Transa em São Paulo: Caetano Veloso num dos shows mais bonitos que se tem notícia

texto por Marcelo Costa
fotos por Fernando Yokota

O que um disco feito e lançado há mais de 50 anos tem a dizer às pessoas em 2023? O que um disco feito no meio da ditadura militar por um brasileiro exilado em um país estrangeiro, expulso da nação que ele amava, tem a dizer para o universo cultural de um país – que quase mergulhou em outra ditadura militar – 50 anos depois? O que um disco como “Transa” representa no imaginário de 2023 em contraponto com álbuns “atuais” como “Escândalo Íntimo”, “Super” ou “Vicio Inerente”? O que, além de nostalgia, move alguém a sair de casa para assistir a um show em 2023 de músicas que foram gravadas em 1972?

A cabeça chega a fervilhar. Retiradas de seu espaço/tempo original, muitas obras de arte perdem o referencial, o sentido, a provocação, a idealização, a sensação de reflexão de um determinado período para se transformarem em… história – que muitas vezes pode ser reduzida a ser ou não ser belo. O tempo, cruel, apaga quase tudo, mas algumas marcas sempre ficam pelo caminho, e “Transa”, de Caetano Veloso, parece ser dessas marcas que resistiram ao tempo, mantendo sua força, jovialidade, aridez e inteligência até os dias de hoje. “Transa” sobreviveu ao Brasil, ao rock nacional oitentista, que preferia olhar pra música anglo-saxã a reverenciar a MPB silenciada da virada dos setenta para os oitenta.

Caetano Veloso / Foto de Fernando Yokota

“Transa” também é, inevitavelmente, um álbum com o qual muitos brasileiros cresceram. Eleito 10º melhor disco brasileiro de todos os tempos em uma votação da revista Rolling Stone, de 2007, e alçado ao 8º lugar na recente eleição promovida pelo podcast Discoteca Básica, “Transa” é um monolito que o próprio Caetano, aparentemente, nunca entendeu bem o charme. Para o baiano, o disco é cantado em inglês errado, gravado quase ao vivo num momento de aperto, distanciamento e, por que não, apagamento: o músico que era estrela de programas de TV e festivais no Brasil agora vivia numa cidade fria que falava uma língua que não era a dele. “Transa” não tinha hits, refrães fáceis e cantaroláveis. É um retrato de um momento amargo. Por que o público se agarrou a este álbum então?

Talvez porque parte da magia desse disco resida num mergulho na saudade de um país que poderia nunca mais voltar a existir, e cujo símbolo que poderia ser transformado tanto num retrato amarelado pelo tempo quanto em um Guernica musical são canções brasileiras gravadas em território estrangeiro. Quer sentir falta do Brasil? Passe algum tempo fora daqui. Até os defeitos desse povo lhe trarão lágrimas aos olhos. “Triste Bahia”. Aliás, algum dia deveríamos mandar a gravação dessa canção para o espaço, porque ela apresenta, resume e condensa tanta coisa que é exemplar para mostrar a outros povos do universo o que é ser brasileiro. Triste Recôncavo.

Caetano Veloso / Foto de Fernando Yokota

Em sua segunda (e aparentemente última) data paulistana do show que revisita “Transa”, Caetano surge em cena de calça preta e camisa vermelha com listras negras na gola da blusa, tal qual as cores da capa do disco reverenciado. “You Don’t Know Me” abre a noite mágica dando o tom do que o público verá na maior parte das quase duas horas que vão se seguir: no primeiro trecho, o baiano surge acompanhado de sua entrosada banda atual, que conta com a guitarra de Lucas Nunes (Bala Desejo / Dônica), o baixo de Alberto Continentino, os teclados de Rodrigo Tavares e o trio Kaynã do Jeje, Pretinho da Serrinha e Thiaguinho da Serrinha na percussão, recriando a atmosfera daqueles anos febris de maneira impactante. Com olhos fixos no teleprompter (o qual talvez nem precise, mas que o torna refém de sua segurança em muitos momentos da noite) e gestos comedidos, Caetano surpreende ao alternar o tom de voz de maneira impecável. Ao final, explica que está fazendo dois shows ao mesmo tempo (esse do “Transa” e do seu disco mais recente, “Meu Coco”), e que não tem mais idade para essas coisas. O público ri.

Caetano, então, promove um retorno ao material pré e pós “Transa”, mas que tem conexão intensa com o álbum. “’Transa’ foi composto quando eu estava exilado em Londres, mas antes de ser exilado eu estava preso, e preso eu compus essa canção que vou cantar agora, que fiz para a minha irmã mais nova”, conta o baiano, e a batida inconfundível de “Irene” toma conta do Espaço Unimed. Sua irmã mais velha é homenageada em “Maria Bethania”, faixa do disco de 1971, seu primeiro álbum composto e gravado em Londres, um ano antes de “Transa”, que cede então ao show “London, London” (canção catalizadora do disco de rock mais vendido no Brasil nos anos 1980). Segue-se uma poderosa versão de “Empty Boat” e uma pungente “Araçá Azul”, faixa título de um dos discos mais radicais de Caetano, e também um dos mais devolvidos por compradores em lojas na história do Brasil (muitos acreditando que o disco estivesse com defeito).

Jards Macalé / Foto de Rafael Strabelli

A banda, então, mergulha em “Transa” e “Triste Bahia” aparece arrepiante, num daqueles momentos que deveriam ser cristalizados e analisados com profundidade. “Neolithic Man” e “It’s a Long Way”, em versões poderosas, mantém o clima do show em alta, e então Caetano convida os integrantes que gravaram o álbum original para entrar em cena, e Jards Macalé, Áureo de Souza e Tutty Moreno se juntam à banda e praticamente recomeçam o show com uma nova versão de “You Don’t Know Me” entorpecida pelo violão sujo de Macao, que canta a sua peça solo “Mal Secreto” (com citação de “Corcovado”) e uma rara concessão dos dois a material novo, a versão de “Sem Samba Não Dá”, do disco mais recente de Caetano, e que Macalé gravou com Criolo para um álbum muito interessante lançado pelo selo Biscoito Fino. “Mora na Filosofia” e “Nine Out of Ten” fecham a segunda parte da noite de maneira irrepreensível.

Angela Rô Rô / Foto de Rafael Strabelli

Caetano, então, convida ao palco Angela Rô Rô, que também participou do disco “Transa”, mas que, inexplicavelmente, dispensa a banda se apoiando apenas em seu parceiro Ricardo Mac Cord ao piano, transformando o Espaço Unimed numa boate a meia luz com 7 mil notívagos. Ela começa cantando uma canção feita por Caetano que, segundo ela, a persegue: “Escândalo”. No blues derramado e gritado por Ângela é possível perceber como Cazuza foi influenciado por ela. Uma faixa de 2006, “Compasso”, dá uma esfriada no público, mas a bela “Amor, Meu Grande Amor” emociona a todos mesmo diminuta no arranjo voz e piano – o desperdício da possibilidade de ouvia-la com a banda toda (e com Macao solando) é imperdoável. A banda toda retorna, Angela pega uma gaita, e os 11 músicos encerram a noite com “Nostalgia”. O público não arreda o pé e, no bis, surge novamente “Nine Out of Ten” dando ponto final.

Tutty Moreno / Foto de Rafael Strabelli

Um dos principais pilares do mundo musical moderno, a nostalgia segue salvando carreiras do limbo (chega a surpreender perceber o Interpol com 20 anos de estrada já se entregando às turnês revisionistas) e, por isso, ainda é vista com certo descaso por grandes nomes brasileiros (Jorge Benjor escapa sempre que pode da pergunta “e um show sobre o “Tábua de Esmeralda”?) que não querem a etiqueta de oportunistas. O próprio Caetano desconversou por anos sobre um show do disco “Transa”, e só o fez a pedido de Nelson Motta para o festival Doce Maravilha. “Choveu, aconteceu aquilo tudo que vocês sabem, e agora estamos aqui”, justificou Caetano em certo momento da noite, restando a todos nós agradecer à São Pedro pelo presente inesperado (dois shows no Rio, dois shows em São Paulo, triste Bahia).

Áureo de Souza / Foto de Rafael Strabelli

Ainda que de caráter revisionista, o show “Transa” não teve apenas a capacidade de recriar um disco irretocável de maneira autêntica com uma jovem banda afiada e com participações eficazes de quem o fez, 51 anos atrás, mas também a de mostrar – de uma maneira mais profunda do que a agulha sobre o velho vinil – que este álbum repleto de camadas é um dos monolitos da música brasileira. Trata-se de um disco e de um show que ainda revela muito sobre o Brasil, seja no marcante trabalho percussivo, seja no texto barroco, seja no sotaque das letras em inglês e da levada rock que, estrangeiras, têm a função de refinar o olhar sobre a Ilha de Vera Cruz lá de longe, de uma pequena ilha do norte que por castigo ou sorte, ajudaram a moldar um dos álbuns mais brasileiros de todos os tempos, e um dos shows mais bonitos que se tem notícia.

Caetano Veloso / Foto de Fernando Yokota

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/

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