Lançado originalmente em 1995, o álbum “12 de Janeiro” foi o primeiro disco solo de Nando Reis, antes mesmo da sua saída dos Titãs. A partir desse disco, além de todas as composições serem exclusivamente suas, o cantor trocava o baixo que tocava nos Titãs, pelo violão, seu instrumento de origem. En 2023, nas comemorações de seus 60 anos, Nando Reis relança o álbum “12 de Janeiro”, que também é sua data de nascimento, numa versão expandida: na playlist no final do texto somam 28 canções, sendo as 12 do disco original, versões demo de todas as faixas mais as inéditas “Real Grandeza”, “Gerânio” e a nova versão do single “A Fila”, com participação de Jade Beraldo. O álbum também ganhará uma versão em vinil duplo 45 rotações. Seu filho, Theo, assina o texto abaixo.
texto de Theo Reis
Desde que nasci meu pai é músico e entre as minhas lembranças mais antigas estão as inúmeras viagens que fiz com ele para os shows dos Titãs. Me recordo de pegar estrada em um ônibus verde musgo com poltronas largas reclináveis que ao fundo tinha uma espécie de sala com uma mesa cercada por um sofá. Aprendi muitas coisas conversando ali. Os anjinhos que estampavam o veículo pareciam nos fazer flutuar pela estrada, decolando do Itaim Bibi, bairro paulistano, e pousando em alguma cidade do interior. Lá uma multidão aguardava os integrantes daquela nave desembarcarem prontos para encantar uma plateia cheia de seres cabeludos, com coletes jeans e seios de fora que faziam rodas de bate cabeça e davam pulos ensandecidos. Os hotéis baratos, camarins esfumaçados e palcos muitas vezes precários, de onde assistia ao show, são imagens gravadas em minha memória, fundamentos do meu entendimento do mundo.
Me lembro de estar em um avião, quando meu pai me contou que os Titãs iriam fazer uma pausa para se dedicarem a projetos individuais e que iria gravar um disco solo. Acho que essa foi a primeira vez que vi nascer uma ideia de uma obra e acompanhar todo o processo até sua realização. Num tempo em que não existia celular, o telefone na sala de casa era o centro nevrálgico da comunicação com o mundo, especialmente com o Rio de Janeiro, onde ficavam as gravadoras. Do sofá, acompanhei inúmeras ligações do meu pai para o pessoal da Warner e em especial para uma figura que era onipresente em tudo que se referia a esse projeto, alguém com quem ele tinha que falar muitas vezes, o Paulo Junqueiro.
Vasculhando na minha memória, encontro outros nomes que estão totalmente ligados a esse disco: o percussionista Marcos Suzano, o artista plástico Alex Cerveny e o diretor Christiano Métri. É engraçado que eu pouco me lembre dos músicos que participaram das gravações, mas isso se deve provavelmente ao fato de que elas aconteceram no Rio e em Salvador, logo não pude acompanhar no estúdio. Somente hoje, lendo a ficha técnica consigo dimensionar como deve ter sido importante para o meu pai reunir Dadi, Luiz Brasil, Cezinha e Maurício Barros, além das participações de Herbert Vianna, Paula Toller, Carlinhos Brown, Roberto Mendes, Timbalada e uma série de músicos que deram contribuições pontuais. Por outro lado, da banda que fez o show de lançamento no TUCA eu tenho lembranças bem mais vívidas: Fernando Nunes, Lan Lanh, Massa, Mou Brasil e Mu Carvalho.
Em 1995, com 9 anos e na 3ª série do primário vi meu pai depois de um tempo separados, meu pai estava de volta, depois de um período separado de minha mãe. Agora éramos cinco: eu, Sophia, Nando, Vania e, na barriga dela, o Sebastião. Na escola, escrevia poemas para a menina de quem eu gostava, tentava jogar bola e desenhava histórias em quadrinhos. Me lembro que por conta do lançamento de “12 de Janeiro” acontecer em um teatro, convidei todos os amigos da minha sala e também a professora para assistirem ao show. Naquela noite, enquanto meu pai assumia o centro do palco, eu me deslocava 45 graus em sua circunferência e expandia o raio para assistir a apresentação da platéia. Foi ali que pude vê-lo pela primeira vez com um grupo que não fosse os Titãs e enquanto eu me encantava com sua coragem, também sentia medo de que as coisas dessem errado No final da última música, estimulado pela turma que estava comigo, subi no palco e tentei cantar no microfone o último verso mas, apavorado, minha voz não saiu.
O título do disco, que remete à data do aniversário do meu pai, é de fato muito apropriado para aquilo que representou um novo nascimento. Se até então era membro de uma banda cuja força motriz se assentava na criatividade coletiva e na identidade de um grupo, agora Nando dava o primeiro passo rumo a uma carreira solo. Apartado do amálgama que eram os Titãs, ele podia dar a luz a um som muito diferente do que aquele que eles vinham tocando. Dessa vez meu pai não apenas assumia a composição e interpretação de todas as músicas de um disco, como ainda trocava de instrumento, largando o baixo com o qual se tornou famoso para assumir o violão. A volta ao seu instrumento de origem, que havia sido sua porta de entrada na vida de músico, era algo como um retorno ao princípio e a revelação de um segredo. De fato, nos anos seguintes ele se consagraria como grande letrista por meio de músicas que se tornaram sucesso na voz de outros intérpretes. Mas existe essa outra faceta dele pela qual é pouco exaltado e que considero intrínseca ao seu trabalho: meu pai é um grande violonista.
“12 de Janeiro” tem uma peculiaridade, na maioria das músicas o violão tem cordas de nylon, o que faz deste o disco de Nando Reis mais próximo do que chamamos de MPB. Além deste timbre, são a acentuação rítmica e os arranjos de percussão que dão a ele cores de regionalidade. É preciso notar que, antes de se encantar por Neil Young e passar a tocar as cordas de aço que deram à sua música a textura pela qual ela é conhecida, meu pai sempre teve como pedra angular o violão de Gilberto Gil. Na minha numerologia particular decomponho o 12 do título como a junção do 1, simbolizando o primeiro disco, com o 2, reverenciando o “Expresso 2222”, aquele trem que liga o Itaim ao Candeal.
Comparado ao som do último trabalho que os Titãs haviam lançado, cheio de guitarras pesadas e vocais guturais, a abertura de “12 de Janeiro” soa como uma manhã de sol após uma noite de tempestade. De certa forma, repete-se o mito da titanomaquia, batalha onde seres demoníacos primordiais são derrotados pelas divindades olímpicas. Aqui, após a vitória dos deuses, o mundo se reorganiza e pode renascer no canto do galo que anuncia em arranjos de cordas o gênesis particular de meu pai. É claro, tal como no tempo mítico, as forças titânicas haveriam ainda de ressurgir trazendo o peso do rock’n’ roll, dessa vez encarnados como Nando Reis e Os Infernais, mas isso é assunto para outros capítulos.
Tanto para aqueles que conhecem apenas suas músicas mais famosas, quanto para os fãs mais versados nos meandros de sua obra, o primeiro disco de meu pai pode causar a sensação de estranhamento e familiaridade. Analogamente, ao contemplarmos a foto de alguém quando bebê, enxergamos quase um desconhecido, mas também temos a sensação de que tudo já estava ali. Tenho a impressão de que em “12 de Janeiro” as composições aparecem pela primeira vez com algumas de suas características mais marcantes como o tom confessional autobiográfico e a poética das situações e objetos cotidianos. Nas letras deste álbum já encontramos referências diretas à própria família, histórias de separações, reconciliações amorosas e um tanto de imagens – o pátio, a feira, a ilha, o bairro, o calçado – que voltariam a aparecer em suas músicas no futuro.
Em tempos de streaming e playlists é cada vez mais raro que alguém ouça um álbum do início ao fim. Essa é a primeira vez que “12 de Janeiro” sai em vinil e eu me pergunto se meu pai, lá em 1995, pensou a ordem das músicas em termos de lado A e lado B. Foi com ele que aprendi a apreciar os discos em sua integridade e escutá-los como uma obra na qual o conjunto das músicas é mais do que meramente a soma delas. O ritual de ouvir um álbum traz em sua liturgia o momento da suspensão do som, a pausa silenciosa entre duas músicas que se dá quando é preciso mudar a face do disco na vitrola. Durante muito tempo esse intervalo norteou as escolhas dos artistas na composição de suas obras. Imagino que meu pai, tendo crescido ouvindo e depois gravando lps, tenha pensado a disposição das faixas como um par de lados. Nunca perguntei isso a ele, mas para além de qualquer especulação, é certo que esse disco nunca pode ser ouvido assim antes.
Enfim, tenho pra mim que parte da maravilha das músicas se dá pelo seu poder de ser apropriado por cada pessoa que ao ouvi-la lhe dá um sentido particular. Muitas vezes, ao longo de uma vida uma mesma música adquire significados diferentes, seja por trazer o passado sob novos olhares ou dar novos ouvidos a antigas canções. Acredito que a memória seja menos uma coletânea de fragmentos exatos e mais a costura de retalhos em busca de um sentido. Vasculhar minhas lembranças da época em que esse disco foi lançado e ouvi-lo novamente diversas vezes enquanto escrevo esse texto, muito além de um mergulho no passado é uma investigação do presente. Existem camadas que só o tempo revela e perspectivas que só são possíveis com um olhar à distância. São 60 anos desde o 12 de Janeiro em que meu pai nasceu e muitos outros lançamentos desde o “12 de Janeiro” de sua carreira solo. Aproveitemos a ocasião para escutar esse disco, ouvir o que suas músicas tem a nos dizer e dar a elas o sentido próprio deste dia para cada um de nós.
Lindo texto