Ao vivo: Maurício Pereira emociona com histórias, ideias e canções (de Marília Mendonça, inclusive) com Tonho Penhasco

 texto, fotos e vídeos por Bruno Capelas

Dois homens, dois microfones, nem tão longe dos lares. Um deles se chama Mauricio e usa o microfone para cantar, tocar clarinete e falar muito. O outro fala pouco e leva no colo uma guitarra meio esquisita (uns até diriam “artesanal”, palavra da moda). Além dos dois, no palco, apenas duas cadeiras e um amplificador de guitarras. Esse é “Micro”, o show que virou disco e agora volta a ser show, quando esses dois homens caem na estrada em lugares improváveis para mostrar suas canções por aí. Na noite do último sábado, 8 de outubro, os dois homens – o compositor Mauricio Pereira e o guitarrista Tonho Penhasco – exibiram à plateia do Instituto Çarê, na Vila Leopoldina, zona oeste da capital paulista, uma amostra de como momentos tão pequenos e gentis podem abrigar enorme beleza.

“Micro”, como explica o cantor no início da apresentação (e também em entrevista recente ao Scream & Yell), nasceu como “show de combate”. Um formato criado para apresentar as canções do veterano paulistano com eficiência, apto a rodar pelo País dentro do menor custo possível, pero sin perder la ternura jamás. Executado por pelo menos meia década por Mauricio e seu parceiro em locais heterodoxos como coworkings e hamburguerias veganas, o espetáculo começou a ganhar uma energia própria, até se transformar em registro fonográfico, lançado no início do segundo semestre de 2022 com produção esperta de Gustavo Ruiz.

No palco do Çarê, o show começou pelo mesmo lugar que o disco: “Fugitivos”, uma das muitas canções que Pereira escreveu ao longo das últimas três décadas e parecem prontas para este outubro de 2022 – ou pelo menos, para um desejo do que possa vir a ser o desfecho deste mês, com “senhor capitão saindo escondido”. A partir daí, porém, o cantor seguiu uma rota diferente do álbum, mas não deixou de lado o viés político, com muito bom humor. “Eu vou cantar uma coisa romântica aqui para disfarçar que a gente não está pensando no segundo turno. Mas não tô me posicionando não, senão a gente perde like. Para a Bruna Marquezine é fácil, mas pra gente não, né Tonho?”, brincou. Na sequência, deu a partida a uma de suas mais bonitas baladas, “Pra Marte”, na qual o clarinete que lhe é íntimo se transformou num delicado foguete, que nem Elon Musk pode alcançar.

Mais do que só cantor, Mauricio é um contador de histórias e ideias. É um talento raro hoje em dia: nem todo mundo sabe explicar sua visão de mundo com a singeleza e elegância que o paulistano tem. E por isso, não foram poucas as vezes ao longo do espetáculo em que ele aproveitou os minutos entre uma música e outra para fazer um discurso bem humorado, falando quase sempre dela… a eleição, claro. Antes de “Não Me Incommodity”, inspirada na crueldade causada pelo excesso de informação, ele lembrou ter feito o primeiro show online da internet brasileira, o que lhe valeu um lugar no Guinness Book de 1998. “Mas depois eu perdi toda minha fortuna”, brincou, fazendo uma piada com o raciocínio neoliberal – que de novo mesmo tem só o prefixo.

Em outros momentos, Mauricio mostrou seu carinho com a canção popular brasileira, seu maior objeto de trabalho, ao abraçar a obra de dois campeões de audiência em uma leitura elegante. Primeiro, sacou do bolso uma leitura sutil de “Todo Mundo Vai Sofrer”, uma das maiores criações de Marília Mendonça – elogiada por Pereira por “ter a capacidade de ser maluca e ser amada por 40 milhões de pessoas”. Depois, o paulistano uniu Roberto Carlos (“Namoradinha de Um Amigo Meu”) e Orlando Silva (“Aos Pés da Cruz”, de Marino Pinto e José Gonçalves) em um blues de alta octanagem, envenenado pela guitarra de Tonho Penhasco. Ao ser bastante aplaudido, o próprio artista se justificou: “agora vocês entenderam por que eu tô tentando fazer canção popular há 40 anos?”. E engatou a sequência com a sua “Florida”, não sem antes falar de novo do tema do momento: “Todo cancionista tem que fazer canção de amor. As vezes você quer falar de outras coisas, da eleição, por exemplo… mas canção de amor é um formato, não dá para escapar.”

Fosse só um show de Mauricio, “Micro” já seria um grande espetáculo. Mas Tonho Penhasco, de maneira discreta, é responsável por apertar os parafusos para fazer esse modesto foguete alcançar a estratrosfera. Quase calado, Tonho tem em seu laconismo capiau um contraponto à tagarelice do colega paulistano, usando apenas poucas e boas palavras para dar aos discursos do parceiro um tom cômico. Se fala pouco com a voz, o guitarrista transmite muito com seu instrumento, criando atmosferas delicadas e/ou ásperas, ao gosto do freguês, para as letras de Mauricio. Mais do que só acompanhar na harmonia, Tonho compõe arranjos sofisticados, de tons meio azuis, meio vermelhos, meio bluesy, para a voz de Pereira, usando uma guitarra feita pelas suas próprias mãos, com madeira reaproveitada. Simplesmente um luxo.

Assim como é um luxo a iluminação do palco. Com um simples fundo branco, a trupe do artista transforma uma mera cobertura em um cenário cheio de texturas, como um pôr do sol cheio de nuvens. É algo que dá todo um charme para as canções climáticas ali apresentadas – e, felizmente, leva para bem longe aquele aspecto de rodinha de violão fuleira. Aliás, é bom ressaltar: tudo que este show não é é ser “um barzinho, um violão”, muito pelo contrário. E se é preciso um exemplo claro para não deixar dúvidas sobre isso, a dupla trouxe dois.

O primeiro foi “Pan y Leche”, uma música dos tempos de Fernando Collor de Mello, aquele que acusava seu rival nas eleições de estar pronto para confiscar o dinheiro da nação e… sim, cometeu um confisco. Depois, foi a vez daquela que é provavelmente a canção de uma geração, um hino da juventude paulistana anos 10, mesmo tendo sido composta no começo da década anterior. Sim, “Trovoa”, que cresce a cada vez que é executada, com clipes, grampos e tônicos e toda a pureza dos corações de uma plateia de 40 pessoas feitos em pedaços. Para quem não ficou convencido, tudo bem: no bis ainda havia a graciosa “Um Dia Útil”, espécie de canção-crônica sobre essa tal dura missão de ser artista, longe da mamata sequer começar.

Antes do fim, em mais um de seus deliciosos e duros discursos entre ditadura e Dionísio, Mauricio Pereira invocou mais uma vez o tema do momento – e deu um recado que só quem já pastou muito na cena independente pode dar: “Resistir não é só votar na oposição, é você não ser grosso”, disse, com toda a elegância que a experiência lhe deu ao longo de quatro décadas de ribalta, palcos com e sem coxia, coworkings e hamburguerias veganas. Para nossa sorte, ele resiste, brilhante em dias úteis, sábados, domingos e feriados.

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.

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