texto de Lucas Reis
O dia 19 de junho é considerado o aniversário do cinema brasileiro. Todos os anos, nessa data, amontoam-se nas redes sociais listas de melhores filmes brasileiros, indicações de obras disponíveis em streamings e celebrações sobre uma das “melhores cinematografias do mundo” – como se fosse possível fazer comparações dessa dimensão. Entretanto, nunca é discutido o porquê de tal comemoração e qual é o seu sentido.
Cabe destacar que essa data ficou marcada como a primeira filmagem no país. Contudo, é necessário abordar algumas questões. Primeiro, a filmagem foi realizada pelo italiano Afonso Segretto que, à bordo de um navio francês – em águas internacionais – filmou a Baía de Guanabara. Ele estava chegando no país depois de uma viagem à Europa para comprar equipamentos para a realização de filmes. Ao levantar tais questões, a ideia de nacionalidade perde o brilho. Contudo, há outros problemas que devemos observar.
Afonso Segretto (na foto que abre o texto) foi para a Europa a pedido do irmão, Paschoal Segretto, um comerciante italiano bem-sucedido no ramo de diversões que se estabeleceu no Rio de Janeiro. Embora, filmes posteriores de Afonso tenham sido exibidos, as filmagens da baía de Guanabara nunca foram à público. Uma das possibilidades apontadas por historiadores é a de o filme ter velado. Ou seja, Afonso Segreto apontou a câmera, girou a manivela, mas as imagens nunca se formaram. O nascimento do cinema brasileiro seria celebrado, então, por um filme que nunca existiu. Considerando que ele aprendeu a filmar na Europa e nunca havia filmado em um país tropical, tal possibilidade é real.
Ao pensarmos a história do cinema mundial, a data canônica é 28/12/1895, quando os irmãos Lumiére fazem uma demonstração de uma nova invenção, o cinematógrafo, projetando dez filmes de curta duração como “A chegada do trem à estação de La Ciotat” ou “A saída dos operários da fábrica”. O nascimento do cinema seria, portanto, uma exibição pública, paga e bem-sucedida. Pública porque qualquer pessoa poderia assistir, paga porque era necessário desembolsar certa quantia para entrar no espaço de exibição e bem-sucedida porque os filmes foram rodados sem problemas técnicos de maior ordem.
A ideia de nascimento do cinema, então, parte da exibição. Ou seja, da recepção dos filmes pelo público. Por outro lado, o cinema brasileiro celebra a primeira filmagem, ou seja, a primeira vez que foram produzidas imagens cinematográficas no país. Há, assim, um problema conceitual. O que é o cinema? A produção de imagens ou o contato dessas imagens com o público. Uma questão que pode ser relevante para explicar essa diferença entre as celebrações seria a ideia de que o Brasil nunca teve a maior fatia de seu mercado exibidor – sempre voltado para o produto estrangeiro. Então, o que resta para o cineasta brasileiro é realizar um filme já que chegar ao público é um caminho muito mais árduo.
Por último, é necessário destacar que já havia exibição de filmes no Brasil antes do dia 19/06/1898. Inclusive, a primeira exibição teria sido na Rua do Ouvidor, na cidade do Rio de Janeiro em 08/07/1896. Quase dois anos antes. Mesmo que fossem apenas filmes europeus apresentados pelo belga Henri Paillie, é possível dizer que o público brasileiro já conhecia o cinema. Até porque aconteceram várias exibições itinerantes que passaram por diversas cidades do país. Então, como poderíamos chamar de início?
Relevante para celebrar o aniversário do cinema brasileiro seria promover análises sobre a produção atual; debater se os filmes produzidos no país chegam ao público; pensar as políticas de preservação audiovisual; valorizar as políticas públicas para regular o streaming no país; defender com que as minorias sociais possam realizar as suas obras; cumprir a lei 13.006/2014 que estabelece a exibição de filmes produzidos no Brasil em todas as escolas do território nacional; dentre várias outras discussões que permeiam o cenário audiovisual do país.
Por outro lado, o que vemos é apenas uma celebração asséptica com indicações de filmes brasileiros supostamente importantes – e quais não seriam? Essas listagens, inclusive, valorizam um grupo de filmes e se desinteressam por milhares de outros. Em geral, as listas seguem uma receita para exaltar o que foi bem recebido fora do país.
As listas, em geral, começam com Limite (1931), de Mário Peixoto, que foi exaltado nos EUA. Depois passa por filmes do Cinema Novo (especialmente Glauber Rocha), movimento valorizado pela intelectualidade francesa obtendo uma edição especial inclusive na publicação Cahiers du Cinéma. Passam pela década de 1990 e pelo início dos anos 2000, em que os festivais de cinema europeus e as premiações americanas prestigiaram as produções brasileiras e terminam com o cinema brasileiro contemporâneo, especialmente os filmes que circulam nos festivais estrangeiros.
Junto a essa receita, valoriza-se o cinema marginal que foi redescoberto no país há uns vinte anos, uma ou outra pornochanchada considerada progressista já que estamos em um momento de revalorização desses filmes – especialmente dos considerados autores da “Boca do Lixo” como Carlos Reichenbach ou Jean Garrett e termina por aí. Deixam de celebrar o cinema brasileiro e passam a celebrar o filme brasileiro – distinção que muitos não fazem questão de ponderar.
Indicações de filmes nacionais podem ser dadas todos os dias. É viável uma lista com 365 obras ou 730 ou 1095 e assim sucessivamente. Entretanto, utilizar uma data como oportunidade para iluminar temas obliterados da cinematografia do país é mais custoso. Certamente, os debates devem ser realizados constantemente, porém podemos utilizar datas marcantes para além de listas assépticas com um tom celebratório e completamente inofensivas. Um pouco de contestação sempre faz bem.
– Lucas Reis é pesquisador de cinema brasileiro. Atua como crítico de cinema, histórias em quadrinhos e televisão. Escreve na Revista Aurora Cine.