texto por Leonardo Vinhas
fotos por Fernando Yokota
Logo após ouvir o La Femme pela primeira vez, procurei alguns vídeos deles tocando ao vivo. Enviei um desses clipes a um amigo com a pergunta: “esses caras transformam picaretagem em arte, ou é só picaretagem mesmo?” O amigo não deu uma resposta conclusiva, e o show da banda no Fabrique, em São Paulo, no dia 16 de maio, não ajudou muito a solucionar a questão.
O La Femme foi formado por dois amigos de Biarritz, Sacha Got e Marlon Magnée. Como o próprio Magnée declarou em uma breve e impaciente conversa com o Scream & Yell antes do show, a ideia era que a banda fosse uma espécie de “escola de arte” mais particular e intuitiva. Pra isso, recorreram principalmente à estética musical e visual da cold wave francesa e do Yé-Yé. Esses elementos receberam doses consideráveis de cinismo e sensualidade, e logo a banda consolidou sua sonoridade punk-pop-psicodélica.
Tal rótulo sugere quase uma brincadeira. E em alguns momentos, o La Femme realmente parece uma grande tiração de onda. “Não queríamos apenas fazer como as bandas que tocavam num rooftop de jeans e camiseta branca, sabe? Parecia que era só isso que rolava na época em que começamos (2010), e isso é muito chato. Queríamos trazer de volta a magia de um universo mais interessante, mais provocante”, assumiu Magnée.
Provocação e apelo visual não faltaram na apresentação paulistana: assim que subiram ao palco, Magnée e os demais integrantes da banda (o baixista Sam Lefèvre, o baterista Noé Delmas, e as tecladistas, percussionistas e vocalistas Ysé Grospiron e Fanny Luzignant – Sacha Got não esteve presente na tour latina), exibiam seus elegantes trajes em preto e branco, feitos sob medida para as figuras esguias de cada músico (alguns dos quais têm carreira paralela como modelos, vale dizer). Cada passo de dança, cada desabotoar de jaqueta, tudo parecia feito para aguçar os olhos e atiçar a libido do público (de 800 pessoas, segundo informações da produção).
Em uma escolha curiosa de repertório, a banda decidiu concentrar quase todos os seus maiores hits na primeira metade do show. Assim, depois de uma “Packshot” mais encorpada que a versão de estúdio, vieram enfileiradas “Óu Va Le Monde”, “Cool Colorado” e “Y Tu Te Vas”. Não muito, surgiram “Sacatela” e “Mycose”. Trazer os maiores cavalos de batalha logo de cara gerou empolgação e extrema boa vontade por parte do público, mas quase tudo isso foi posto a perder com uma dobradinha lenta e dispersa com a interminável “Me Suive”, e a insossa “Tu T’en Lasses”.
A corrida aos banheiros foi grande, ainda que não necessariamente para realizar necessidades fisiológicas (pode-se dizer que foi uma noite bastante química…). Mas “Cha-Cha” botou o trem de volta nos trilhos, e o La Femme garantiu sua apoteose junto aos fãs. Mas para quem não estava ali determinado a aplaudir até espirro, restaram algumas constatações e um tanto de pontas soltas.
A primeira constatação é que o La Femme é, sim, uma banda punk, para o bem e para o mal. Há uma energia bruta em suas melodias, que não se perde em muitos acordes. A execução dispensa computadores e bases pré-gravadas – o que não é um feito menor em uma era onde é cada vez maior o número de “shows” onde alguém dá play num laptop ou dispara pistas em um Ableton. Por outro lado, alo longo de 90 minutos, é evidente o quanto algumas bases rítmicas são muito assemelhadas, e como alguns arranjos percorrem caminhos parecidos entre si.
Também fica claro ao longo do show o quanto a banda tem dificuldade em dominar andamentos mais lentos e canções mais delicadas. Quando abandona a velocidade punk ou a sensualidade à Serge Gainsbourg, o La Femme não consegue se encontrar – a já citada duplinha “Me Suive”/”Tu T’en Lasses” estava ali para não me deixar mentir. A peteca só não caía nessas horas porque a dupla de vocalistas femininas conseguia chamar a plateia para si, acontecesse o que acontecesse. O visível cansaço de Marlon Magnée, que por vezes parecia estar tentando se lembrar de um script, também não ajudava.
Ainda assim, não resta dúvida de que o La Femme não é picaretagem depois de vê-los ao vivo. O que ainda é difícil saber é se o charme da banda vai além da provocação sensual das suas figuras femininas, de seu apelo retrô e dos mesmos quatro ou cinco modelos de canções que se repetem. Para um público que não conhece as referências de Got e Magnée, tudo parece novo, mas a verdade é que eles brincam com ferramentas e signos já bastante explorados no universo pop – tiveram apenas a sacada de agrupar todos debaixo da mesma identidade. Diverte? Sem dúvida. Se consegue se sustentar ou ter longevidade, ainda é algo a se descobrir.
Mas houve mais coisas naquela noite gelada. Antes de tudo, o combo uruguaio-brasileiro The Royal Thieves mostrou, em uma apresentação rápida, que seu som que está em algum lugar entre o pastiche e a identidade própria. A banda tem algumas canções interessantes, e ao vivo, entrega arranjos caprichadíssimos, muito superiores aos seus registros de estúdio. Chamou a cantora YMA para uma bem-vinda participação, e ainda mostrou dialogar com algumas das referências musicais do La Femme. Foi o que um show de abertura sempre deveria ser: uma chance de uma banda em desenvolvimento mostrar um trabalho que se relaciona de alguma forma com a atração principal. Um couvert bastante apropriado.
Já a francesa Sam Quealy… A moça tem canções que parecem saídas diretamente de uma aula de aeróbica dos anos 1990 – ela insiste em chamar de “technopop”, mas é um eurodance mequetrefe. Sua performance “ousada” – na verdade, um playbackão na cara dura – parece mais um show de meio de noite de casa de swing: uma pose ginecológica aqui, várias levantadas de pélvis ali, um chacoalhar de seios acolá… Tudo tão oco e vulgar que, quando ela pegou uma espadinha de brinquedo, fiquei em dúvida se ela iria fazer uma alusão fálica óbvia, ou emendar um cover de “He-man”, aquela composição de Sullivan & Massadas eternizada (?) pelo Trem da Alegria. Claro que ela optou pelo primeiro caminho – pra delírio da plateia.
E que público é esse que, em pleno 2023, ainda acha referência à genitália um assombro? Era surpreendente como cada empinada de bunda da moça era saudada como um ato de transgressão e expressão pessoal – um rapaz de cabelo descolorido ao meu lado não parava de gritar “artistaaaaaa” a cada gesto do tipo. Mas a verdade é que Sam apresenta uma diluição bem preguiçosa de clichês usados à exaustão por vários nomes do pop do passado, de Madonna a Toyah Wilcox, passando até por Wendy O. Williams. Essa montanha de lugares comuns, com ares de aeróbica porn embalada à playback, ganhou reações entusiasmadas, mais ruidosas do que as que o próprio La Femme receberia.
E aí voltamos ao papo do início do texto: quem quer saber de arte ou longevidade em tempos de choque raso e consumo rápido? O playback e as vulgaridades de Sam Quealy encontraram resposta imediata, apesar do vazio de suas propostas. Ela ainda se juntaria ao La Femme no palco para… não sei, dançar? Seus poucos backing vocals foram inaudíveis, e ela sumiu diante da dupla de vocalistas-tecladistas. Mas se a própria banda chancela a “proposta” da moça, ao ponto de trazê-la para suas fileiras temporariamente, quem vai dizer que ela não estava exatamente onde deveria estar? É fácil travestir picaretagem de arte quando o próprio público parece não saber bem a diferença entre os dois. E talvez nem se importe com isso.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/