texto por Marcelo Costa
fotos por Fernando Yokota
Na virada de março para abril de 2023, Adriana Calcanhotto colocou nas ruas seu 13º disco de estúdio, “Errante”, um álbum todo trabalhado no conceito de cidadã do mundo, com a arte da capa simulando um passaporte, com direito a carimbos de visto e a foto de uma mulher que vive “no mundo da lua, mas atravesso desertos sendo que prefiro os mares”, como ela própria narra em “Prova dos Nove”, faixa de letra torta que abre um disco de fim de romance e desejo de viagem.
Entre abril e maio, a artista mergulhou numa curta temporada de sete shows em homenagem à Gal Costa, apresentação que também chamou a atenção devido a cantora repetir um gesto famoso de Gal em 1994, o de abrir a camisa e mostrar os seios para o público. De volta à estrada com o show “Errante”, em apresentação delicada e intimista no Sesc Pompeia, em São Paulo, Adriana não precisou mostrar os seios, porque o disco e o show sugerem um desnudamento da alma.
Por mais que a ideia de nomadismo permeie o repertório de “Errante”, algo que a própria Adriana aprofunda em entrevistas, estilhaços de um coração partido também são flagrados aqui e ali no álbum, que será apresentado na integra nessa noite. Não será a primeira vez – e está muito longe de ser a última – que o fim de um romance irá inspirar um disco, e o gosto amargo da desilusão poderá ser visto fatiando a atmosfera da choperia do Sesc Pompeia em muitos momentos da noite.
O funk atravessado por samba “Prova dos Nove” também abre o espetáculo e traz ao cabo “Beijo Sem”, deliciosa canção despudorada do álbum “O Micróbio do Samba” (2011) que traz Adriana cantando “Eu não sou mais / Quem você deixou, amor / Vou à Lapa, decotada (…) E a orgia é meu bem”. O som é diminuto e classudo no clima de samba jazz com pitadas de funk tocado por uma banda afiada formada por Pedro Sá na guitarra, Domênico Lancelotti na bateria, Alberto Continentino no baixo acústico, e Diogo Gomes, Jorge Continentino e Marlon Sette nos metais.
Com Adriana iluminando os músicos com uma lanterna surge uma das canções mais fortes de “Errante”, “Pra lhe Dizer”, que encanta com seus versos doloridos – “Só pra dizer que eu vou trocar de sonho / Eu vou mudar de você (…) Provavelmente você nem vai reparar / Quando eu fechar a porta sem olhar pra trás / Eu vou ali ser feliz / Não volto mais” – que serão reforçados logo na canção seguinte, “Mais Feliz”, do álbum “Marítmo”, de 1998: “O nosso amor não vai olhar para trás”.
Para quem ainda não tinha entrado na vibe de fim de romance do álbum até esse momento do show, a tríade “Quem Te Disse?”, “Jamais Admitirei” e “Horário de Verão” é um drink feito com lágrimas para embebedar almas. Da primeira, outro dos grandes momentos do disco, surge o cortante recado: “Não me quer porque sou branca / Não me quer eu não sou moça / Não me quer por ser mulher (…) Lindeza, livre-se das suas crenças / Quem te disse que o amor vê diferenças”. Da segunda, surge a certeza de que “Ninguém vai me ouvir dizer que este samba é pra você” (ouviu, Maitê?). Da terceira, “Quisera eu não mais esperar pelo que você jamais prometeu”. Sentiu as pontadas no coração, leitor?
De seu primeiro disco, “Enguiço”, de 1990, Calcanhotto resgata a jazzy “Naquela Estação”, mas retorna ao novo álbum com “Reticências” e a pungente “Levou Para o Samba a Minha Fantasia”. Ela, então, abre um espaço no show “Errante” para inserir um pequeno trecho do show em homenagem à Gal com duas canções que a baiana tinha gravado dela: a inédita em sua voz “Livre do Amor” e o grande hit “Esquadros”, aberta com citação de “Assim falou Zarathustra”, que sacode o público que já vinha cantando a maioria das músicas novas sem tropeçar nas letras, e se empolgando com as leves saracoteadas da cantora no palco.
O trio final do álbum “Errante” na noite reúne três das mais fortes canções do álbum: “Nômade” surge envenenada por guitarra e bateria galopante e se conecta com a desiludida “Era Isso o Amor?”, outra com boa intervenção de guitarra de Pedro Sá. O sambinha delicioso “Larga o Tudo” manda um recado praquelas pessoas que ligam muito para o que os outros pensam: “Larga do que vão dizer na sua casa / Larga do que vão falar nessa cidade”. Os hits “Maresia” e “Vambora” colocam ponto final em uma noite que permitiu dançar sobre lágrimas e pedaços de um coração partido com sorriso no rosto e passaporte na mão.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: instagram.com/fernandoyokota/