texto por Marcelo Costa
fotos por Fernando Yokota
Saiba como foi o Dia 1 e o Dia 2
Chegou o domingo, terceiro e último dia do Coala Festival 2022. O sol novamente se fez presente tornando os shows da tarde ainda mais especiais. Mas ai de quem esqueceu a blusa porque se estava complicado assistir aos shows da noite encapotado devido ao vento frio glacial, imagina para quem estava só de modelito verão Bala Desejo? Bem, nada mudou de estrutura no final de semana e o cenário se repetiu: a comida foi deixada de lado já que a fila só diminuía em horário de show e, para piorar, o público secou o truck de cerveja Lagunitas no começo da tarde – veja pelo lado bom: não era mais necessário atravessar a passarela atrás de cerveja boa. Os DJs sets também voltaram a funcionar bem e a experiência musical foi de alta qualidade.
Um senão, porém: o Coala se notabilizou em colocar artistas médios/ grandes na abertura de todas as edições anteriores fazendo que um bom público chegasse logo no primeiro horário e, além de consumir mais, prestigiasse artistas menos conhecidos. Infelizmente, nessa edição isso foi esquecido, e quase todos os artistas que abriram se apresentaram para um público menor do que eles merecem. Só para constar, Marina Sena, que foi a terceira atração do dia às 16h teve um público excelente, número que não se refletiu nas atrações de abertura, que fizeram shows muito bons para um público menor. Que em edições futuras seja retomada essa sacada inteligente que sacudiu as outras edições do Coala.
O público pequeno foi inverso a entrega e a felicidade de Chico Chico e Juliana Linhares em cena. Juntos, eles fizeram um show excelente que merecia ter sido visto por mais gente, assim como seus discos merecem atenção. Chico Chico lançou o bom “Pomares” em 2021, mesmo ano que o brilhante “Nordeste Ficção”, da natalense Juliana, pousou nas plataformas – a poderosa “Bombinha”, segunda música da apresentação, já é uma das canções brasileiras definitivas dos anos 20. Trajados de camiseta de times de futebol (ela de ABC, do RN, ele de Vasco, do Rio), os dois cantaram Gonzaguinha (“Eu Não Ligo”), Chico César (“Béradêro”) e Rita Lee (“Saúde”), citaram Raul (“Mosca na Sopa”) e Gonzagão (“Asa Branca”) além de números próprios, com destaque para “Balanceiro” e “Virará”, ambas de Juliana, ainda melhores ao vivo. Ouça os dois!
Nego Bala veio na sequência trazendo consigo o álbum “Da Boca do Lixo” (2021) e toda uma história de drama e redenção. Ainda que o impacto do curta documentário da faixa “Sonhos”, com Elza Soares, que ganhou prêmios internacionais, seja intenso, o show, com base de funk raiz, soa datado. Em disco a coisa toda parece mais fluída, e canções como “Paradoxo” e “Cifrão in Pé” (com citação do “Rap da Felicidade”) fazem mais sentido. A convocação de MC João para o palco ampliou a sensação de tempo passado: seu hit mundial “Baile de Favela”, de 2016, teve sobrevida com o “show” de Rebeca Andrade em 2021, mas só fez sentido no Coala para o rapper convidado acusar a campanha do excrementíssimo presidente de usá-la de maneira indevida e sem autorização. Nego Bala é bom, mas a sensação é de que o rap brasileiro caminhou 50 anos nos últimos 20, e que algumas coisas ficaram paradas no tempo… como esse show.
Como um passe de mágica (do sucesso), de repente o Memorial da América Latina, com menos de meia casa nos dois primeiros shows do dia, ficou lotado para ver a estrela Marina Sena, que evolui a cada show que faz – sua performance foi ainda melhor que a de março no Sesc Pompeia, ainda que a banda mantenha a característica de power trio indie, o que deixa lacunas sonoras que ficam mais visíveis / audíveis no espaço aberto de um grande festival. Nada que incomode o fã clube, que estava presente cantando tudo e participando ativamente do show. Vestida de amarelo e com botas brancas (alguém deve tê-la alertado sobre o frio de sexta, e o calor deste domingo a pegou desprevenida), Marina desfilou elegantemente no palco do Coala mostrando as canções de seu primeiro disco e alguns singles. O público festejou “Por Supuesto”, seguida da favorita de Marina, “Temporal”, e de outro hit, “Ombrim”, que foi ainda mais bem recebida pelos presentes num show good vibe que superfuncionaria abrindo o evento às 13h.
Ainda com luz do sol no ambiente, metade do Los Hermanos, a banda mais importante deste século na música brasileira, subiu ao palco do Coala Festival: Rodrigo Amarante, o dono do set solo, e o amigo baterista Rodrigo Barba seguiram o script descrito aqui no Scream & Yell, quando do side show da quarta-feira anterior: “Maré”, “Tango”, “Tanto” e “Nada em Vão” chegaram com leveza, simpatia e arranjos levemente modificados que se aproximavam mais do indie pop (praieiro) de boa cepa que da MPB pouco penetrável tradicional do trabalho solo do cantor. Exatamente quando ia começar a parte mais chatinha do show, os instrumentos se rebelaram e praticamente tudo parou de funcionar: primeiro o teclado, que vitimou “I Can’t Wait”, limada do set. Decidido a tocar “Eu e Você”, dessa vez foi o contrabaixo que decidiu por fim ao som. Após alguns minutos perdidos, com Amarante declarando que “bossa nova é muito punk”, “I Can’t Wait” foi recuperada, mas se já estava complicado focar na apresentação, o imbróglio serviu para distrair quem já sabia que “O Vento” não seria tocada desta vez – mas foi possível ouvir a ótima “Tuyo” de longe e perceber a chegada da noite, e, com ela, do frio…
Porém, poderia estar nevando que nada iria conseguir congelar a voz dos presentes cantando as canções do Gustavo, filho de Dona Gizelda e Seu Rui. Black Alien chegou chegando com seu flow sotaque elétrico em alta voltagem mandando “Área 51”, um dos hinos de “Abaixo de Zero: Hello Hell”, de 2019, disco do ano para os votantes do Scream & Yell como também para o júri da APCA. Na sequência, um dos singles pós álbum, “Chuck Berry” e mais faixas festejadas do premiado disco: “Vai Baby” e a poderosa “Carta Pra Amy” – o set ainda traria “Take Ten”, “Au Revoir”, “Aniversário de Sobriedade” e “Jamais Serão”. Do disco de estreia, “Babylon by Gus, Volume I: O ano do macaco”, de 2004, seriam resgatadas “Caminhos do Destino”, “Babylon By Gus”, “Como Eu Te Quero” e “Na Segunda Vinda” (além dos singles extra álbuns “Sangue de Free” e “Pique Peaky Blinders”) com voz e beats muito casados, perfeitos. O hino “Que Nem o Meu Cachorro” fechou uma apresentação digníssima!
Para colocar ponto final na 8ª edição do Coala Festival, Maria Bethânia reuniu o maior público de todas as edições do evento para assistir a um único artista: toda extensão do Memorial estava tomado para ver e ouvir a Abelha Rainha, e ela simplesmente atropelou todos os presentes com um repertório especialíssimo, que por vezes encontrava o do show do Espaço das Américas, em abril, mas também trazia muitas novidades. Absolutamente à vontade, Bethânia e sua banda engataram a quinta marcha e enfileiraram uma canção colada na outra sem momentos para pausas muito longas, o que fez com que o set batesse nas 30 canções: “Um Índio”, “Emoções”, “Estado de Poesia”, “Galos, Noites e Quintas”, “Fera Ferida”, “Sonho Meu”… cada canção cantada de maneira letrada, com Bethânia saboreando as sílabas antes de arremessa-las para a plateia. E quando aumentava o tom de sua voz, o grito ecoava em todo o espaço do Memorial arrepiando a espinha e derramando lágrimas de muitos presentes.
Sua banda, que conta, entre outros, com o exímio baterista Marcelo Costa (que também conduziu as baquetas no show de Gil, na sexta) e a percussionista convidada Lan Lan, desencontrou-se por algum motivo na introdução de “Mulheres do Brasil”, fato percebido por Bethânia, que os alertou, rindo, “tá tudo errado”, mas seguiu impávida em frente. A segunda metade da apresentação enfileirou uma série de canções marcantes para testar o coração de fãs cardíacos: “Calice”, “Sampa”, “Noite dos Mascarados”, “Olhos no Olhos”, “Tocando em Frente”, “Negue” e “Volta Por Cima” é daqueles blocos de canções que poderiam ser emoldurados, mas nem essa reverencia diminuiu o ritmo de Bethânia, que parte para o final com um bloco tradicional de sambas de roda (“Santo amaro ê ê / Quixabeira / Reconvexo / Minha Senhora / Viola , meu bem”) e “Tá Escrito”, que levanta a “torcida” de Lula e encerra o show com um susto: todo palco apagou de sopetão assim que Bethania saiu de cena, mas as luzes foram sendo retomadas abrindo espaço para o bis carnavalesco e o encerramento clássico: “O Que É O Que É?”, de Gonzaguinha. Um fecho de ouro para um show maravilhoso.
Em três dias de muita música, o Coala Festival apontou o caminho que deve seguir em suas novas investidas, combinando medalhões com novas surpresas da música brasileira. A entrada em cena da caboverdiana Mayra Andrade, primeiro nome internacional escalado para o evento, pode ser um aceno para a possibilidade de ampliar o leque para artistas de língua portuguesa – latinos também seriam muito benvindos, pois uma das maneiras de “fortalecer a música brasileira” (um dos lemas do Coala) seria dando a ela a oportunidade de se relacionar com outros sons, outras batidas, outras pulsações de países vizinhos reaproximando uma região que foi muito maltratada nos últimos governos.
A nova disposição do Coala no Memorial da América Latina favoreceu quem queria ver shows, mas prejudicou quem queria se alimentar. O aumento de ações de marketing chegou a virar anedotas, desde o Coala soar como um “mini Rock in Rio” quanto espaço dominado pelo Partido Novo dividindo bonés laranja com a torcida do piloto de Fórmula 1 Max Verstappen – quando as ações de marketing redesenham a mensagem que a estrutura do ambiente deseja passar é hora de pensar se é por ai o caminho. E a retirada de um artista de peso da abertura do dia (estratégia excelente para popular o ambiente utilizada em todas as edições anteriores, e abandonada na edição 2022) esvaziou os primeiros shows, e esses artistas mereciam muito um público maior. Quem sabe em 2023, quem sabe.
Talvez a maior marca que o Coala Festival estampe no coração do público seja o abandono dos shows hedonistas, de pular e dançar e beber sem parar, em troca por um ano de apresentações mais “adultas”, em que o pé raramente desgrude do chão, mas a cabeça e o corpo suingam cantando canções em uma dança leve. Ainda assim, a sensação é de que falta um pouco de provocação na construção do line-up, algo que tire o público da zona de conforto fazendo-o se perguntar o que determinado artista está fazendo ali – característica que havia nas primeiras edições, de apostas mais ousadas. Do jeito que está, celebratório, está bonito, mas é sempre possível melhorar quando se tens em mãos algo que seja vendido como entretenimento, mas tem potencial para se transformar em arte. Parabéns pelo retorno, Coala. Que venha 2023.
Saiba como foi o Dia 1 e o Dia 2
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/