texto por Renan Guerra
Em 2021, Letícia Novaes, a pessoa por trás da persona Letrux, lançou um livro chamado “Tudo que já nadei: Ressaca, quebra-mar e marolinhas”, e é curioso como a água, o mar e tudo isso está sempre ligado à sua figura. É curioso aliás como usamos metáforas como o “mergulho” para falar sobre sua obra, é como se, desde lá de o Letuce – a antiga banda de Letícia – nós estivéssemos nesse mergulho profundo ao lado dela. E é curioso também como sua figura pública e poética é algo meio oito ou oitenta: quem se aventura com ela quer lhe dar mão e encara a apneia, mas quem desgosta parece que precisa repetidamente deixar claro o quanto a odeia. É dos extremos que eles gostam.
“Letrux como Mulher Girafa” (2023), seu terceiro disco sob o nome Letrux, é certamente mais um trabalho que irá dividir opiniões, pois é Letrux à máxima potência. Todos os “letruxismos” estão bem expostos e encaixados aqui: sua poética lúcida-delirante segue potente e sua abordagem pop rock segue deliciosa. Depois de uma espécie de estouro com o “Letrux em Noite de Climão” (2017), Letícia ganhou os palcos de diferentes festivais pelo Brasil, tocou no Lollapalooza e viveu um turbilhão de coisas. Com o apoio do edital Natura Musical, veio ao mundo “Letrux aos Prantos” (2020), que foi lançado bem quando todos se fechavam em suas casas em função da pandemia. Esse processo de reclusão e, para Letrux, de mergulho em si mesma, acabou registrado no tocante documentário “Letrux – Viver é um Frenesi”, de Marcio Debellian.
Para seu novo disco, Letrux chamou o produtor João Brasil, amigo de longa data e que já havia produzido o excelente e derradeiro disco do Letuce, “Estilhaça” (2015). Juntos, Letícia e João conseguem fazer uma espécie de passeio por sonoridades pop com ecos do pop rock nacional lá dos anos 80, aquelas produções electroclash do início dos anos 2000 e mais uma seara de sons que remetem à pista de dança. Depois das plumas e paetês e das makes para chorar na pista, agora Letrux nos convida a tirar o animal print do armário e nos soltarmos como bichos. Ok, a girafa está ali no título por uma questão de identificação da artista: alta e esguia, Letícia transformou o apelido pejorativo da infância em certa fixação positiva com o animal, mas “Letrux como Mulher Girafa” vai além e é como um passeio pelo zoológico, com uma série de bichos para lá e para cá.
Abelhas, leões, hienas, aranhas, crocodilos, zebras, formigas e homens se embaralham nessa alucinação em que os bichos são metáforas das nossas relações, com todas as camadas de medo, insegurança e solidão que isso tudo pode trazer. E mais uma vez a poética de Letrux acerta em um ponto muito interessante: o uso do humor como um caminho para adentrar em tópicos complexos e delicados. É como aquele meme em que o menininho começa rindo e quando vê se pega já chorando. Na contracapa do livro de Letrux, aquele que citamos no início do texto, Lulu Santos dizia o seguinte: “escrever é uma coisa, fazer querer ler é outro inteiramente diversa”. É isso é um fato, pois os fãs de Letrux querem lê-la, ouvi-la, “devorá-la, degluti-la, mastigá-la”. E ela sabe bem disso, tanto que permeou o disco com pequenas vinhetas que ela intitulou de “intervalos”, onde se ouvem detalhes e momentos do processo de produção, fazendo uma espécie de costura para o álbum.
Já que citamos Lulu Santos no parágrafo anterior, é interessante dizer que ele está nesse disco também e divide vocais com Letrux na excelente faixa “Zebra”, com seus versos que dizem “Se voando a gente se encontrar / eu te prometo um abraço / Te roubo o maço, te dou um cansaço, arranco pedaço”. Além dessa canção, vale destacar a letra quase fábula de “Aranha”, faixa inspirada pela obra da artista plástica Louise Bourgeois; a produção deliciosa de “Leões”, algo meio Adriana Calcanhotto na fase eletrônica dos anos 90; ou ainda a ótima “Hienas”, com a repetição do refrão que diz “Você sempre foi nóia” – certeza que isso ficará excelente ao vivo.
Os animais da selva de Letrux são como um convite para que também olhemos para a nossa própria natureza animalesca enquanto humanos. É um passeio divertido pela sua poesia e pela sua forma bastante única de olhar para o mundo. E não resistindo à metáfora clichê, terminamos dizendo que “Letrux como Mulher Girafa” pede mais uma vez o nosso mergulho profundo ao lado de Letrux. Prepare seus pés de pato e salte!
Leia o texto de Leila Accioly sobre o disco “Letrux como Mulher Girafa”
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.