A Capa do Disco: “The Soft Bulletin”, do Flaming Lips, e a ‘viagem’ de um usuário de LSD dançando com a própria sombra

texto por Luciano Ferreira

“Lembro de pensar que havíamos finalmente conseguido fazer a música representada por essa capa, com essas longas passagens na metade de ‘Everything Has Changed’” (Wayne Coyne)

O vocalista da banda de Oklahoma, The Flaming Lips, refere-se à nona faixa de seu nono álbum, “The Soft Bulletin”, cuja a enigmática capa mostra uma figura de pé, que parece observar a própria sombra projetada numa parede.

O ano era 1999 e após quatro álbuns pela independente Restless Records entre 1986 e 1990, “os lábios flamejantes” haviam assinado com a Warner em 1992 e lançado “Hit to Death in the Future Head”, mas o relativo gosto do sucesso surgiria com o improvável barulho causado pelo hit single “She Don’t Use Jelly”, do disco seguinte, “Transmissions from the Satellite Heart”, que impulsionou o álbum a conseguir a marca de 300 mil cópias vendidas. Os Lips, no entando, voltariam a realidade com as baixas vendagens de “Clouds Taste Metallic” (1995).

A saída do guitarrista Ronald Jones, no final de 1996, ao mesmo tempo que deixou o trio remanescente atordoado, permitiu que tomassem uma decisão que levaria a sonoridade da banda para um caminho impensável até então: abandonar o formato de uma clássica banda de rock. Sem Jones nas guitarras, Wayne criou uma regra que se tornaria mais rígida em “The Soft Bulletin”: parir um disco sem guitarras, regra quebrada no mesmo álbum ante a beleza melódica criada pelo guitarrista/vocalista em “Feeling Yourself Disintegrate”.

Capa original de “The Soft Bulletin”, do Flaming Lips

Reduzidos a um trio, Wayne Coyne, Michael Ivins e Steven Drozd resolveram assumir todos os instrumentos e partiriam para experimentações; primeiro organizando os chamados parking lots, eventos em que fitas K7 pré-gravadas pela banda em estúdio eram reproduzidas simultaneamente em sistemas de som de vários carros em um estacionamento, enquanto a banda comandava essa orquestra inusitada.

“Zaireeka”, lançado em 1997, é uma espécie de resumo e/ou continuação desses experimentos, um álbum quádruplo cujos discos deveriam ser tocados simultaneamente para se ter uma experiência completa. Na época, um visionário Wayne acreditava ser esse um caminho que muitas bandas seguiriam. O projeto mostrou-se bastante custoso e visto com ressalvas pela gravadora, com o empresário Scott Booker tendo que intermediar a situação.

No documentário sobre “The Soft Bulletin”, produzido pelo site Pitchfork (assista ao final do texto), Booker afirma que as pessoas não entenderam o quão relacionados estão “Zaireeka” e “The Soft Bulletin”, e que os álbuns foram gravados simultaneamente.

Nesse novo momento de descobertas musicais pelo qual o grupo passava, que inclui problemas pessoais de todos os integrantes (capturados na letra de “The Spiderbyte Song”), a participação do produtor e amigo de longa data Dave Fridmann foi essencial para dar forma e impulsionar as ideias do trio, que resolveu montar um estúdio próprio para ficar o mais à vontade possível durante as sessões de gravação. Ao mesmo tempo, Drozd assume papel fundamental nas composições, apesar de enfrentar as consequências do vício pesado em drogas.

Capa da reedição repleta de extras de “The Soft Bulletin”, do Flaming Lips, em 2005

O fruto desse momento fecundo e de experimentações, ali entre 1997 e 1999, pode ser percebido não apenas nas faixas que entraram nos dois discos lançados no período, mas na quantidade e qualidade do material produzido e que ficou de fora, lançado como b-sides de singles, faixas bônus, e até num CD-R, lançado em 1999, o não menos essencial “The Soft Bulletin Companion”. O próprio “The Soft Bulletin” possui duas versões com tracklist diferentes. A questão que surge inevitavelmente é: Nnão fosse o exagero de excentricidade do álbum quádruplo em “Zaireeka”, “The Soft Bulletin” poderia ter sido lançado como um disco duplo?

“The Soft Bulletin” sela o processo de transição do The Flaming Lips de uma sonoridade embalada por guitarras, no que pode ser chamada de primeira fase, para o que viria a ser encontrado nos álbuns seguintes, marcados pelo uso também de elementos eletrônicos.

Em seu disco de 1999, o grupo dá boas-vindas ao mundo dos sintetizadores, dos processos de gravação intricados, das experimentações de estúdio, do uso de fitas cassete para criação de loops, e dos arranjos com nuances diversas e bruscas mudanças de andamento. No bojo, a verve psicodélica, que crescia a cada disco, toma conta, e The Soft Bulletin é o marco dessa mudança. Guitarras num nível quase zero e bastante elementos orquestrados, mas sem o uso efetivo de uma orquestra. Um álbum pretensioso à beira do fim do milênio, que levou o nome do The Flaming Lips a novos patamares.

A foto “The Acid Test: Neal Cassady” (1966), de Lawrence Schiller

Para embalar o disco foi escolhida a foto “The Acid Test: Neal Cassady” (1966), do fotojornalista, produtor de cinema, diretor e roteirista Lawrence Schiller, que Coyne havia visto na revista Life, numa reportagem sobre LSD. A legenda usada para a foto de Schiller trazia a frase: “Alguma lei pode manter a incrível droga longe de mãos imprudentes?”.

“Eu tinha visto [a foto] em uma edição da revista Life que peguei em um brechó talvez 10 anos antes, e sempre pensei que seria uma capa de álbum legal”, comentaria o vocalista anos mais tarde. “Eu acho que estávamos realmente fazendo música que soava como aquela foto, ou o que eu achava que a foto soava, de alguma forma”.

Neal Leon Cassady (1926-1968), o modelo da foto, foi poeta e figura importante da geração beat, com ligação bastante próxima com Jack Kerouac. Cassady serviu de inspiração para o personagem Dean Moriarty, do romance “On The Road” (1957), de Kerouac. Além de presença em livros, filmes e documentários, sua importância para a cultura pop pode ser percebida também na música. Ele foi homenageado no título de “Jack & Neal /California, Here I Come”, de Tom Waits, lançada no álbum “Foreign Affairs”, de 1977; também em ‘Neal and Jack and Me’, do King Crimson, só para citar dois exemplos.

A foto icônica, assim como todas da reportagem da revista, foi tirada por Schiller durante os chamados “Acid Tests”, eventos musicais alimentados por Kool-Aid (espécie de refresco em pó) misturados com drogas psicodélicas que o fotógrafo começou a documentar durante a década de 60. Durante um desses eventos, Schiller resolveu fazer uma sessão de fotos, conforme relembrou: “Cassady estava lá. A certa altura, fui até lá e ele começou a dançar com sua silhueta. Tinha uma certa poesia nisso”.

A foto foi publicada no livro “LSD” (1966), de Schiller, com a legenda: “Um usuário dança ao som da música do Grateful Dead com sua própria sombra até ter um colapso, no The Acid Test na Sunset Boulevard, em Hollywood, California, 1965”.

O ressurgimento da foto, mais de três décadas depois, após ilustrar a capa do disco do The Flaming Lips (ganhando uma tonalidade amarelada), para alguns dos fãs o melhor trabalho da banda, mostra o poder que uma imagem pode ter e como ela pode se manter viva ao longo do tempo, até ser redescoberta e interpretada de acordo com a subjetividade de cada um. No caso de Wayne Coyne: “Para mim, a foto representa uma pessoa indo para o desconhecido – o desconhecido dentro de si…”.

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 Luciano Ferreira é editor e redator na empresa Urge :: A Arte nos conforta e colabora com o Scream & Yell.

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