Música: Pérola perdida do experimental brasileiro, álbum “Ruínas Circulares”, do Alpha III, completa 35 anos

texto de Bruno de Sousa Moraes

Em setembro de 2023, o disco independente “Ruínas Circulares”, do Alpha III, projeto de rock progressivo e música eletrônica experimental de Campinas (SP), fez seu 35º aniversário. Inspirado em um dos contos mais aclamados do escritor argentino Jorge Luís Borges (1899-1986), o álbum mistura música erudita vanguardista, sintetizadores, samples e pitadas de rock progressivo para construir uma sonoridade com poucos pares na música brasileira: o disco reúne elementos de artistas como Vangelis, Jean Michel Jarre, Wendy Carlos e Tangerine Dream, com passagens que devem agradar a fãs de ELP e Rick Wakeman. Mas, mesmo que essa não seja sua praia, arrisco a promessa de que tanto o catálogo do Alpha III quanto esta reportagem — fruto de uma entrevista com o artista por trás de “Ruínas Circulares” e de MUITAS escutadas do disco — terão histórias e momentos interessantes para qualquer pessoa que aprecie música ou trabalhe com produção independente.

Vamos nessa?

Amyr Cantúsio Jr, “um cão sem dono”

Quando comprei minha cópia em vinil do álbum “Ruínas Circulares”, o Afonso Cappellaro, da Fifo Discos, disse que conseguia combinar para que eu conhecesse e pegasse um autógrafo com Amyr Cantúsio Jr, o artista por trás do Alpha III. Uma semana depois, decidido a transformar o pedido de autógrafos nesta matéria, entendi o que Afonso quis dizer com “O cara é bom de contar histórias”: a conversa durou pouco mais de duas horas!

Nascido em Campinas, interior de São Paulo, em 1957, Amyr Von Bathel Cantúsio Jr é primariamente descendente de família italiana, de onde herdou o sobrenome Cantúsio — também nome de um antigo curtume da família paterna, que operou na Vila Industrial de Campinas por mais de oitenta anos. O nome do meio, diferente, “Von Bathel”, veio da bisavó paterna austríaca. Mas foi de sua mãe, também ítalo-brasileira, que Cantúsio herdou o interesse pela música e a proximidade com o piano.

Amyr Cantúsio Jr

“Minha mãe era pianista, ela foi professora da USP e da PUC Campinas. Com cinco, seis anos de idade eu estava ouvindo bastante Beethoven, Chopin, Bach… Com nove eu já estava tocando”, conta o criador do Alpha III. Mas essa base de música erudita, como no caso de muitos jovens nascidos no pós-Segunda Guerra Mundial, logo iria colidir com a eletricidade real e metafórica do rock and roll, a partir de compactos dos Beatles, Rolling Stones e vinis do Black Sabbath trazidos da Europa por alguns primos mais velhos.

Com a chegada da adolescência, a música poderosa e irreverente somada à revolta contra os sistemas de crença dos pais fez com que o próximo passo da metamorfose biográfica e musical de Cantúsio fosse drástico. Na biografia, a saída de casa para morar numa comunidade alternativa na cidade vizinha, Holambra, no sítio da tia do amigo e baixista Mário Jorge; na música, e acompanhado do mesmo Mário Jorge, a fundação do grupo de rock progressivo Spectro, em 1974.

Na sala de estar, ao lado de estátuas de Buda, livros e da cachorra vira-lata Pretinha, deitada no chão e escutando atentamente à conversa, Amyr relembra o clima da época:

“Com esses caras a coisa rolava de uma maneira diferente do que é hoje. O contexto sociológico de Campinas nos anos 1970, com 250 mil habitantes, era o de uma cidade preconceituosa, racista, limitada, careta”, conta. Ele lembra que a virada dos anos 1960 para os 1970 veio com muita influência dos movimentos beatnik e hippie. Jovens cabeludos, com roupa colorida, em plena ditadura. Ele completa: “A gente não só se vestia assim, a gente era assim. Não gostava de como nossos pais agiam mais. A gente não tinha apreço pelo conservadorismo deles, o pedantismo, apego aos bens materiais. Não, cara! É de todo mundo, o planeta Terra é cósmico. A gente não vai durar muito tempo aqui. Pra que uma família vai ter dez casas enquanto tem gente que não tem nenhuma?”

Cantúsio explica que, apesar de manter essa visão até hoje, a preocupação principal de sua vida e de sua música nunca foi com política — o que talvez tenha evitado confrontação mais direta com o regime militar da época. Seu ativismo é ecológico, metafísico e espiritual, apesar de quase sempre com uma roupagem sombria. Isto se reflete inclusive no nome da banda de estreia, Spectro, derivado da composição “Spectral”, com a qual Amyr ganhou um prêmio de arranjo e composição do Projeto Guarani no Teatro Municipal Castro Mendes, em 1974.

A mistura do rock com a música erudita, porém, não agradou todo mundo: “Teve gente que me chamava de ‘Multinacional’. E eu gritava de volta uma grosseria!” (risos) “Mas tem que pensar que até bem pouco tempo antes dessa época, não tinha um nome pra quem fazia essa mistura. Hoje identificam esse som como rock progressivo. Mas na virada para os anos setenta não existia essa terminologia.” Esta reação hostil de algumas pessoas foi ecoada em outros lugares do mundo, como o caso famoso da resposta à adaptação de “Pictures At an Exhibition” de Mussorgsky pelo Emerson Lake and Palmer, que foi criticado em 1972 por Lester Bangs na Rolling Stone pelo que o álbum ao vivo fazia tanto com o rock quanto com as composições clássicas.

“O pessoal do rock progressivo no Brasil, desde os Mutantes até Rock da Mortalha, Som Nosso de Cada Dia e o próprio Spectro, estava fazendo esse som em paralelo com o que acontecia no mundo: Por exemplo, na Alemanha, a banda CAN treinou com o compositor erudito e experimentador eletrônico Karlheinz Stockhausen. Quando eu ganhei o prêmio que levou ao Spectro, em 1974, já tinha mais informação. Já tinham os LPs do Yes, Genesis. Aí eu sabia que a gente estava fazendo uma coisa que os caras também estavam fazendo”, conta o músico.

A banda durou até 1979, e Cantúsio acrescenta que divergiu do rock progressivo setentista razoavelmente rápido. Não exatamente por se desencantar com o gênero — que ainda escuta bastante — mas por querer explorar outras abordagens para a música. Influenciado pelo mesmo Stockhausen, voltou-se para a experimentação eletrônica e, na virada para os anos oitenta, criou o Alpha III, onde explora até hoje inúmeras sonoridades, bebendo de fontes que vão da música techno ao death e black metal. “Eu faço música erudita de vanguarda. Se você me enquadrar dentro do rock progressivo, tudo bem. Se me enquadrar com a música experimental do Egberto Gismonti, tudo bem. Rock in Opposition, adoro! Eu sou um cara livre, sabe?”, comenta Cantúsio. E encerra, com uma risada: “Eu sou um cão sem dono!”

“Tecer uma corda de areia”: O nascimento de “Ruínas Circulares”

Encerrada sua participação no Spectro e a vida em comunidades alternativas, Cantúsio voltou a Campinas, casou-se e teve o primeiro e único filho. A paternidade se deu em meio ao curso de Extensão Universitária em Música, na Unicamp, ao final do qual foi produzido “Mar de Cristal”, o disco de estreia do Alpha III. Com o primeiro álbum lançado, e já começando a circular mais pela capital paulista, Cantúsio fez amizades na Galeria do Rock, incluindo José Carlos Grijó, o famoso Zé do Disco. Cantúsio lembra que, em 1986, ele e Grijó fundaram o selo Faunus Discos, especializado na produção e distribuição de rock progressivo e música experimental.

Foi pela Faunus que foram lançados “Sombras” e “Agartha”, os discos subsequentes do Alpha III. Também por este selo, saiu o disco que deu origem a este texto.

A história da produção de “Ruínas Circulares” é um absurdo de engenhosidade, gambiarra e força de vontade. É uma história com tanta cara de Brasil que não acredito até agora que é a primeira vez que ela é contada numa reportagem (ao menos na internet brasileira). No final dos anos 1980, Amyr Cantúsio Jr trabalhava como freelancer compondo vinhetas para a TV Bandeirantes e nos Estúdios Juratel, parte da Junta de Rádio e Televisão de Campinas, de propriedade Batista. Neste último, fez amizade com o técnico de som Moisés Leite, que admirava os trabalhos do Alpha III e começou a montar um plano para que Amyr lançasse seu quarto disco.

“Compondo vinhetas, o meu dinheiro não dava nem pra comer direito. Aí o Moisés falou assim pra mim: ‘Amyr, você não tem grana pra pagar estúdio. Eu vou guardar os pedaços que sobrarem de fita de rolo de todas as bandas que têm grana, de música gospel, sertanejo e o caramba… Sobrando fita pra dois, cinco minutos de música, eu guardo’”, relembra o músico. Nas sobras de tempo de estúdio, a dupla utilizava as sobras de fita Scotch 226 para gravar trechos do disco. Primeiro as bases no piano de cauda, que Amyr chama de “um puta Grand Piano Yamaha!” e depois as linhas de sintetizador, drum-machines, baixo e bateria. Também gravadas com, além de talento, muito jeitinho:

Amyr Cantúsio Jr no estúdio em 1987

“Tinha um Hammond estourado jogado num canto, eu peguei. Tinha um Mellotron, usei também. Uma bateria Luthier que tinha no estúdio, eu fui e toquei também… eu gravei todos os instrumentos, esse disco não teve nenhum outro músico. O Moisés falava ‘Olha, um cara vai deixar três sintetizadores aqui por cinco dias! Tem um DW-8000, tem um Moog…’ de manhã cedo eu já tava no estúdio.” (risos) “Eu não tinha dinheiro pra ter aqueles teclados. O Moisés Leite foi um irmão pra mim, que permitiu que esse disco existisse.”

Cantúsio conta que a esta altura, em 1987, ele havia entrado em contato com a literatura do autor argentino de realismo mágico e fantasia Jorge Luis Borges, ficando fascinado pela atmosfera metafísica e ocultista de contos reunidos nos livros “Ficções” (editado entre 1941 e 1956) e “O Aleph” (editado entre 1949 e 1966). Conta que escolheu o conto “As Ruínas Circulares” (leia na íntegra aqui) como tema de seu próximo álbum pela potência da história, que trata de uma série de temas pesados como a distinção entre sonho e realidade, entre causa e efeito, a identidade em um universo impossível de compreender, e o próprio processo criativo. Sem dar muitos spoilers relevantes, “As Ruínas Circulares” é uma história curta de fantasia sobre um mago que decide construir uma pessoa a partir de seus sonhos, e depois inserir essa pessoa onírica na realidade. Para isso, ele viaja até as ruínas de um templo antigo, dedicado a uma divindade esquecida, e se põe a tentar sonhar e a pensar sobre como funcionaria a identidade de um ser feito puramente desses sonhos.

“Quando li o conto, comecei a pensar sobre sonhos que eu tinha que eram assim: eu não tinha certeza se eu tinha despertado de um sonho ou se eu é que estava sendo sonhado. Como naquela história do Chuang-Tzu: ‘Eu sou um sábio que sonhou que era uma borboleta? Ou eu sou uma borboleta sonhando que é um sábio?’”, conta Amyr. “Essa é uma experiência que acontece com muitas pessoas, e eu queria pensar numa maneira de representar a história musicalmente.”

O conto se inicia descrevendo a chegada do mago à floresta pantanosa na qual o templo abandonado repousa. Ele anda sozinho pela terra encharcada, procurando as ruínas na escuridão da noite. Para ilustrar este vagueio, o disco abre com “A Viagem”, uma composição lenta de sintetizadores, que conta com sons que parecem o canto de pequenos pássaros, mas que Amyr esclarece não serem samples com efeito: “Eu fiz aquilo no sintetizador Yamaha CS-30. Fiz mexendo no oscilador de onda, aplicando delay. Tudo feito à mão. Desde a capa do disco até a minha música, foi tudo feito artesanalmente à mão.”

Amyr conta inclusive que a capa, desenhada por Oswaldo H. Vasconcelos Filho, aparece no quinto volume do “The Album Cover Album”, organizado por dois dos maiores capistas da história do rock: Roger Dean (que fez capas para o Yes, Asia e Focus) e Storm Thorgerson (responsável pela famosa capa do “The Dark Side of the Moon”, que também trabalhou com o Genesis, Peter Gabriel e The Mars Volta).

“Ruinas Circulares” dividindo a página do livro de Roger Dean com Iron Maiden e Guns N’ Roses

O disco divaga pelas etapas do conto, com faixas que mudam de atmosfera e que, a princípio, podem dar a “Ruínas Circulares” a aparência de ser uma obra pouco coesa. Além do eletrônico espacial com toadas de Klaus Schulze, Tangerine Dream e Vangelis, encontram-se no álbum toccatas de piano, faixas que lembram obras de Rick Wakeman e peças clássicas, outra com uma guitarra bastante rasgada que quase puxa para um prog metal. Esta última faixa, denominada “Holocausto Final”, incorpora ainda um exemplo muito inicial do uso de uma colagem de breakbeats — montada pelo próprio Cantúsio com um gravador caseiro — que eu creio ter como base a “Amen Break”, sampleada em centenas de músicas de gêneros que vão do hip-hop ao drum’n’bass e hardcore breakbeat. De fato esta descrição sugere que o disco é um caos de estilos em contraste, mas após retornar diversas vezes para escrever essa análise, minha impressão é a de que há uma coesão forte no “Ruínas Circulares”, uma coesão que se extrai da atmosfera, de alguns toques sutis de composição que conversam entre si, e da abordagem experimental constante do Alpha III.

Jorge Luis Borges nunca escrevia contos apenas sobre as histórias sendo contadas. Pelo contrário, análises de sua obra muitas vezes identificam mais de um significado ancorado em cada uma de suas metáforas. A pesquisadora argentina Leonor Fleming chama atenção em um ensaio acadêmico, em espanhol, para o fato de que “As Ruínas Circulares” é muito mais do que um misto de sci-fi cósmico e fantasia sobre Magia com “M” maiúsculo: além de poder ser encarado como uma meditação sobre a natureza da existência e o ato de criar uma vida, o conto é também um ensaio sobre o processo de criação literária. A pesquisadora associada da Universidad Nacional de San Martín destaca inclusive que, quando Borges cita que o projeto onírico e místico do mago “esgotara o inteiro espaço de sua alma”, estaria se referindo à característica obsessiva de projetos artísticos. Com base no apontamento de Fleming, pode-se interpretar que a comparação do ato de sonhar uma nova vida a algo “muito mais árduo que tecer uma corda de areia ou cunhar em moeda o vento sem efígie”, também pode estar chamando atenção para as dificuldades de se construir uma obra literária.

E como estas dificuldades e obsessões influenciaram a criação de uma obra musical como a adaptação do Alpha III?

Cantúsio atribui muito da diversidade criativa do disco às limitações de se fazer música eletrônica independente — com fitas coladas com durex e instrumentos “emprestados” — no Brasil dos anos oitenta. “A dificuldade que nós tínhamos para fazer música melhorava a nossa possibilidade musical. As coisas antigamente eram a pau e pedra”, diz o músico. E completa, comentando o quanto é empolgante que hoje muito do cenário da produção de música tenha uma marca da independência que ressoa (e contrasta) com a história do “Ruínas Circulares”: “Hoje os artistas já têm mais acesso a ter tudo o que precisam para produzir um disco na própria casa, eu mesmo tenho aqui: brincando aqui em casa hoje eu faço música com um puta som digital!”.

Ele reflete ainda que é importante aliar essa facilidade tecnológica e as menores barreiras pra espalhar sua música na internet com a abordagem experimental e “Do It Yourself” imposta pelas dificuldades do passado: “Eu sei linguagem de máquina, aprendi Fortran e Cobol técnicos, então sei programar sintetizadores. Trabalhei para a Yamaha como endorser. Tenho muita vontade de dar uns cursos sobre esse tipo de abordagem, resgatar um eletrônico que realmente ouse. Mostrar como se faz um sample, mas um sample louco!” (risos) “A meu ver, não se pode simplesmente pegar um sample pronto pra fazer uma música! Se batuco aqui qualquer coisa na própria perna e gravo, isso pode ser trabalhado e virar um sample. Se dou uma tossida e gravo… Dá um loop nisso aí, distorce, coloca um monte de efeito! Isso é um sample! O pessoal não arrisca”, comenta Cantúsio.

Perguntado sobre as similaridades entre fazer o disco e construir uma prole sonhada “entranha por entranha e traço por traço, em mil e uma noites secretas”, ele responde que, de certa maneira, tem muito menos controle sobre as entranhas de sua música do que isso. Lidar com música sintetizada baseada em osciladores é muito mais parecido com “tecer uma corda de areia”, pois os efeitos acontecem em tempo real. “O efeito está saindo de mim enquanto controlo o instrumento. Mas ele também volta pra mim, passa por mim enquanto controlo e toco. Compondo no piano até tive esse controle dos mínimos detalhes. Mas quando chega a hora dos sintetizadores e efeitos, não dá! A faixa-título do disco mesmo tem apitos de osso (tradicionais de Pueblos do Novo México) que foram processados com delay enquanto eram tocados.”

Com tudo gravado, Cantúsio levou o conteúdo bruto do disco para mostrar a José Grijó, o Zé do Disco. Segundo o músico, o co-fundador da Faunus ficou louco com o resultado, afirmando “Porra, velho! Esse vai ser o melhor disco do Alpha III!”. O compositor sorri nostálgico, acrescentando: “E foi!”

Faunus dança em toca-discos

A versão em vinil de “Ruínas Circulares” foi lançado pela Faunus, com prensagem da “Gravações Elétricas LTDA”, razão social da Continental. Com a popularidade restrita da música instrumental no Brasil e a dificuldade de concorrer de frente com os discos de gravadoras maiores e artistas mais populares, o disco vendeu razoavelmente pouco no Brasil — mas Amyr não tem uma estimativa destes números. Fora daqui, porém, o disco teve uma boa aceitação em países como a Grécia e também o Japão, onde chegou a ganhar uma análise na revista-catálogo Marquee (antiga Marquee Moon), junto a gigantes como Keith Emerson e Gentle Giant. Talvez parte da difusão limitada do álbum em seu país de origem seja por sua sonoridade um tanto solitária no cenário brasileiro da época. No mundo da música focada em sintetizadores, Alpha III tinha na Grécia a companhia de Vangelis, e no Japão a de Tomita.

Uma questão interessante é que deixaram passar um fato importantíssimo no design do encarte e da etiqueta de “Ruínas Circulares”: a data de lançamento. As únicas datas que aparecem no encarte são as das sessões de gravação, entre 4 de Julho e 4 de Agosto de 1987. Graças a este fato, não é incomum ver menções ao lançamento do álbum datando de um ano antes de seu lançamento real, como no site de catalogação de música Discogs. A imprecisão do disco no tempo é apenas mais um aspecto de sua atmosfera mágica e Borgiana. O deus romano Faunus afinal, além de ser uma divindade da natureza, foi sincretizado com o grego Pan que, assim como seu pai Hermes, era um embusteiro acostumado a pregar peças.

O encarte do vinil da época e a adaptação para o relançamento em CD

Além do lançamento em vinil, “Ruínas Circulares” foi relançado algumas vezes. A primeira delas em CD pela Rock Symphony, no ano de 2005, contando com duas faixas-bônus inéditas. Para este relançamento, Cantúsio conta que tiveram de usar como base o áudio do vinil, pois as masters haviam se perdido devido à cola da fita adesiva utilizada para emendar as sobras de Scotch 226. O relançamento permitiu ao músico dividir a faixa “Filho de Deuses” em seus três movimentos, que haviam ficado sem nome na edição original em vinil.

Também foi a partir desta versão que ele trabalhou nos outros dois relançamentos do “Ruínas Circulares”.

O primeiro foi um remix (acima), no qual algumas músicas tiveram seus tempos alterados e receberam novas linhas de baterias, drum-machines e guitarras. Algumas versões desse remix foram inclusive utilizadas na “live” do “Ruínas Circulares” (abaixo), uma obra audiovisual independente de estética maravilhosamente bizarra que grita ocultismo, experimentalismo e baixo orçamento, upada em 2020 no canal de YouTube de Cantúsio. O segundo relançamento foi a remasterização recente (a mesma linkada no início desta matéria), para a qual Cantúsio utilizou-se de softwares de tratamento de áudio com aprendizado de máquina — vulgo, “inteligências artificiais” ou IA — para chegar a uma sonoridade que mais lhe agradasse.

“Trabalhar com outros produtores às vezes traz alguns conflitos, às vezes tem alguns sons que os caras acham que são ruído acidental. Se tem alguns sons que eu quero que fiquem assim, é porque eles foram feitos pra ficar assim, são de propósito!”, desabafa. “É tudo parte de uma abordagem de música concreta, eletrônica. Estou usando os ruídos, os chiados! Mas os produtores acham que é um defeito.”

Amyr conta também que, nesta mesma filosofia, ele não altera ou conserta nada ao revisitar seus álbuns para remasterizá-los com IA — a não ser quando se trata de uma desconstrução e remontagem como o remix do “Ruínas Circulares”. “Até erro eu mantenho! Se errei vai ficar assim. Porque é um momento único no espaço tempo. Gosto dessa espontaneidade. É arte zen. Você não pode premeditar, e também é assim com os efeitos aleatórios de música eletrônica: o oscilador está virando em loop infinito. Você não sabe em que ponto de bilhões de harmônicos ele vai estar! Cada álbum é também uma improvisação, está lá gravado.”

Uma última anedota sobre o “Ruínas Circulares” são seus vocais: A terceira parte de “Filho de Deuses”, com o subtítulo de “A Visão”, encerra o Lado A do vinil com a repetição de palavras misteriosas. Algo que soa como ‘Xix Tis Rais Tix’. Este marca o primeiro dos dois únicos momentos do disco com vozes, e eu perguntei em que língua está o trecho e o que significava.

“Isso aí na realidade não é nada. É uma linguagem inventada, que nem o Magma fez”, explica, referindo-se à linguagem ‘Kobaïan’ criada pelo baterista e compositor Christian Vander para acompanhar as músicas da banda francesa. “Na realidade, eu estava falando ‘Foda-se! Foda-se tudo!’, mas eu não falei diretamente porque poderia ser censurado. O Moisés, na época chamou atenção para o fato de que ali tinha muita gente religiosa, e eu respondi de novo ‘Foda-se’” (risos) “O Grijó também se preocupou, porque poderia ser ruim para a Faunus, que também era uma loja. ‘Vão fechar minha loja!’ Aí eu criei esse ‘Xix Tis Rais Tix’ e usei um flanger de guitarra por cima. Mas o que eu estava pensando enquanto eu entoava era ‘Foda-se! Foda-se!’. Porque ali acabou tudo! Não só o primeiro lado do disco: era a conclusão de que a humanidade não entendia nada, ninguém tava entendendo nada e eu também não!”

A solução foi engenhosa, mas a estranheza das sílabas em um disco com órgãos e sintetizadores executando melodias tão sombrias também não deve ter agradado os religiosos que circulavam na gravadora. “No fim, deve ter saído até pior. Ao invés de boca-suja, pareceu que era algo satânico!” (risos)

O segundo momento com vocais do disco, a faixa apropriadamente intitulada “Vozes no Infinito”, também não tem letras. Cantúsio afirma que a intenção destes vocais era uma versão mais positiva do mesmo “foda-se”: “Dizer que a vida é isso: a gente nasce, cresce, desaparece… Cada pessoa tem suas crenças, uma acredita na sobrevivência da alma, outra acredita que a vida é um sonho, uma ilusão. E no fim, ‘foda-se’, porque o importante é ter vivido e vindo nesse plano, trocado ideia, adquirido uma certa consciência. E tchau, né?”

Amyr Cantúsio Jr gravando em casa em 2023

Uma consequência que também é causa

Após “Ruínas Circulares”, Amyr Cantúsio Jr continuou fazendo música. No ano seguinte, após uma breve “mudança de assunto” com “Temple of Delphos”, compôs a trilha sonora para outro conto de Borges, “O Aleph”. O resultado foi o disco homônimo, que o compositor comenta ser a consequência direta do “Ruínas Circulares”, e pessoalmente seu preferido. O último lançamento em vinil do Alpha III foi “The Seven Spheres”, e desde então, compilou e remasterizou gravações da obra completa de Carlos Gomes, escreveu livros sobre música e outros tópicos, além de ter lançado independentemente mais de 50 CDs. Até hoje, Cantúsio lança composições novas, gravações de shows e remasterizações gratuitamente no YouTube. Se você não gosta nada de progressivo ou do tipo de eletrônica mais ambiente com a qual comparei o “Ruínas Circulares”, agradeço por ler até aqui com algo completamente diferente: o single “Penumbra”, de 2021, consiste em 30 minutos de uma espécie de darkwave instrumental que evocam paisagens cyberpunk e portos lotados sob céus com “cor de televisão num canal fora do ar”.

O nome “Alpha III” foi criado em referência à estrela mais próxima do nosso sol, a Proxima Centauri ou Alpha Centauri C, uma anã-vermelha que orbita em torno de outras duas estrelas e, por conta de seu brilho de baixa intensidade, não pode ser vista a olho nu.

Em seus primeiros 35 anos, o disco “Ruínas Circulares” também brilhou com baixa intensidade pelo Brasil, e foi ouvido em seu país-natal por um número muito menor de pessoas do que merecia. Sem dúvida há por aqui muitos ouvidos acostumados a discos que também usam a paleta do eletrônico para construir obras cósmicas. Falando em cósmico, devido à localização da constelação de Centauro, o brilho tímido da Alpha Centauri C só pode ser enxergado do hemisfério Sul.

Isso é uma metáfora muito boa para o projeto musical batizado em homenagem à estrela: por mais que tenha sido mais reconhecida no exterior à sua época, creio que a distância histórica de 35 anos faz com que esta obra do “Alpha III” seja melhor apreciada por uma nova onda brasileira de fãs. Ninguém sabe melhor que nós do hemisfério Sul dos perrengues da nossa história latino-americana para valorizar quando alguém daqui trabalha na vanguarda, sem acesso a estúdios como “A Mansão” (The Manor) da Virgin onde o Tangerine Dream compôs alguns dos seus discos mais aclamados.

Uma das intenções desta matéria é a de que o disco alcance mais pessoas nos próximos 35 anos. Consigo imaginar esse clássico perdido sendo revisitado de inúmeras formas, como covers ou mesmo samples: as faixas “O Sonho” e “Dança para a Eternidade” poderiam ser usadas em colagens, respectivamente de lo-fi e hip hop experimental. Sua música também poderia ser usada em trilhas sonoras para outras mídias que não contos e livros. Além da mesma “Dança para a Eternidade”, que faz pensar inevitavelmente no que aconteceria se David Lynch dirigisse um thriller de ficção científica e estética néon, penso que muitas das composições de Amyr Cantúsio Jr têm algo de cinematográfico. E a construção sombria das linhas de órgão em “Filho de Deuses” me remetem à trilha de jogos eletrônicos como “Castlevania: Symphony of the Night” e “Demons Crest“.

As possibilidades para o futuro do álbum são múltiplas. E isto combina com tudo mais no disco, como lembra Cantúsio: “Eu senti que o Borges estava passando isso pras pessoas: a vida é um sonho onde não se sabe se você é quem sonha ou quem é sonhado. Ou as duas coisas! Um efeito de uma causa, que também é causa de um outro efeito”, comenta por fim. “Nós não somos algo no presente: nós estamos sempre sendo, nós somos algo em gerúndio.”

Bruno de Sousa Moraes e Amyr Cantúsio Jr

Bruno de Sousa Moraes migrou das ciências biológicas para a comunicação depois de um curso de jornalismo científico. Desde então, publica matérias sobre ecologia e conservação da biodiversidade, e está se arriscando pelo jornalismo musical. Declaração de Conflito de Interesse para esta reportagem: o sorriso enquanto recebia o autógrafo não deixa negar que é fã do Alpha III. As fotos da reportagem são de Giovanna Romaro.

9 thoughts on “Música: Pérola perdida do experimental brasileiro, álbum “Ruínas Circulares”, do Alpha III, completa 35 anos

  1. Que viagem!!!! História fantástica e saudosista( no bom sentido) . Com um texto que proporciona uma imersão nessa aventura.
    Parabéns.

  2. Muito boa a matéria e a pesquisa!!! Espero que o Alpha III seja melhor difundido (principalmente aqui no Brasil) para promover polenização do experimentalismo avant garde nas gerações atuais e futuras. Seria excelente.

  3. Sensacional. Nunca ouvi falar mas me cativou do início ao fim. Darei sequência ouvindo o álbum. Ótima leitura. Parabéns.

  4. Excelente matéria, Bruno, principalmente os detalhes… muito interessantes. Além do que relembrou/divulgou um grande álbum que, se fosse inglês ou alemão, seria tratado como uma obra clássica do rock progressivo, e não como pérola perdida.

    1. Muito grato brother Mas somos brasileiros eu ainda evoco Gismont…que a maioria nunca nem ouviu falar…o maior pianista vivo ainda do Brasil!!

  5. Que texto bacana. Eu não sou um profundo conhecedor da área mais achei incrível a forma com que o disco foi produzido, praticamente artesanal. Toda história por traz do disco tem essa aura experimental que torna único. Gostei muito do artigo.

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