texto por Gabriel Pinheiro
Em seu último livro, “O regresso de Júlia Mann à Paraty” (2021), a portuguesa Teolinda Gersão mira seu olhar para figuras emblemáticas do pensamento e da literatura do século XX, enquanto reflete sobre a Europa e o mundo nos momentos de escalada e de ampliação do domínio nazista nos anos 1930. A autora propõe um interessante diálogo, perpassado por espelhamentos, entre o psicanalista Sigmund Freud e o escritor Thomas Mann. Uma terceira personagem, ainda mais surpreendente, ganha voz em seu terço final: a teuto-brasileira Júlia da Silva Bruhns. O livro ganhou edição aqui pela editora Oficina Raquel.
No primeiro texto do conjunto, “Freud pensando em Thomas Mann em dezembro de 1938”, adentramos a mente do pai da psicanálise. Aqui Sigmund Freud escreve uma espécie de carta, um diálogo imaginário com seu contemporâneo Thomas Mann. Freud se encontra exilado em Londres, após a capitulação da Áustria para a Alemanha nazista. Ele nunca retornará ao país e a cidade de sua infância. Morrerá estrangeiro na capital britânica no ano seguinte.
Entre as muitas questões, traumas e arrependimentos que atormentam a psique de Freud, está o fato de ter sido um homem mais de pensamento que de ação, sobretudo em um contexto em que a influência nazista na Europa e a perseguição aos judeus – como ele próprio – caminhava a passos largos. “(…) pensar, investigar e escrever parece-me em absoluto insuficiente, e não enjeito meu quinhão de culpa nos desastres que sucederam – e para os quais, por omissão, contribuí”. Nisto ele aponta espelhamentos entre a sua falta de ação e a de Thomas Mann, na medida em que ambos não tomaram posições mais efetivas contra Hitler e seu pensamento.
Freud interpreta, à luz da psicanálise, a vida e a obra de Thomas Mann, discutindo e buscando diferentes interpretações para os livros publicados pelo alemão. “Desculpe a minha visão psicanalítica, mas, como sabe, sou psicanalista, e não posso deixar de o ser”. O pensador analisa a infância de Mann, sua turbulenta relação com o irmão – o também escritor Heinrich Mann –, o casamento e uma homossexualidade reprimida.
O texto seguinte é “Thomas Mann pensando em Freud em dezembro de 1930”. Agora é o escritor alemão que desenvolve um diálogo de uma só voz com o austríaco. “Como seria bom falar consigo, como um amigo a outro, sem esconder nada, deixar vir as palavras em torrentes, sem filtro, sem medo de me tornar transparente para si”. É interessante como Teolinda constrói esta segunda parte como uma espécie de espelho da primeira – mas um espelho disforme, inexato. Não se trata de uma resposta ao pensamento do primeiro, afinal, Mann pensa em Freud oito anos antes, em 1930.
Mann aqui também questiona e critica o trabalho de Freud, apontando, por exemplo, que ele constrói teorias e faz uso dos pacientes para confirmá-las. “Do alto de sua inteligência fria, de sua descrença na humanidade, do seu cepticismo, o senhor não é melhor nem mais sábio que o paciente”. Por outro lado, ele confirma análises que Freud fez de sua vida íntima e de sua obra no texto anterior, na medida em que suas questões familiares, da infância ao casamento, o recalcamento de sua homossexualidade estão imbricados em seus livros. “É verdade que sou eu o livro que desde sempre escrevo.”
Na terceira parte embarcaremos nas memórias e na vida de uma personagem surpreendente e ainda pouco conhecida, no texto que dá nome ao volume. O olhar de Teolinda Gersão agora se direciona para Júlia da Silva Bruhns ou, como será conhecida futuramente, após seu casamento, Júlia Mann – mãe de Thomas Mann. Em seu leito de morte, ela mergulha no turbulento oceano de sua memória. Numa escrita engenhosa e tomada de profundo lirismo, Teolinda faz com que Júlia seja arrastada pelas águas doces do rio Trave, na Alemanha, até que estas se tornem salgadas, de um mar aberto. Ela percebe que está nadando em direção ao sul, ao mar de sua infância: ao Brasil e à cidade de Paraty.
Júlia viveu no Brasil até os sete anos. Após a morte da mãe, partiu do Rio de Janeiro para Lübeck, na Alemanha. Lá foi forçada a abandonar sua história pregressa, seu idioma de origem. A jovem tinha ascendência alemã – paterna – e brasileira – materna. Sua mãe, por sua vez, era de origem portuguesa e indígena. Júlia se torna uma mestiça, um sangue impuro, em território alemão.
Júlia Mann rememora toda a sua trajetória: o abandono do Brasil, a construção de uma nova vida em solo germânico, a armadilha do casamento, os filhos e suas frustrações. Teolinda Gersão mostra aqui o papel destinado à mulher naquele período histórico, onde Júlia se vê forçada a se encaixar em um mundo que não era o seu, e as suas tentativas e atos de resistência. Se trata de uma personagem de construção interessantíssima, de um pensamento à frente de seu tempo. O filho, claro, é outro ponto importante da narrativa de Júlia Mann. Temos, então, um terceiro olhar para a vida e a obra de Thomas Mann. “Por alguma razão tivera dois filhos escritores. Tinham herdado dela essa capacidade infinita de memória, e o poder de a recuperar, nos mínimos detalhes.”
Teolinda Gersão mostra nas três narrativas de “O regresso de Júlia Mann à Paraty” um profundo conhecimento e sensibilidade acerca da vida e da obra daqueles personagens os quais escolhe fabular e dar voz. Por meio deles, temos um olhar único e surpreendente sobre um século que segue influenciando o mundo de hoje, especialmente agora, onde as ameaças totalitárias de outrora parecem mais presentes do que nunca.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.