Ao vivo: O festival paraense Se Rasgum retorna ao formato arena com grandes shows de Letrux, Shame e Arthur Espíndola

texto por Ricardo Schott
fotos de Cabron Studios
vídeos de Renato Reis

Não teve como ser de outro jeito: de volta ao “mundo real” após o começo da pandemia, funcionando numa arena com três palcos (além de shows em mais dois lugares, nos dois primeiros dias), o festival belenense Se Rasgum retornou em total clima de democracia, de felicidade pelo fim de uma era péssima, em todos os sentidos, no Brasil. Houve poucos shows em que o “L” de Lula não foi feito pelos artistas no palco – e respondido com mais “L” da parte do público.

Shows como os de Letrux (sábado, no palco Devassa) e da banda britânica Shame (sexta, no palco Oi Labsônica) vieram com total sensação de alívio musical, comportamental e até político. A primeira levou o presidente eleito na camisa, na calça de malha e nos discursos – e no tom libertário e irônico de músicas como “Esse filme que passou foi bom” e “Que estrago”. O grupo inglês ofereceu ao público o que de melhor sabe fazer: um grande show de rock, voltado para a renovação do pós-punk, com clima de balbúrdia (saudável) no palco e interação com a plateia.

09 de novembro – 1º dia

Criado com a ideia de mostrar “o Pará como ele é”, com música e gastronomia típicas, o Espaço Cultural Apoenas foi a primeira parada do Se Rasgum em 2022, com três apresentações gratuitas e público bastante participativo. Nascido na região dos Balcãs, na Macedônia, o francês Stracho Temelkovski fez o primeiro show do festival, impressionando pela habilidade em vários instrumentos de cordas, e por dividir seu tempo igualmente com percussão e beat box. O som é jazz-funk com solos rápidos, mudanças de andamento e ares musicais herdados dos sons de vários países.

Os amazonenses Dan Stump e Luli Braga, atrações que vieram (cantando em dupla) na sequência, têm trabalhos individuais e um show em dupla com banda. Na abertura do Se Rasgum, optaram por uma apresentação acústica e simplificada, com uma violonista, ressaltando o lado pop-MPB das canções, sempre equilibrado com as influências locais. Um show com ligações íntimas com o Carnaval e o romantismo da música local.

(Conversando comigo depois do evento, Dan fez questão de falar da dificuldade que os nomes da região têm de “furar a bolha” e serem notados fora – uma luta diária mesmo para os artistas mais destacados de estados como Amazonas e Pará)

A noite foi de Layse & Os Sinceros, projeto brega-elétrico da cantora e multi-instrumentista Layse, de músicas como “Hit de Sucesso”. Na banda, ela canta e toca bateria, e o repertório é feito para dançar, com clássicos como “Foi Assim” (do repertorio de Fafá de Belém) e “Besame” (do repertório de Leila Pinheiro), além do repertório autoral dela, com músicas como “Caso Raro” e o irresistível novo single, “Love Lomas” (encerrado com o solinho de “Careless Whisper”, de George Michael, só que feito na guitarra). Para ver e ouvir no volume máximo.


10 de novembro – 2º dia

O píer defronte à Casa das Onze Janelas (uma construção do século 18 que virou centro cultural) foi o cenário para o segundo dia da 17ª edição do Se Rasgum. Foi, por sinal, um dia bastante ligado à cultura dos povos indígenas, aos saberes da floresta e ao tom ritualístico e mágico de performances como a dos artistas selecionados pelo projeto Labsonora, logo na abertura. A apresentação uniu artistas (como Tami, cantora, e Bruna BG, rapper) que participaram de uma residência no começo de outubro no meio da Floresta Amazônica, num show de luzes, sombra, música e dança.

E por falar em magia, na sequência veio o show das Suraras do Tapajós, primeiro grupo de carimbó do Oeste do Pará composto apenas por mulheres indígenas. O som é dado pelas vozes, por percussões e por um banjo artesanal. As letras são cânticos de amor e resistência (“não senhor, ouça nossa voz/ não queremos barreiras no Tapajós”). O repertório tem canções próprias, clássicos paraenses e até músicas em nheengatu. O público ganhou banhos de ervas no fim da apresentação.

Jeff Moraes, cantor, ator e ex-apresentador do Se Rasgum, veio na sequência unindo reggae e samba paraense, e pregando “o amor, o afro-afeto”, lembrando estatísticas de mortes de pretos e da população LGBTQIA+, com repertório tão político quanto romântico. Recebeu como convidado Arthur da Silva, responsável por uniões do brega com o soul e o funk (seu EP se chama “Tese Brega-Soul”). O amapense MC Super Shock, quarto show da noite, surgiu acompanhado de vários convidados, num show que une rap, jazz, funk, dub, percussão forte, ativismo político, poesia, teatro e história. História essa, por sinal, contada em altos brados, sempre apontando para o apagamento e para a invisibilidade do povo preto. De impressionar.

No fim da segunda noite, o Radiola Serra Alta veio tendo a rapper e coquista Jéssica Caitano à frente. A dupla de Triunfo (PE) faz uma espécie de música eletrônica brincante. Os integrantes operam como uma espécie de Daft Punk local, preservando suas identidades através do uso de máscaras de figuras do Carnaval do Alto Sertão do Pajeú. Jéssica impressiona pela união de rap, coco e repente, e pela rapidez com que emite os versos.


11 de novembro – terceiro dia

O Espaço Náutico Marine Club recebeu as duas mais importantes datas do festival Se Rasgum, que se dividiram em três palcos. Os dois principais, Devassa e Oi Labsônica, uniram nomes conhecidos a atrações indies, mas o primeiro recebeu nomes indubitavelmente mainstream, como Duda Beat e Pato Fu. DJs, artistas novos e mais nomes independentes passaram pelo palco Amazônia Viva, que teve entre os destaques o cantor pernambucano Barro, o som afro-mineiro de Bia Nogueira, a mistura musical e estética de Raidol e as tradições marajoaras e carnavalescas de Mestre Damasceno.

Pelo palco principal, passaram Duda Beat (em show ultrapop, eficiente e cheio de dançarinos), a banda de heavy metal feminina Crypta e o encontro dos performáticos Aqno e Layse (sem os Sinceros e em momento solo). Mas a noite foi do sambista paraense Arthur Espíndola, que deveria ser mais conhecido no país inteiro. Cria de um rancho local e apadrinhado por nomes como Péricles, ele consegue fazer um show que diverte e faz dançar sendo didático. É uma equação bastante complexa em termos de palco (ainda mais em festivais), mas funciona.

Operando na união samba + pagode de mesa, Arthur apresenta material próprio, homenageia ídolos (como Chico da Silva, com o clássico “Vermelho”, cantando pelo público aos brados) e conta a história do samba do Pará, “repatriando” clássicos como “Andança”, imortalizada por Beth Carvalho. “Ela é do paraense Edmundo Souto, isso também é samba paraense”, avisa. Sobrou espaço até para uma versão pagode, em português, de “Total Eclipse of The Heart”, de Bonnie Tyler.

Da metade para o final, Arthur recebe a convidada Sandra de Sá. “Bye Bye Tristeza” rola em versão samba, com Sandra usando apenas gestos para dividir a plateia em lado esquerdo e lado direito, na hora do refrão.

No palco Oi Labsônica, Juçara Marçal veio com um show de MPB eletrônica e perturbadora, focando nas músicas do disco solo mais recente, “Delta Estácio Blues”, e homenageando Gal Costa com a releitura de “Antonico”, de Ismael Silva, que havia sido relido por ela no clássico disco “Gal a Todo Vapor”. Entre efeitos vocais e intervenções de Kiko Dinucci – que se dividiu entre programações e guitarra no show – uma apresentação cujo discurso político está totalmente expresso na música, atitude de palco e caminhos estéticos. Mas antes de Juçara, houve mais explosão no Se Rasgum, com a inacreditável e imperdível Roberta de Razão. Ela faz “rock psicolésbico”, conta histórias tragicômicas sobre amores perdidos, como em “Rebuceteio” (a do “eu fiquei com a ex da ex da minha ex”) e “Luana”, sobre uma motorista de caminhão que é abandonada pela namorada. O som une hardcore, música eletrônica, brega e imaginário de cabaré.

Já a banda britânica Shame, no mesmo palco, quebrou os limites e superou expectativas. Pedindo desculpas pelo português ruim e anunciando que tem uma namorada brasileira (“vou aprender o idioma por causa do meu amor”, contou), o vocalista Charlie Steen derrubou o pedestal do microfone, pulou no fosso à frente do palco e… pulou na plateia, cantando várias músicas abraçado com o público, pulando com os fãs ou simplesmente sendo carregado até o palco. Charlie arrisca-se subindo nos equipamentos, nas grades e o som punk da banda (em músicas como “One Rizla”, “Alphabet” e “Fingers of Steel”) acompanha o clima.

12 de novembro – quarto dia

No palco Devassa, destaque máximo para a verdadeira catarse que foi o show de Letrux, em um espaço grande, com público bastante receptivo e clima favorável: Leticia Novaes levou o fim da era Bolsonaro e as mudanças de estação na política para o palco, com “Lula” escrito na calça.

“Um pouco de droga, um pouco de salada”, brincou a cantora, que passou pelos repertórios de seus discos “Letrux em noite de climão” (2017) e “Letrux aos prantos” (2020). Este último, um disco bem mais introspectivo, mas que gerou a faixa de abertura do show, “Esse Filme Que Passou Foi Bom”. No repertório, crônicas noturnas e dançantes como “Flerte Revival”, “Que Estrago”, “Ninguém Perguntou por Você”. Banda afiada, com destaque para Marta V (programações) e Natália Carrera (guitarra).

A noite de sábado atrasou um pouco por causa de uma chuva torrencial, mas de duração curta. Os shows abriram no palco principal com a banda local Joana Marte, boa união de sons do Norte-Nordeste, psicodelia e indie rock, com canções bem legais. A rapper Anna Suav participou da apresentação. Rapper com flow inovador e tecnológico, Edgar – que fez show logo após Letrux – levantou a plateia à base de samples e percussão, com o repertório de discos como o mais recente “Ultrassom”, de 2021. E comandou um espetáculo de autoafirmação e empoderamento pessoal e artístico, em músicas como “Print”, “Go Pro” (“novas guerras vão gerando novos games”) e “O Último Peixe do Mundo” (“Proíbem o baile porque conseguimos fazer nosso próprio dinheiro”).

O palco Labsônica rendeu uma surpresa ruidosa para fãs de pós-punk: o show da banda francesa Psychotic Monks, que já se afirmou uma banda “pós-George Orwell” e une psicodelia, experimentalismos na onda das turmas da no wave e do post rock, e sons que poderiam estar no “Metal Box”, do Public Image Ltd. Passantes desavisados se impressionaram (ou se assustaram, dá no mesmo) com as explosões musicais inesperadas do grupo. A banda indie Tagua Tagua veio na sequência no mesmo palco e apresentou um repertório mais tranquilo e mais próprio para um show ao cair da tarde.

No sábado, tocaram ainda no palco principal do festival Pato Fu com show para adultos e o cantor jamaicano de reggae Johnny Clarke, acompanhado pela banda brasileira Leões de Israel. Mas o Se Rasgum já tinha dado todos os recados possíveis com um grande número de artistas da região merecendo o conselho: preste atenção na música do norte do Brasil. E preste atenção no Se Rasgum, vale muito a pena.

– Ricardo Schott é jornalista, radialista, editor e principal colaborador do grande site POP FANTASMA.

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