texto por Renan Guerra
Cinebiografias se tornaram um filão economicamente importante para o cinema nacional nos anos 2000. Entre lançamentos bons e ruins, a balança sempre pendeu mais para o lado negativo, com uma série de filmes que não nos dizem muito a que vieram e que tentam dar conta da vida inteira de artistas de forma mal amarrada em velozes duas horas. Em um caminho contrário a essa maré, chega agora aos cinemas brasileiros “Meu nome é Gal” (2023), de Dandara Ferreira e Lô Politi, sobre a vida de Gal Costa, baiana que é considerada por muitos a maior cantora do Brasil. Nessa narrativa, as diretoras optaram por um recorte bem definido que vai de 1966 a 1971, apresentando a fase que Maria da Graça chega ao sudeste e a sua trajetória rumo a tornar-se oficialmente Gal. Essa opção pode desagradar fãs que gostariam de ver o auge pop de Gal nos anos 80 ou sua maturidade nos anos 2000, mas o fato é que essa escolha temporal dá uma linha bem estabelecida ao filme, considerando a profusão de histórias que acontecem apenas nesse curto período de tempo.
“Meu nome é Gal” começou a ser produzido seis anos atrás. Gal Costa foi procurada por pessoas interessadas em levar sua história para o cinema. Para que sua vida ganhasse as telas, ela queria a presença de Dandara Ferreira, com quem tinha tido uma experiência profissional positiva na produção do documentário “O nome dela é Gal”, série exibida em 2017, com quatro episódios. A partir disso o projeto passa a ganhar forma, Lô Politi entra no processo criativo e um nome fundamental passa a integrar essa espinha dorsal do filme: Sophie Charlotte, atriz incumbida de dar vida a estrela do filme. Grande parte desse processo do longa-metragem foi feito com Gal Costa viva, algo que muda de cena com o inesperado falecimento da cantora no final de 2022. Essa virada de chave para se tornar um filme póstumo altera até mesmo a perspectiva com que uma parcela do público lê o filme, tanto pelo lado das pessoas que acreditam erroneamente que o filme foi feito às pressas (e de forma caça-níquel) após a morte da artista, o que não é verdade, quanto pelo fato de que, emocionalmente, todos os fãs de Gal ainda seguem extremamente sensíveis com sua perda.
Nesse pós-morte, a vida íntima de Gal Costa se transformou em tópico público e os pormenores de sua privacidade ganharam desde a mídia marrom até aquela que era mais vista com tons de sobriedade. Em vida, Gal sempre foi incisiva em torno de sua privacidade, tanto que todas as questões que envolviam a sua sexualidade causaram rusgas e atritos em diferentes momentos de sua história, especialmente em sua relação com a mídia, que podia ser bem complexa. Nesse sentido, o filme de Dandara Ferreira e Lô Politi recoloca os holofotes sobre a produção artística de Gal. Seus relacionamentos, sua sexualidade e sua intimidade com a mãe aparecem no filme e até funcionam de forma importante na construção de sua persona nesse novo mundo que se abre em sua vida, porém, o foco central e o fio narrativo se encontram na perspectiva profissional de Gal. Dentro do filme acompanhamos sua chegada ao Rio, sua mudança para São Paulo, o nascimento da Tropicália, suas primeiras gravações, a perseguição política perpetrada pela ditadura militar e seu posterior retorno para o Rio, com a produção do show “Fa-Tal”, em 1971.
Nessa narrativa acompanhamos os encontros de Gal com diferentes amigos, indo desde os fundamentais Caetano Veloso (Rodrigo Lélis), Gilberto Gil (Dan Ferreira) e Maria Bethânia (Dandara Ferreira) até nomes como Waly Salomão (George Sauma) e Jards Macalé (Barroso) – esses dois últimos talvez precisassem de mais tempo de tela, para que ficasse mais clara a importante troca que há entre eles e Gal na virada dos anos 70, já que eles são figuras fundamentais para que a cantora aguente o tranco quando seus amigos Caetano e Gil vão para o exílio na Inglaterra. De todo modo, os destaques aqui ficam pela relação de Gal com Guilherme Araújo (Luis Lobianco) e Dedé Gadelha (Camila Márdila). Araújo foi um produtor fundamental para o início da carreira dos quatro baianos e tem com Gal uma relação bastante íntima, algo que é bem amarrado pela atuação certeira de Lobianco, que consegue dar conta das afetações homossexuais do personagem sem cair numa caricatura desrespeitosa. Já Dedé Gadelha – esposa de Caetano à época – é uma figura que parece unir e conectar os outros personagens. Amiga de infância de Gal, a relação entre as duas era bastante íntima e próxima, algo que é bem destacado no filme, dando luz a essa importância de Gadelha como uma espécie de ímã que conectava essas pessoas em seu entorno. A relação na tela entre Camila Márdila e Sophie Charlotte tem uma naturalidade e uma sinceridade bastante simbólica.
De caráter bastante divisivo, “Meu nome é Gal” tem gerado tanto críticas elogiosas quanto agressivas, porém há uma unanimidade: Sophie Charlotte. Ela é realmente a estrela do filme e consegue dar conta das nuances de Gal Costa com uma unidade bastante forte. Vemos a figura arredia de Gal, suas atitudes ferozes e conseguimos sentir toda a sensualidade que emana de sua natureza, tudo isso é captado por Sophie em uma construção bastante meticulosa, que consegue reproduzir detalhes físicos de Gal de forma certeira. Quanto ao canto, há uma escolha complexa que ora usa a voz de Sophie, ora a voz original de Gal, e nem sempre isso funciona positivamente, mas acreditamos que é uma saída quando estamos falando de uma voz extremamente única e inimitável como a de Gal. Para além das atuações, é de se destacar a reconstrução de cenas e histórias que muitos fãs conhecem das entrevistas de Gal e que ganham vida na tela, além, é claro, da reconstrução bastante cuidadosa de momentos históricos, como a apresentação de “Divino Maravilhoso”, no IV Festival de Música Popular Brasileira, em 1968, ou o espetáculo “Fa-Tal”, de 1971, do qual se tem poucos registros em vídeo.
O balanço final é de que “Meu nome é Gal” é, claramente, feito por artistas que amam e respeitam Gal e que tentam, a partir dessa obra, tatear o mistério que há no talento e na personalidade da artista baiana. Não é um filme que reconta sucessos e fracassos e nem está tão interessado numa narrativa didática de fatos históricos, pois o que vemos na tela é um estudo de personagem, uma tentativa de compreender como a artista passa da menina Maria da Graça ainda cheia de timidez para o furacão Gal Costa. E tudo isso é registrado em um filme que tem a música como um fio condutor poderoso. Com a intensidade das paixões que Gal sempre causou, é natural que esse filme seria na linha ame ou odeie. Por aqui amamos e nos emocionamos e acreditamos que esse é um bom guia para que mais pessoas mergulhem nos mistérios e na sedução de Gal Costa.
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– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.