texto por Marcelo Costa
fotos por Bianca Tatamiya
“Hoje nós vamos tocar as oito músicas na sequência do álbum original”, avisa Nasi. Esse disco (‘Psicoacústica’, 1988) foi mal compreendido na época, o pessoal estranhou, pois depois de dois álbuns de um rock muito básico (‘Mudança de Comportamento’, 1985, e ‘Vivendo e Não Aprendendo’, 1986), com vários refrões, várias melodias, a gente se fechou no estúdio para tocar a produção nós mesmos – fomos os primeiros da nossa geração a se autoproduzir – (e fazer um álbum) cheio de momentos instrumentais, (com) uma atmosfera… mas não havia refrão no álbum inteiro. (Na verdade) tinha dois refrões: ‘Pegue essa arma’ (da faixa homônima) e “Serve-se morto” (risos), que era do primeiro single do disco… A gravadora ficou muito puta com a gente (mais risos), mas (apesar do fracasso comercial) esse disco acabou sendo reconhecido e citado em diversas listas de melhores discos brasileiros de todos os tempos”, explica o vocalista, ambientando a todos os presentes no Teatro Bradesco numa noite pra lá de especial.
“Psicoacústica”, o tal disco, é tudo isso que Nasi falou e muito mais. É o melhor disco do Ira! (eles nunca mais igualariam sua obra-prima, e foram os primeiros a perceber isso quando, no auge da crise criativa causada pelo insucesso do disco, cavocaram o baú e pariram o ‘burocrático’ – nas palavras do próprio guitarrista Edgard Scandurra – “Clandestino”, em 1990) e um dos melhores de todo o rock nacional – marcou presença no 81º lugar da lista dos 100 maiores discos da música brasileira de todos os tempos, organizada pela revista Rolling Stone Brasil em 2007. Assumidamente anticomercial, “Psicoacústica” vendeu “apenas” 50 mil cópias (contra as 250 mil do disco anterior, “Vivendo e Não Aprendendo”, carregado pelo hit “Envelheço na Cidade” e por “Flores em Você”, que ficou sete meses tocando no horário nobre da Rede Globo como tema de abertura da novela “O Outro”) e ganhou um espaço especial no coração da família Ira!, séquito de fãs que envelheceu junto com o grupo, e hoje leva filhos e netos para assistir a banda do coração.
Diante de um Teatro Bradesco totalmente tomado em noite de 1400 ingressos esgotados antecipadamente (uma nova data foi anunciada para 11 de agosto), e escudados por Evaristo Pádua (bateria) e Johnny Boy (agora no baixo), dois músicos que estão no Ira! desde o reencontro da dupla principal na Virada Cultural 2014, Nasi (voz) e Scandurra (guitarra e voz) se equilibraram muito bem na corda bamba do tempo mostrando que estão em excelente forma: o vocalista vive uma de suas melhores fases nesse século, com a voz impecável e ótima postura de palco; já o guitarrista segue sendo um gênio das seis cordas, instrumento que emprestou para muitos nomes da nova (velha) geração, e também para contemporâneos seus, o que serve sempre para manter a mente criativa arejada – além de marcar presença com sua voz em números importantes da noite.
Antecipado pela voz do narrador de “O Bandido da Luz Vermelha” (1968), filme clássico de Rogério Sganzerla, a poderosa “Rubro Zorro” chega quebrando tudo. Nasi canta tão bem quanto cantava 35 anos atrás, e Edgard esmerilha na guitarra, ainda que, para ele, seja impossível alcançar o nível mágico de várias guitarras sobrepostas da gravação de estúdio – a microfonia apitando que começa aos 2 minutos e 30 da versão original e explode em guitarradas quase 15 segundos depois deve ter dado um nó na cabeça de muito técnico de estúdio da época acostumado a gravar MPB, bossa nova e sertanejo. Introduzida pelo coro angelical do álbum, “Manhãs de Domingo” explode em guitarradas e traz, ao cabo, a cadenciada e explosiva “Poder, Sorriso, Fama”. O single “Receita Para Se Fazer um Herói”, a música “menor” do disco, é cantado em coro pela plateia, e Nasi aproveita para autografar um vinil de um garoto que não tinha nascido quando o álbum havia sido lançado – ele dará uma camiseta para outro moleque depois.
O lado B do disco traz à tona a grandiosa “Pegue Essa Arma”, um dos raros momentos do show que a cozinha original (André Jung e Ricardo Gaspa) faz falta. Evaristo e Johnny cumprem muito bem a função, e a versão empolga (como não??), mas quem acompanhou o Ira! nos anos 80/90 sabe o quanto essa canção em particular pode elevar o ouvinte aos céus (“Vitrine Viva” era outra). A antítese “Farto de Rock’n Roll” fatia a atmosfera com seu maravilhoso riff metalizado e o mantra de terreiro “O Advogado do Diabo”, uma das canções absolutamente impecáveis de um álbum repleto de momentos impecáveis, surge em grande versão adaptada para o ao vivo. Para colocar ponto final na primeira parte do show, a psicodélica, lírica e campestre “Mesmo Distante”, outra faixa impossível de ser recriada tal qual o álbum num show, surge adaptada lindamente em momentos mágicos de Edgard Scandurra, alternando-se entre violão e guitarra. Lá se foram 40 minutos de nossas vidas… e 35 anos das melhores memórias.
“Dias de Luta” tira o público do transe momentâneo e coloca a todos num show típico do Ira!, que combina hits deliciosos (“Envelheço na Cidade”, “Flores em Você”, “Núcleo Base”), canções ingênuas pueris (“Tarde Vazia”, uma das mais celebradas da noite, e as terríveis “Flerte Fatal” e “Vida Passageira”, ambas inseridas por Nasi no set de improviso durante o show), canções ingenuamente belas (“O Girassol”, também a pedido de Nasi, e “Eu Quero Sempre Mais”, com o vocalista dando um beijo carinhoso na careca de Edgard e todo público cantando junto), uma faixa mais nova (“O Amor Também Faz Errar”, do disco “IRA”, de 2020) e covers especiais, que nesse noite incluem Black Sabbath (“Black Sabbath”), Jimi Hendrix (“Foxy Lady”), The Trashmen/Ramones (“Surfin’ Bird”) e The Clash (“Pra Ficar Comigo”, versão de “Train in Vain” registrada no “Acústico MTv”, de 2004). É quase como uma volta no tempo, o que levanta a questão de como o show (não apenas por homenagear um disco do século passado) versa mais sobre o que passou do que sobre o tempo presente e o que está por vir (a grande maioria dos artistas com mais de 30/40 anos de carreira não consegue fugir dessa arapuca, porém há exceções), mas a família Ira! sorri de orelha a orelha desfilando camisetas com mais de três décadas de uso e um amor insuspeito por uma banda que merece todo esse carinho. Reserve seu lugar para agosto. Vale a pena.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne. Vídeo do show por Alexandre Matias / Trabalho Sujo. Assista a outros shows completos no canal dele no Youtube.
Acho estranho considerarem esse o ‘melhor’ disco do Ira!, assim como acho muito mais estranho ainda o disco Clandestino – que tem as melhores guitarras do Scandurra e algumas das canções que mais simbolizam o peso e a leveza da banda – tarde vazia, efeito bumerangue- aliada a um ‘psicodelismo brazuca’ (melissa) serem escorraçados porque um dia André Forastieri decidiu que era necessário ‘implodir’ com a geração 80. E Clandestino, que é um dos discos mais fodas da banda, ficou num limbo estranho.
Ficou num limbo porque é um disco fraco, desfocado, de uma banda que diante do fracasso de vendas do “Psicoacústica” quase implodiu, e como muitas do periodo num momento de pressão e falta de criatividade mergulhou no baú pra retirar coisas velhas ao invés de criar material novo. Pessoalmente tenho carinho porque o Ira! era a minha banda favorita do período, mas “Melissa” é uma bobagem, “Tarde Vazia”, “Patroa” é “Boneca de Cera” são dolorosas de tão pueris, e tanto “Clandestino” quanto “Nasci em 62” são para fãs de primeira hora da banda, que é pra quem esse disco foi feito (a insegurança era tanta que eles decidiram fazer um disco para os fãs da cidade deles, a família Ira!, ao invés de olhar para todo o país). Se salvam “Efeito Bumerangue” (que ficava muuuito melhor ao vivo), “Cabeças Quentes” (talvez a melhor canção do Ira!) e as duas canções da primeira fase que não envelheceram tanto entre 1982 e 1990 quanto as outras: “Consciência Limpa” e “O Dia, a Semana e o Mês”. Só não é o pior disco do Ira! porque eles ainda iriam lançar “Música Calma para Pessoas Nervosas”.