaram diretamente a minha musicalidade a criarem novos contornos sociais no meu modo de pensar.
Gravações às vezes se tornam um jogo curioso com a paciência, deixar um som amadurecer na cabeça em um espaço de tempo que se torna coisas diferentes e ainda faz sentido é parte da experiência. Gastei espaçosos meses viajando com a (minha banda) Oruã e tendo esse material em paralelo fervilhando em gravações que montavam um esboço de álbum. Foi durante a tour de 2022 pelos Estados Unidos que me dei conta de que o único título que eu tinha pensado até então tinha ligação direta com a estrada e o estado de espírito que essa vivência tão sonhada causava em mim: “I FEEL IN THE SKY”.
Alguém tinha comentado em algum momento que eu parecia sempre feliz, isso condizia com a minha empolgação em estar executando todos as noites essa profissão de músico que eu me orgulho muito em seguir, mas para além disso acho que essa felicidade de viver coisas novas me consumia intensamente e me causavam muitas inspirações que só o tempo me fez notar. Sair da minha realidade no Rio de Janeiro era muito libertador.
Cresci em um bairro violento, vivi por lá boa parte da minha adolescência, trancado no meu quarto gravando música, soltando pipa em cima da minha casa, andando de bicicleta e correndo de violentas brigas na rua. Numa dessas tomei uma pedrada em um dos meus olhos e vi pela primeira e única vez na vida meu pai ameaçar alguém de morte. Mesmo sabendo ou acreditando que ele nunca faria aquilo, naquele momento ficou mais claro do que nunca que vivíamos dentro de uma filosofia explícita do dente por dente e olho por olho.
Sai desse bairro em 2018, depois que meu pai morreu. Esse foi um ano de libertações. Me entreguei a longas tours com a Oruã pelo Brasil e saí do país pela primeira vez, tocando com a banda americana Built to Spill e na sequência indo até o Uruguai com o Oruã. Viver as experiências da estrada me fez absorver novos modos de entender e expressar a arte que eu vinha fazendo. Isso me fazia pensar que a música que eu fazia ao mesmo tempo que era uma forma de escapar daquela realidade também tinha embutida um certo tom violento e defensivo, mesmo que indiretamente.
“I FEEL IN THE SKY” é um disco que foi gravado entre intervalos de tours que eu vinha fazendo, com uma calma e um respiro constante para amadurecimento sem nenhum tipo de pressão, inclusive a minha comigo mesmo. Como ideia básica, eu queria que soasse visivelmente diferente uma faixa da outra, como se tivessem sido propositalmente feitas e gravadas em ambientes muito distintos. Isso foi se dando espontaneamente uma vez que eu carregava comigo na estrada alguns equipamentos de gravação e aproveitava qualquer oportunidade que desse pra gravar aleatoriamente.
O conceito de criação foi se desenvolvendo ao longo do caminho, e fui percebendo que a energia de cada lugar afetava diretamente as direções das faixas. Até o ano de 2019 eu tinha passado um longo tempo gravando em uma sala comercial no centro do Rio de Janeiro, o Escritório, espaço destinado para produção e shows que eu e mais alguns amigos ajudamos a manter desde 2013. Nesse espaço eu realizei inúmeras gravações, tanto minhas como de várias bandas diferentes. Nesses anos adquiri muitas habilidades, porém sempre trabalhando na mesma sala em um computador velho e com fitas cassetes. A partir de 2019, depois de ter saído pela primeira vez do país, eu possuía uma nova mesa de som portátil, um notebook e um novo programa de gravação. Foi esse novo esquema que passei a experimentar na estrada, usando qualquer espaço e às vezes alguns instrumentos aleatórios.
Durante o período final da pandemia morei em Búzios, no litoral do Rio, junto com dois amigos, João Casaes e Bigú Medine. Eles já eram meus parceiros de música a um longo tempo, porém morar junto era novo e fez com que trocássemos muitos conhecimentos o tempo todo. Nosso foco inicial nessa casa era mixar e gravar overdubs no disco do Built to Spill que eu João tínhamos começado a gravar em Boise, nos Estados Unidos, e também para ensaiar e produzir um novo disco do Oruã, o “Íngreme”.
Nesse período entre 2021 e 2022 alguns rascunhos de melodias mais serenas surgiram espontaneamente em algumas manhãs dedilhando baixinho acordes calmos e gravando numa mesa tascam 4-track em fita cassete ideias que se tornavam bases para amadurecer futuramente. “I FEEL IN THE SKY” foi lançado em outubro de 2023, e abaixo falo dele faixa a faixa.
01) I FEEL IN THE SKY – Durante o momento em que morei em Búzios aprendi muito sobre a magia do sampler com o João e o Bigú. Todas as quartas durante a pandemia a gente participava de um programa chamado Loop Sessions, nele a gente trabalhava loops e beats extraídos de um vinil que o programa ripava e disponibilizava. Essa faixa saiu de um desses programas promovido pelo Beat Brasilis
02) MISSÃO DE OUVIR – Lembro de comprar pela primeira vez em 2019 cordas flat para guitarra, eram cordas lisas, mais suaves para arrastar os acordes e dedilhados, eu nunca tinha encostado nisso antes. Coloquei essas cordas numa guitarra velha tonante que ficava na sala de casa. Eu já tinha adaptado essa guitarra com um captador melhor que o original e mantinha ela pronta para qualquer tipo de ideia espontânea que me surgia, mas foi colocando essas cordas flat que passei a dedilhar com uma facilidade que eu nunca tinha experimentado. Foi assistindo algum filme enquanto dedilhava melodias arrastadas aleatoriamente que foi me surgindo essa faixa. Ter ficado um bom tempo fora do Escritório me fez refletir melhor na posição de terapeuta que uma pessoa pode ter sem nenhuma noção do que está acontecendo, apenas ouvindo. Trabalhei muitas noites no Escritório ouvindo e interagindo com todo o tipo de história.
03) BAILE DE CINEMA – Em janeiro de 2023, antes de eu me mudar temporariamente para São Paulo, passei algumas horas improvisando no Escritório com dois amigos de SP, Vicente e John. Meses depois em Aalborg, na Dinamarca, acabei entrando nessas gravações pela curiosidade e acabei recortando ótimos trechos que montavam uma faixa facilmente na minha cabeça. A minha frase inicial para letra era ‘baile de cinema’ e me despertava um ensaio filosófico sobre a incrível sensação de se mover quando acreditar que está sendo passado para trás.
04) TAFETÁ – Inicialmente era um único som ambiente feito com arco de violino na guitarra e alguns delays por uns 4 minutos. Em alguma ocasião no Escritório, fiquei sozinho tocando batidas aleatórias em cima desse som, dias ou semanas depois João me mostrou o Yellotron, um mellotron construído no pure data, e fiquei um tempo gravando combinações de acordes nessa mesma base. João adicionou baixos pausados que recortavam todos os tempos. Nessa época eu tinha visto nos jornais uma notícia horrível sobre um rapaz congolês que tinha sido assassinado no Rio de Janeiro depois de ter cobrado seu salário aos seus patrões, que em resposta o executaram em um espancamento brutal. Essa situação absurda me fez escrever essa letra e refletir a respeito.
05) ARTES CÊNICAS e SOLITUDE foram gravadas durante duas sessões também em São Paulo no Mameloki no fim de 2021. Ambas as sessões com Cacá Amaral na bateria. Eu amadureci algumas melodias vocais durante um bom tempo antes de pôr as vozes, era um ótimo exercício tentar encaixar melodias em temas tortos e desconstruídos.
06) BICHO SOLTO – Essa saiu antes da tour do Oruã em 2023 pelos EUA e Europa, quando passei um tempo vivendo em São Paulo. Depois de algum ensaio de um show solo meu em SP no Mameloki a gente ficou improvisando com alguns amigos (Ana Zumpano, Beeau Gomez, David Beat, Julio St Cecilia) uma base aleatória com algumas percussões e um ritmo descontraído. O Otto (Dardenne) gravou só com um mic no centro da sala essa base e depois ficamos picotando alguns loops. Na sequência fiquei rascunhando uma letra com o Otto e tínhamos uma faixa. Nesses dias tinha alguns amigos circulando pelo estúdio e essa faixa se tornou bem colaborativa na produção. Yann foi desenvolvendo o arquivo no pc, que na sequência passou pelas mãos da Alê nas mixagens e adicionando alguns vocais. Raphael colocou algumas frases de guitarra e Danilo pôs alguns arranjos de teclados.
07) CLARÕES DE ONÇA – Essa me levou a outro tipo de experiência, dedilhando acordes pela manhã no quarto onde morei por um ano em Búzios, próximo do mar e uma belíssima natureza. Essa faixa ficou comigo por algumas viagens durante 2022. A letra repete a afirmação que tudo está normal, mesmo não estando, e deixa um recado direto para as ameaças se manterem distantes pois as minhas proteções são invisíveis aos olhos. A minha proteção é a música. Gravei a base dessa faixa em Nova Yorke com o Bigú entre um intervalo de gravações com o Oruã em uma casa que ficava a duas horas da grande capital e era cercada de natureza. Gravei outras coisas no porão do Jim em Seattle, em um ambiente extremamente tranquilo também nos intervalos de gravações com Oruã.
08) SOLITUDE – Era um instrumental que me acompanhou por um tempo como um tema abstrato, meu esboço de letra versava sobre estar sozinho e estar bem. Bem com você mesmo ao ponto de levitar dentro de qualquer poesia desconexa de realidade. Isso fez muito sentido pra mim estando isolado em uma sala apenas gravando e escrevendo enquanto via pela persiana aberta um breve mar do lado de fora em dias ensolarados e muitas pessoas passeando pela orla. Esse era o ambiente que ficava ao entorno da sala que eu estava usando para produzir em Aalborg na Dinamarca em julho de 2023. Durante uns 4/5 dias minha rotina era ir pra essa sala e fazer qualquer tipo de manifestação artística ligada à música e escrita. Essa faixa estava fervilhando na minha cabeça com a letra pronta, precisando só de uma boa interpretação. Isso aconteceu nessa sala. Amanda foi uma amiga muito importante na colaboração com essa sala. E foi conversando come ela que me dei conta que eu estava literalmente em uma residência. Eu aprontei essas duas últimas faixas nessa residência na Dinamarca, mixei na Finlândia enquanto fazia os dois últimos shows da tour mais longa que já fiz com o Oruã. Quatro meses e duas semanas fora.
09) SUITE AMOROSO AFROPONTO – Essa faixa vem dos raros momentos que eu passava sozinho tocando guitarra, somente focando em como diferentes arranjos poderiam se entrelaçar, esse tema me surgiu na sala de casa, improvisando com um loop afro de guitarra. Era inicialmente apenas um estudo de ritmo e som, virou um ponto.
10) MILHAS E MILHAS – A Mel foi a primeira pessoa que eu mostrei uma primeira versão desse disco montado. Durante o processo continuei enviando algumas faixas pra ela e fomos conversando muito sobre processos de composição e gravação. Essa faixa inicialmente era só um dedilhado de violão gravado em Búzios que posteriormente coloquei uma bateria no Escritório e os vocais no Brooklyn novaiorquino durante alguma estadia rápida em um airbnb aleatório pela região. Mel gravou o baixo no Colorado, em Grand Junction, durante sua tour com o Built to Spill em maio de 2023. No Brasil Lorenzo adicionou algumas linhas de flauta e Ana e o Beeau colocaram guitarras e synths.
11) COSTAS QUENTES – Junto com “Afroponto”, é de uma sessão gravada na casa do Archela em São Paulo em alguma data desconhecida antes das Tours de 2019. Foi pensando por localidade que “Costas Quentes” abriu a minha ideia de pesquisa. Foi gravada em São Paulo, na grande capital entre enormes prédios e muitas pessoas e energias diferentes. Enfatiza free jazz, alguma agressividade nos acordes e um certo entusiasmo nos vocais, esses gravados longe da cidade grande, em plena Baixada Fluminense, região onde resido. Só depois de um tempo percebi onde isso ia canalizado em forma de som, qualquer demonstração aguda de territorialidade. Demorei alguns anos para finalizar essa faixa entre infinitas audições andando de bike pelo meu bairro durante a pandemia atrás de algum sentido.
01 I Feel In the Sky 1:13
02 Missão de Ouvir 1:46
03 Baile de Cinema 4:17
04 Tafetá 4:18
05 Artes Cênicas 5:46
06 Bicho Solto 4:34
07 Clarões de Onça 3:01
08 Solitude 4:01
09 Suite Amoroso Afroponto 5:52
10 Milhas e Milhas 1:05
11 Costas Quentes 10:44
Ficha Técnica
– Lê – guitarras em todas as faixas exceto 1, 4 e 6 / baterias em 2, 3, 4, 7, 9 (afro) e 10 / baixo em 9 (afro) e 6 / teclas em 4 e violão em 10
– João Casaes – baixos em 2, 4 e 11 / synths em 2, 3, 4, 5, 7 e 8
– Bigú Medine – baixos 5, 7, 8 e 9 (amoroso)
– Cacá Amaral – baterias em 5, 8, 9 (amoroso) e 11
– Joab Régis – guitarra em 4
– Alexander Zhemchuzhnikov – sax em 3, 5, 8 e 11
– Leandro Archela – synths em 9 (amoroso) e 11
– Melanie Radford – baixo em 10
– Zozio – bateria em 11
– Vicente Barroso – baixo em 3
– John Di Lallo – synth em 3
– Henrique Diaz – guitarra em 9 (amoroso) e 11
– Julio St Cecilia – guitarra em 6
– Raphael Vaz – guitarra em 6
– Lorenzo Ciambelli – flauta em 8 e 10
– Beeau Gomez – guitarra em 10
– Ana Zumpano – percussão em 6 e synth em 10
– Danilo Sansão – teclados em 6
– Otto Dardene – voz em 6
– Alejandra Luciani – – voz em 6
– David Beat – percussão em 6
Todas as letras escritas por Lê Almeida, exceto “Bicho Solto” por Lê e Otto Dardenne
Gravado no Rio de Janeiro (Escritório), Búzios (Emerências), São Paulo (Mameloki e Formigaz Garden), New York e Seattle (USA), Aalborg (Denmark) e finalizado na Baixada Fluminense. Mixado por Lê Almeida. Masterizado por João Casaes. Capa por João Casaes (Lê paint), Beeau Gomez (background paint). Tipografia por Josimar Freire.