texto por Gabriel Pinheiro
“Mil placebos”, primeiro romance de Matheus Borges, lançado pela editora Uboro Lopes em 2022, começa com a descrição de pesadelos. São “complexos espetáculos de horror”, nos diz seu protagonista. Se, num primeiro momento, o romance me pareceu interessado em investigar o universo delirante dos sonhos, na verdade, o livro se mostrou capaz de muito mais. O pesadelo aqui ocorre, sobretudo, na vigília – vigília esta experienciada tanto no mundo “real”, quanto no mundo online, entre simulacros e avatares – numa observação certeira da contemporaneidade. “Decidi seguir rumo a um futuro inatingível. Hoje moro sozinho num apartamento pequeno de um dormitório. Sou meu próprio patrão e meu próprio empregado, mais empregado que patrão”.
Narrado por “Eyeball kid”, um nickname num fórum na web, “Mil placebos” mergulha num misto de investigação policial e ficção especulativa, com um toque de análise teórica do mundo contemporâneo. São frágeis os vínculos sociais do protagonista: o relacionamento distante com os pais e a sensação de desencaixe no ambiente acadêmico. É na rede que ele desenvolve uma conexão com outro nickname, “Jersey girl”. temos aqui um personagem que se comunica, sobretudo, com pessoas há milhares de km de distância. A suposta proximidade possibilitada pela internet e a sintomática distância imposta nas relações interpessoais. “Decidi que o melhor para mim seria adorar a discrição e o isolamento social como religião”.
Até que um dia ele recebe a notícia do suicídio da garota por trás do perfil. Esse acontecimento, em paralelo ao desaparecimento do moderador de um fórum online que frequenta, o empurram numa frenética investigação que parte do ambiente digital para o mundo, supostamente, real. Ele cai, assim, numa longa, intensa e violenta espiral de acontecimentos incomuns, instigado por uma série de perguntas aparentemente sem respostas. “É verdade o que dizem. Prendemos-nos a qualquer esperança, a qualquer chance de sobreviver, nos instantes que precedem a morte”.
Matheus Borges discute aqui uma miríade de temas prementes do hoje, como o isolamento social, a incomunicabilidade, a depressão, a indústria farmacêutica e a onipresença dos medicamentos antidepressivos, a deep web e os crimes virtuais. Questões que se apresentam como reflexos inerentes ao capitalismo tardio e à revolução tecnológica do ambiente digital. De escrita elegante e instigante, “Mil placebos” traz uma aura de Philip K. Dick encontra a literatura noir, com uma construção narrativa que alcança um ritmo crescente de tensão. Seu último capítulo é especialmente impactante, numa conclusão que me deixou em suspenso.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.