texto especial por Nelson Oliveira
Fotos de Matheus Leite, Rafael Soares e Victor Carvalho
Virou tradição: em novembro, Mês da Consciência Negra, o Afropunk, maior festival de cultura preta do mundo, desembarca em Salvador, a cidade mais negra fora da África. Em sua terceira edição – e com mais confirmadas até 2026, segundo Heloá Sousa, executiva da EDW, agência responsável pela versão brasileira do evento –, o Afropunk Bahia se mostrou consolidado na capital baiana. O que, por um lado, também lhe atribui novas responsabilidades, na visão do público.
Um praticante de discursos simplistas poderia afirmar, levianamente, que produzir um festival de cultura negra na cidade mais preta fora da África seria garantia de sucesso – o retumbante fracasso do Liberatum, que celebrou a afrodiáspora e ocorreu em Salvador no início de novembro, prova o contrário. E se tem uma coisa que qualquer um que conheça um pouquinho sobre a Bahia sabe é que o estado e seus habitantes têm uma característica marcante: fugir da obviedade e surpreender.
Sem dúvidas, o Afropunk vem tendo êxito em intensificar o turismo negro para a capital baiana e gerar impacto em redes de pequenos negócios voltados à moda black, tanto no estado quanto fora dele. Através da estética visual e da autoestima, temas recorrentes no hip hop, é perceptível como, nos vagões de metrô que levam ao Parque de Exposições, nas ruas soteropolitanas e nas áreas comuns do próprio evento, foram pavimentados espaços de troca e intercâmbio de experiências entre pessoas de diversas partes do país. Em tese, conexões do gênero deveriam acontecer em qualquer celebração desse porte. Mas não é o que se tem visto num mundo em que ativações de marca têm sido disfarçadas de megafestivais de música, com tudo o que isso traz a tiracolo.
Uma das coisas mais interessantes do Afropunk Bahia é que não se veem igrejinhas de fãs de alguma das atrações de cada dia enfadados por uma atração anterior ou mesmo desrespeitando quem está no palco. Grande parte do público é genuinamente interessado por música e se interessa pela diversidade, por arte feita por gente de diferentes lugares e vivências. E, até por isso, nos dias anteriores ao festival – e durante o próprio – não era incomum cair numa rodinha de conversa cujo assunto eram as atrações que a curadoria conseguiu levar para Salvador. Nelas, era frequente o pedido por mais artistas internacionais, sobretudo oriundos da África.
Na edição de 2021, reduzida em tamanho ainda por questões relacionadas à Covid-19, não foi possível fechar com artistas do exterior. Em 2022, o Afropunk Bahia contou com Masego (Jamaica/Estados Unidos) e Dawer x Damper (Colômbia). No último fim de semana, se apresentaram no festival Victoria Monét (Estados Unidos), Noite & Dia (Angola), Patche di Rima (Guiné-Bissau) e Tash LC (Inglaterra) – de surpresa, Leigh-Anne, do grupo Little Mix (Inglaterra), também apareceu para breve participação no show de IZA.
É possível notar que houve, sim, crescimento numérico de atrações gringas no line-up. Talvez não da maneira desejada em parte da plateia, que imaginava que o festival – que já faz um ótimo trabalho de levar o melhor da música preta brasileira a seus palcos – contasse com mais nomes de peso vindos do estrangeiro. A obrigação da espera, que represa entusiasmo para o ano que vem, talvez justifique o motivo de, no olhômetro, o festival ter atraído um número um pouco menor de pessoas em relação a sua edição anterior – algo em torno dos 20 mil, contra mais de 25 mil em 2022.
É necessário considerar que os anseios do público nem sempre podem (ou devem) ser atendidos e que existem minúcias específicas para fechar com artistas do exterior, como suas agendas e as logísticas para transporte de equipamentos e pessoal – principalmente se lembrarmos que Salvador ainda não está na rota dos grandes shows internacionais, que muitas vezes se viabilizam financeiramente, para os contratantes, apenas por conta de turnês pelo país. Por outro lado, há de se reconhecer o esforço da produção de ter acertado um show único com Victoria Monét, em sua primeira vinda ao Brasil, ainda que seja possível discutir se a norte-americana – em ascensão, diga-se de passagem – tem, no momento, estatura suficiente para ser headliner de grandes eventos.
Confira, abaixo, o que de melhor aconteceu nos dois dias do Afropunk Bahia, segundo a reportagem do Scream & Yell.
Sábado, dia 1
Nos dois dias de festival, DJ sets foram responsáveis por receber o público na abertura dos portões do Parque de Exposições, por volta das 16 horas. No sábado, a dupla formada por Pivoman e Manigga divertiu os primeiros chegados com o Baile Quebradaum, focado em música dançante afrodiaspórica, e esquentou as turbinas para um show que provavelmente não estava na lista dos mais aguardados por grande parte da plateia. Entretanto, quem já conhecia a turma do TrapFunk & Alivio sabia que viriam pedradas pela frente.
Por volta das 17 horas, o coletivo de DJs do Nordeste de Amaralina subiu ao palco Agô – bastante ampliado em relação à edição de 2022 e do mesmo tamanho do Gira, considerado o principal da noite – acompanhado da sua homóloga britânica Tash LC e privilegiando o verde-cana pivete que os distinguem. A apresentação foi morna até a entrada de MC Sagat, do guitarrista Jotaerre, convidado de honra, e do balé, que deram mais gás e chamaram o público para perto. Em crescendo, encerraram o show com os pagodões “Bota Kára” e “É o Biicho”, além do brega funk “Mr.Braba”.
Sem muito tempo de intervalo, Gaby Amarantos subiu ao Gira para realizar uma das mais frenéticas apresentações do Afropunk Bahia, e certamente a mais impactante no aspecto cenográfico. Ela, que, dias antes, vencera o Grammy Latino na categoria Melhor Álbum de Música de Raízes em Língua Portuguesa, com o álbum “Tecnoshow”, conseguiu referenciar a ambiência futurista das aparelhagens do Pará com um figurino que incluía um adereço de cabeça com três moldes de seu rosto circundando a própria face, uma enorme saia furtacor, dezenas de tentáculos prateados e muitos disparos de gelo seco.
Ao mesmo tempo, Gaby Amarantos emendou hits dançantes, como “Xirlei”, “Ilha do Marajó”, “Cachaça de Jambu” e “Ela Tá Beba Doida”, e fez versões de outros artistas, como “Sinhá Pureza”, de Pinduca, “Jamburana” e “Banzeiro”, de Dona Onete, “Frevo Mulher”, de Zé Ramalho, “Halo” de Beyoncé, num belo abrasileiramento (“vou te dar um gelo”) e “Me Libera”, um clássico do brega com firma da Banda Djavu e do glorioso DJ Juninho Portugal – ou seria da Ravelly? A paraense ainda clamou pela demarcação de terras indígenas e convidou ao palco o baiano Hiran para soltar umas rimas no feat “Pau de Selfie”, gravado originalmente com as Irmãs de Pau. No fim das contas, um show de uma hora que, por ter sido batizado com o mais forte dos energéticos, pareceu ter sido bem mais longo.
O frenesi de Gaby Amarantos acabou contribuindo para que boa parte do público 30+ fosse dar uma volta e recarregar as energias num pit stop durante o show seguinte, de Majur – outro motivo para o passeio é que, em seguida, Carlinhos Brown faria uma das apresentações mais esperadas do evento. Espremida nesse horário, a soteropolitana cantou para uma plateia majoritariamente LGBTQIA+ e bem jovem, já afeiçoada a seu trabalho. Apesar dos esforços para preencher o Parque de Exposições com o seu vozeirão, foram poucos os momentos que capturaram a atenção de quem estava mais distante do palco: por exemplo, em “Andarilho”, “Colorir”, com participação de Hiran, e numa roupagem diferente de “Xirlei”, quando Amarantos voltou à cena.
Por volta das 20 horas, Carlinhos Brown entrou no palco Gira tocando berimbau e puxando a belíssima “Argila”, quinta faixa de “Alfagamabetizado” (1996), seu álbum de estreia na carreira solo, produzido por Arto Lindsay e responsável por apresentá-lo como grande compositor para além dos ritmos afrobaianos e do carnaval. E esse seria o Brown visto por cerca de 45 dos 60 minutos de espetáculo.
Claro, “Alfagamabetizado” não esconde a percussão, as levadas tão caras à Timbalada ou os ritmos caribenhos que tanto influenciaram o restante da obra do Cacique do Candeal. Ao contrário, o disco enfatiza o quanto Brown é capaz de trabalhar com fusões estilísticas e letras herméticas para extrair um suco riquíssimo em vitaminas pop. Na primeira parte de seu show no Afropunk, foi exatamente o que foi apresentado por uma banda afiadíssima, que contava, por exemplo, com Rowney Scott no saxofone e quatro filhos do cantor – Miguel na percussão, na bateria e no baixo; Cecília, Nina e Clara nos backing vocals.
“Argila”, “Covered Saints”, “Mares de Ti”, “Cumplicidade de Armário”, Seo Zé”, “Pandeiro-Deiro”, “Tour”, “Vanju Concesa”, “Quixabeira”, “A Namorada”: foram as 10 primeiras canções que Carlinhos Brown apresentou. E, infelizmente, as únicas de “Alfagamabetizado” (outras seis ficaram de fora).
Seria impossível fazer um show insuficiente tendo um álbum clássico como base, mas Brown perdeu a chance de beirar a perfeição ao fazer algumas escolhas mais comerciais na hora de administrar o tempo de sua apresentação. Obviamente, o público jamais reclamaria de uma sequência com “Maria Caipirinha”, “Dandalunda” e “Maimbê Dandá”, mas teria sido mais interessante transitar por “Bog La Bag” e a surreal “O Bode”, presentes no disco de 1996, do que lançar uma composição de uma das filhas ou fechar o show com a trivial “Uma Brasileira”. Na hora de se despedir, o Cacique prometeu mais shows de “Alfagamabetizado”. Aguardemos.
Depois do show de Brown, o Afropunk Bahia teve algumas horas de shows mais mornos, que não chegaram a causar grande furor geral. Luccas Carlos, com swag, beats interessantes e rimas cantaroláveis, especialmente as presentes no álbum “Dois” – como os pegajosos grimes “exalta” e “Neblina, parte 2” – ainda não era muito conhecido pelo público que foi ao Parque de Exposições. Entretanto, pareceu causar boa impressão e ter aproveitado a oportunidade de mostrar o seu trabalho para mais gente. Obviamente, quando O Poeta, convidado da casa, subiu ao palco Agô para uma participação curtinha, foi outro sabor – já a partir do feat “2h na Cama” e, muito mais, quando o pagodeiro soltou “Bunda no Paredão”, hit que toca em qualquer som de mala que se preze em Salvador.
Na sequência, foi a vez de Victoria Monét chegar ao Afropunk Bahia com seu combo de diva pop – playback incluso. Os fãs que se apertavam na grade aplaudiam qualquer movimento da simpática norte-americana, mas de fato foi uma pena não ter podido ouvi-la cantar na íntegra as faixas dos bem produzidos álbuns “Jaguar” (2020) e “Jaguar II” (2023) em detrimento de uma performance mais adaptada à indústria da música pop. No fim das contas, para o ouvinte médio, os momentos mais interessantes do show se deram nas autorais “Smoke”, “We Might Even Be Falling in Love”, “Jaguar” e “Monopoly”, que gravou com Ariana Grande, e quando brincou com “Magalenha”, de Carlinhos Brown, até arriscando um verso em português.
Já caminhando para os atos finais da primeira noite, o Afropunk Bahia entrou num terreno normalmente obscuro para grandes festivais: dois shows seguidos com rappers acompanhados apenas por DJ. Nem sempre os artistas conseguem criar uma ambiência nesse tipo de situação, mas Tasha & Tracie deram conta do recado. Numa cidade como Salvador, que vê o sucesso do projeto Quintas Dancehall há mais de 15 anos, o som das gêmeas Okereke é muito bem aceito e isso se viu logo de cara, quando a plateia se moveu rapidamente de um palco para o outro para curtir “As Mais Braba”, “Agouro” e “Yvonne Fair” na largada. O clima de flerte bandido e de empoderamento das pretas da favela tomou conta do Parque de Exposições em um encadeamento de canções que colocaram o público para dançar e paquerar – como “Rouff”, “Amarrou”, “Willy”, “Sou Má”, “Diretoria” e o funk “Desce Licor”. A propósito, Tati Quebra Barraco ainda participou rapidamente do show, com “Boladona” e “É Por Isso Que Sofre”.
O tiro no alvo de Tasha & Tracie deixou Djonga numa espécie de saia justa, para responder à altura juntamente com seu parceiro Coyote Beatz. No fim das contas, o mineiro fez show oscilante, com muitos momentos de desconexão com o público – não foram poucas as vezes que Gustavo chamou a plateia para chegar junto e se mostrou frustrado com a reação pouco calorosa.
No início da apresentação, nem mesmo uma sequência formada por “Hat-Trick” e “O Cara de Óculos”, com “Solto”, alguns minutos depois, empolgou muito a audiência. A situação mudou de figura quando Dona Maria, avó do rapper, subiu ao palco em “Bença”, que versa justamente sobre ancestralidade, honradez e legado. Para finalizar, “Olho de Tigre” finalmente gerou uma roda de bate-cabeça e o próprio Djonga, como de costume, se juntou à plateia para gritar “fogo nos racistas”.
Em diálogo com a apresentação de Djonga, O Kannalha subiu ao palco Agô juntamente com sua avó e sua mãe, cantando uma oração em homenagem a Santo Antônio de Lisboa – fazendo nos lembrar, o que voltaria a ocorrer na segunda noite do festival, sobre a importância de figuras maternas na vida dos homens pretos de favela. O pagodeiro, que atende pelo nome de Danrlei Orrico e já foi percussionista da ótima Afrocidade, tinha a senha para repetir a fórmula dos shows de encerramento do último Afropunk Bahia: transformá-lo numa festa de largo nos minutos finais. E foi assim que fez com sucessos como “Final de Semana na Favela É Assim” e “Fraquinha”.
Domingo, dia 2
Como se a produção quisesse permitir maior tempo de descanso ao público, a programação do Afropunk Bahia no domingo atrasou por cerca de 1 hora. Com isso, Lunna Montty, do coletivo Afrobapho, iniciou os trabalhos com seu DJ set para uma quantidade já razoável de público e Karen Francis, amazonense filha de uma moçambicana, pode apresentar o seu show, que teve a faixa “Cardume” como destaque, para mais gente.
As duas apresentações antecederam o show de um Olodum que não fez a menor cerimônia. Dançando e brincando com os tambores – alguns adornados com lâmpadas de LED e fogos de artifício – e as baquetas, os percussionistas da banda entraram no Parque de Exposições fazendo todos os movimentos exuberantes que costumam encantar os turistas, e a banda do bloco afro do Pelourinho se mostrou totalmente disposta a hitar com seus samba-reggaes de maior sucesso.
Do início ao fim, os vocalistas Lazinho e Lucas Di Fiori, acompanhados pelos discípulos de Neguinho do Samba, emendaram pedradas sem dar descanso à plateia, que – obviamente – tinha tudo na ponta da língua. O potente repertório do Olodum teve “Alegria Geral”, “Nossa Gente (Avisa Lá)”, “Vem Meu Amor”, “Várias Queixas”, “Rosa”, “Deusa do Amor”, “I Miss Her”, “Canto Ao Pescador”, “Faraó (Divindade do Egito)” e “Onde For” – esta última um feat com Majur, que subiu ao palco Gira.
A propósito, tal qual aconteceu com Majur no sábado, Ajuliacosta ficou espremida entre duas atrações grandes, o que diminuiu o fluxo de pessoas que assistiram a seu show. Apesar de compor canções que versam sobre temáticas similares às de Tasha & Tracie, que conseguiram atrair um bom público, Aju ficou um pouco de escanteio na noite devido à escala do festival – ainda que seus fãs, entusiasmados, tenham se esgoelado em faixas como “Não Foi do Nada”, “Homens Como Você” e “Queen Chavosa”.
Por volta das 21 horas, Alcione, que foi homenageada por Ajuliacosta com um trechinho de “A Loba”, deu início ao horário nobre do Afropunk Bahia – que agradaria a sambistas, rappers e punks. Primeiramente, a Marrom enfileirou sucessos que fizeram até mesmo os mais jovens abrirem os poros para cantarem, mostrando que ainda pulsa fortemente o romantismo, renovado periodicamente no samba e no pagode por artistas que movem multidões, como Péricles, Thiaguinho, Ludmilla, Ferrugem e Menos É Mais.
O samba, que há alguns séculos corre solto pelas ruas de Salvador, está em forte alta na cidade – a quantidade de rodas e eventos do gênero que pipocam, principalmente às sextas, é imensa. E a recepção tão calorosa à veterana Alcione é só mais uma amostra disso, ainda que o seu show redondíssimo venha se destacando por onde passa – veja aqui e aqui. Mesmo sentada numa cadeira em grande parte do show, a maranhense emplacou vários pontos altos da noite, como a combinação entre “Ilha de Maré” e “Ara-Kêto”, “Estranha Loucura”, “Faz Uma Loucura Por Mim”, “Sufoco”, “Retalhos de Cetim”, “A Loba”, “Você Me Vira a Cabeça”, “Meu Ébano”, “Gostoso Veneno” e “Não Deixe O Samba Morrer”.
Esta última antecipou a entrada da Estação Primeira de Mangueira, escola do coração de Alcione, que será tema da agremiação no próximo carnaval. Para acelerar o passo para o show seguinte, de Vandal, a verde-e-rosa apresentou os enredos “A Negra Voz do Amanhã”, em homenagem à Marrom, “Brazil Com Z é Pra Cabra da Peste, Brasil Com S é a Nação do Nordeste”, referente ao desfile campeão de 2002, e “Atrás da Verde-e-Rosa Só Não Vai Quem Já Morreu” (1994), de autoria do baiano Caetano Veloso.
Jogando em casa, Vandal preparou um show dividido em duas partes. A primeira, apenas com vocal e bases eletrônicas, especialmente de drill e grime, foi marcada pelo encadeamento de trechos de várias faixas, com foco nos refrões e em versos que o rapper criou para canções de outros artistas – “Puxutriuh”, “Tirasuapazh”, “Corehardcoreh”, “Dizkordiah”, “Tropah dah Vírgulah”, “Naztyh” e “Amorezh”, por exemplo, compuseram essa fase.
Como alguém que utiliza o complemento nominal “de verdade” para se definir e afirma ser da MPB, a “música pra bagaçar”, Vandal costuma cuspir agressivamente o que pensa para que fique difícil não pegar a visão: seu desejo é “ser tudo o que eles não querem”, incomodar mesmo, como os pensamentos intrusivos. Nesse sentido, o seu show foi ganhando camadas de crueza e brutalidade, com tons de revolta que pouco haviam dado as caras no festival até o momento.
Após versos da diss track “Só Eu Sei”, que Vandal gravou com Diomedes Chinaski, Junior Lord e Devastoprod, o show entrou na sua segunda parte, embalada pela banda Bagum, com a qual o rapper vem desenvolvendo proveitoso intercâmbio, o percussionista Ícaro Sá, do BaianaSystem e participações surpresa, como as de Liz Reis em “Vingadorah” – e uma outra que merece destaque à parte.
O peso e a ambiência com notas de post-rock presente na impetuosa “Bikinih Ih Cerolh” foi transportado a “Vemh Nih Mimh” e a “Tiroh Ih Kedah”, antecipando uma emocionante e intensa contribuição de Giovani Cidreira. Apenas com teclado e voz, ele entoou a belíssima “Joias”, presente em “Nebulosa Baby” (2021) – com arranjo melancólico, mais similar à versão gravada sob o nome “Flashback Déjà Vu”, no EP “Mano*Mago” (2020) – e introduziu as linhas do dono do show em “Vida Real”. Para finalizar, Vandal emulou Djonga: antes do hit “Balah Ih Fogoh”, regravado justamente num feat com o mineiro, chamou a mãe, aniversariante da semana, para o palco e, em seguida, se atirou nos braços do povo para bater cabeça.
Caminhando para a reta final do Afropunk Bahia, IZA subiu ao palco como headliner do domingo e fez um show com muita simpatia, dança, competência e zero playback, baseado no camaleônico “Afrodhit” (2023) e em hits mais antigos de sua carreira, como “Pesadão”, “Brisa” e “Dona de Mim”. Entre os destaques do show, fugindo do óbvio, ficaram “Que Se Vá”, “Fé Nas Maluca”, “Fiu Fiu” e o combo com pagodão e dancehall que uniu “Gueto” e “Mega da Virada” – esta, com participação de Russo Passapusso.
Bem em sua metade, a apresentação chegou a ser interrompida por alguns minutos devido a um incêndio num ponto de alimentação próximo ao portão de entrada do festival – nada que a comprometesse ou que levasse a maiores problemas, já que as chamas foram debeladas rapidamente e não houve feridos. Logo em seguida, com o clima já tranquilo, IZA trouxe uma surpresa: a britânica Leigh-Anne subiu ao palco para participar com “My Love” e ainda fez dueto com a carioca em “Meu Talismã”, quando cantou o refrão em português.
Parte do público que foi ao Afropunk Bahia para ver IZA se dirigiu ao palco Agô na sequência, onde KayBlack e MC Caverinha fizeram um show de repertório baseado em ostentação, autotune e trap anódino, que faz sucesso apesar da ausência de personalidade – ou justamente por causa dela. Outra parte considerável optou por recarregar as baterias, já que o show seguinte, de encerramento do festival, seria o do BaianaSystem, sempre potente.
O BaianaSystem começou o seu show no backstage, fazendo as honras para que Patche di Rima, de Guiné-Bissau, iniciasse os trabalhos em parceria com as Ganhadeiras de Itapuã, ressignificando o Atlântico Negro e unindo o oeste da África e a América – mais tarde, o guineense voltaria ao palco e a angolana Noite & Dia também teria a oportunidade de mostrar o seu kuduro. No fim das contas, isso seria uma prévia da divisão de uma apresentação em atos, como o álbum “OXEAXEEXU” (2021): dois deles voltados majoritariamente às interseções entre os dois continentes e um à evocação do Brasil como latino-americano.
É chover no molhado falar sobre a magnitude do “fenômeno Baiana”. Primeiramente, considerando o que a banda consegue transmitir conceitos através de elementos cenográficos, discursos e, sobretudo, da celebração. E, claro, levando em conta o que o próprio público devolve, de maneira simbiótica, através da insanidade gostosa das rodas, das descargas de dopamina causadas pelo pula-pula ou da energia positiva e de respeito à coletividade que leva os fãs erguerem cadeirantes e os permitem curtir o som navegando sobre o mar de gente – fato que, durante o Afropunk, aconteceu pela terceira vez numa apresentação do grupo em Salvador.
No encerramento do festival, Russo Passapusso, Roberto Barreto, Seko Bass, João Milet Meirelles, Ubiratan Marques, Ícaro Sá, Junix e Claudia Manzo largaram uma pedrada atrás da outra – “Reza Forte”, “Cabeça de Papel”, “Saci” e “Lucro”, por exemplo. O público já estava ganho, é claro, como em qualquer ocasião em que o BaianaSystem pisar em Salvador. Entre as novidades, destacaram-se os arranjos de cordas mais orientados ao rock, e as participações de Patche di Rima e Noite & Dia em “Capim-Guiné” – e a do próprio guineense em “Miçanga”.
Além disso, nas clássicas interpolações de versos em canções já gravadas pela banda, Russo Passapusso apresentou novas linhas novas de composições, dando a entender que músicas novas devem chegar às plataformas de streaming em breve. E, para quem é mais antigo, evocando tempos em que o BaianaSystem vivia recheando os repertórios de seus shows no Pelourinho com letras e sonoridades que só viriam a ser lançadas em álbuns bem depois. Por fim, a banda terminou o festival de forma clássica: tocou “Forasteiro”, para mandar todo mundo para casa pingando de suor e com alguns hematomas como recordação temporária do terceiro Afropunk Bahia.
Top 5 Afropunk Bahia 2023, Nelson Oliveira
1 – Alcione convida Estação Primeira de Mangueira
2 – Vandal
3 – BaianaSystem convida Patche di Rima e Noite & Dia
4 – Olodum
5 – Carlinhos Brown
– Nelson Oliveira é jornalista e fotógrafo residente em Salvador. É diretor da Calciopédia, foi correspondente de esportes do Terra na Bahia e colaborou com UOL, VICE e Trivela.