texto por Renan Guerra
Durante um verão bastante seco, a pequena Salomé retorna à aldeia de sua família nas montanhas portuguesas para ficar na casa de sua avó – sua mãe, assim como uma parcela da família, vive e trabalha na França, onde encontraram condições mais sólidas de subsistência. Sua avó é uma figura controversa no vilarejo, algo entre a bruxa e a puta, porém é com ela que Salomé aprende e vivência experiências únicas entre o místico e o profano. Só que sua amada avó morre e isso desencadeia quase uma guerra familiar. Mas enquanto os adultos brigam, Salomé se vê assombrada pelo espírito de sua avó. Essa é a história base do longa português “Alma Viva” (2022), em cartaz nos cinemas brasileiros.
É um plot e tanto, e talvez haja informações a mais aqui na sinopse do parágrafo anterior, mas o fato é que muito mais está na forma como essa narrativa é contada do que nas informações ali contidas. A família de Salomé é uma família clássica que briga para ver quem vai ficar com o que, e que se digladia para ver quem irá pagar o túmulo da mãe, bem como todos os trâmites fúnebres. Algo bem usual em qualquer família. De todo modo, o charme do filme de Cristèle Alves Meira está na forma que ela conta tudo isso. Em “Alma Viva” os gêneros se embolam e a gente nunca sabe ao certo o que estamos assistindo: é uma comédia? Um drama? Uma fábula de horror?
Essa não-definição é o que torna “Alma Viva” tão atrativo. Seus atores buscam ao máximo o naturalismo, tanto que há cenas que nos fazem até questionar se estamos vendo atores ou não-atores. Chega a ser curioso como a construção desse vilarejo do interior de Portugal se torna absurdamente crível na tela e cada um daqueles idosos que ficam pelas ruas a praguejar os vizinhos parecem absolutamente reais, como num documentário não muito ético. Isso tudo só ganha corpo pela atuação da pequena Lua Michel, a protagonista Salomé. Sabemos bem que filmes com atores mirins podem render atrocidades, pois criança é imprevisível e nem sempre tem todas as nuances necessárias, o que não é o caso aqui. Lua Michel consegue ir muito bem do humor e da leveza pueril para a tensão, o medo e o horror de uma pequena bruxa.
“Alma Viva” faz uma interessante costura entre a realidade e o misticismo, em que as questões extremamente práticas da família, como doenças e dinheiro, são tratadas com a mesma seriedade que os espíritos que vagueiam pela casa e pela vizinhança. Toda a narrativa em torno do místico e da perspectiva de avó e neta serem bruxas é tratada com tanta naturalidade dentro do filme que não gera questionamentos – o que é muito positivo, já que é mágico quando o cinema nos coloca nesse estado de suspensão em que o real é aquilo que está na tela e o público só embarca nesse universo proposto pelo filme. Para além disso, o filme de Cristèle Alves Meira ainda cria interessantes diálogos com diferentes filmes modernos que sacodem essas construções do que seria uma bruxa e de como isso está incrustrado numa construção bastante misógina – dadas as devidas proporções, temos ecos aqui, por exemplo, de “A Bruxa” (2016), de Robert Eggers.
Em outros âmbitos, quando se coloca no espaço do drama, “Alma Viva” abre diálogo com interessantes filmes recentes que falam sobre perda e amadurecimento na infância e na adolescência, como o nacional “A primeira morte de Joana” (2023), de Cristiane Oliveira. Ainda assim, os melhores momentos do filme se dão realmente quando o longa se joga na comédia ácida, ecoando os grandes momentos do cinema de Mario Monicelli – não tem como ver eles discutindo mágoas e questões financeiras em pleno velório e não lembrar do excelente “Parente É Serpente” (1992). E é curioso como nessas desgraças nos irmanamos com os nossos portugas, sério, há cenas no filme que poderiam se reproduzir em qualquer cidadezinha do interior do Brasil. É aquela história de que achamos que nossas experiências são muito únicas, mas o mundo todo vive as mesmas coisas e é divertidíssimo quando o cinema capta essas nuances e a gente consegue se ver e ver os nossos em tela.
Lançado em Portugal no ano passado, “Alma Viva” foi o escolhido pelo país para ser o seu representante na corrida pelo Oscar de 2023, o que não rolou, talvez até porque esse é um filme um tanto estranho e que talvez passe desapercebido por muita gente, mas é nessa estranheza que está sua unicidade. A nossa dica é que você se deixe tocar pela história que Cristèle Alves Meira conta em “Alma Viva” e garantimos que alguma coisa ela vai te provocar, sejam lágrimas ou risos.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.