Ao vivo: Em noite emocionante, Otto e Veronez promovem encontro mágico de mentes artísticas plurais e inventivas

texto e fotos por Alexandre Biciati

Belo Horizonte recebeu no palco da Autêntica o cantor Otto que trouxe não só as músicas de seu novo trabalho “Canicule Salvage” (2022), mas também seu livro intitulado “Meu Livro Vermelho”, lançado em evento exclusivo e que estava à venda na casa. A abertura da noite ficou a cargo do cantor, ator e dançarino Veronez que fez, pela primeira vez, o show “Como Se Não Tivesse Acontecido Nada” para uma plateia de pé. O cantor também colocou na lojinha a elaborada versão física do disco “Narciso Deu um Grito” (2017). Não é a primeira vez que os músicos dividem palco e é perceptível como essa ponte Minas-Pernambuco rende não só uma boa amizade, mas uma sinergia musical profícua, como vimos ao final do show de Otto. Mas comecemos pelo início.

Dono de uma performance fora da curva e um domínio vocal invejável, Veronez trouxe ao palco um show intenso e com dinâmica cênica onde cantou músicas do seu disco autoral, mas, principalmente, interpretou escolhas curiosas de grandes artistas da MPB. À medida que o espetáculo evoluía, música após música, percebia-se a variação da tônica narrativa e a alternância dos atos, marcados tanto pelo teor lírico quanto pela interessante mutação do versátil figurino. A apresentação foi temperada com intervenções poéticas e leituras que evocavam a dura realidade dos tempos atuais, assim como inspiravam esperança e coragem.

Acompanhado por Pedro Fonseca (contrabaixo), Yuri Vellasco (bateria), Davi Fonseca (piano), Letícia Leal (viola) e Sarah Assis (sanfona), o multiartista abriu caminho no palco com “Hora de Partir”, parceria com Milena Torres que começou a frequentar seus shows em 2019, entrou na programação da rádio Inconfidência, mas permanece inédita. Na sequência, mais duas músicas de Milena que têm a participação de Josi Lopes no disco: “Narciso”, cujo primeiro verso batiza o álbum lançado em 2017, e “Oxumaré”, com Veronez fazendo questão de creditar com veemência a autoria das três primeiras músicas.

Após um primeiro bloco azeitado em poesia, o repertório seguiu com músicas pouco óbvias, a ponto de soarem originais, contemplando nomes memoráveis como Marku Ribas, Almir Sater, Zezé Motta e a dupla João Bosco e Aldir Blanc –que faleceu há dois anos. A primeira contemplada foi de Gilberto Gil, “Extra II – O Rock do Segurança”, gravada pelo recém-octogenário em 1984. Logo após, Veronez recorreu aos manuscritos para leitura de texto da dramaturga Idylla Silmarovi, ganhando imediatamente a atenção do público. O texto de Idylla, interpretado de forma visceral, traduz o desânimo e o incômodo de ser brasileiro consciente e de se estar à margem neste Brasil infernal.

Passando por Marku Ribas com “Paranóia Cromada” (1983) e Paulinho da Viola com “Roendo as Unhas” (1973), foi a vez de uma moda de viola interpretada à perfeição: “Trem do Pantanal” (1982), de Almir Sater. Letícia Leal na viola e Sarah Assis na sanfona, protagonizaram momentos de deleite durante solo dos respectivos instrumentos. Na sequência, outra mulher que roubou a cena foi a elegantíssima Carô Rennó (Caffeine Trio) que, vestida a caráter, abriu as portas do cabaré com sua voz lírica que arrancou suspiros. Antes de caminhar para o encerramento, Veronez ainda cantou, de Brisa Marques, “Quero ser Rita Lee” que também está em seu disco, uma homenagem bem humorada e verdadeira à rainha do rock nacional. O show terminou com “A Terceira Força” (1978), composição de Erasmo e Roberto Carlos.

Até o último instante Veronez tirou surpresas da cartola e a última delas foi um áudio recebido por Elza Soares que reproduziu ao microfone. Na mensagem, a eterna musa deseja sorte ao artista: “Merda!”. E por mais que tenha sido coroado com uma benção dessa magnitude, fica nítido que o sucesso do artista se deve não à sorte, mas ao resultado de uma proposta artística coerente e muito trabalho. O show “Como Se Não Tivesse Acontecido Nada” – apenas um dos muitos produtos de Veronez – é contestador, provocativo, envolvente, de muito bom gosto e merece ser assistido pelo grande público – seja em pé ou sentado.

O intervalo foi marcado pela participação da rapper indígena de etnia Guarani-Kaiowá, MC Anarandá, que cantou seu protesto contra o ataque às terras e povos indígenas e a questão urgente da preservação ambiental. Ao final, puxou o coro: “antes do Brasil da coroa, existe o Brasil do cocar!” ao qual foi respondida em uníssono. Uma introdução mais que oportuna para o show de apresentação do novo disco de Otto que tem como temática a preocupação com as mudanças climáticas. Um lançamento que coincide com notícias e imagens terríveis vindas da Europa que sofre com a onda de calor extremo: “canicule” em francês.

O show de Otto foi marcado por uma gostosa manifestação de carinho em Minas Gerais e Belo Horizonte. Ele mal havia começado a apresentação quando mencionou que Minas é o lugar onde o Nordeste se sente em casa e ganhou a simpatia da plateia que esperava ansiosa para cantar junta os clássicos do artista. Acompanhado de Junior Boca e Guri Assis Brasil (guitarras), Meno del Picchia (baixo), Samuel Fraga (bateria) e da namorada Lavínia Alves no backing vocal, cortejada por Otto durante todo o show, o cantor pernambucano apresentou músicas de discos necessários da música brasileira como “Samba pra Burro” (1998), “Condom Black” (2001), e “Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos” (2009).

“Canicule Sauvage”, música que dá nome ao novo álbum, abriu o show e na sequência trouxe “Anna”, terceira do disco. O hit “Lavanda” (“Sem Gravidade”, 2003) foi recebido com animação e, a partir daí, viria mais uma leva de sucessos que não deixou ninguém parado. De “Samba pra Burro” (1998) tocaram na ordem “Bob” e “TV a Cabo” com Otto mais uma vez voltando-se para a plateia e elogiando a produção musical mineira e citando o Clube da Esquina: “vocês tocam na alma desse país há muito tempo”. Lembrou ainda do amigo Samuel Rosa e chegou a cantar versos de “Dois Rios” do Skank a capella: “ainda preciso gravar essa música”, ponderou.

Voltando para o disco novo, foi a vez de “Peraí seu Moço”, a mais ouvida nas plataformas digitais. Não ficaram de fora do show as obrigatórias “Dias de Janeiro” (2001), “Janaína” (2009) e “Carinhosa” do álbum anterior “Ottomatopeia” de 2017. Otto que, desde o início do show, usava um adesivo em apoio ao candidato Lula no peito, foi provocado e não hesitou em endossar o tradicional “Olê-olá”. Quando o adesivo que usava se perdeu na inquietude performática, mais que depressa ofereceram-lhe outro da plateia.

De “Canicule Sauvage” ainda fizeram “Você Pra Mim é Tudo” e “Menino Vadio”. Tocaram ainda “Decidez” (2022), mas não sem antes revisitar o álbum “Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos” com as esperadas “Crua” cantada com emoção pelos presentes e “Saudade”. Otto não se esqueceu da ameaça de destruição da Serra do Curral, patrimônio natural que vem sendo alvo da exploração selvagem de mineradoras com apoio do governo do estado e fez um apelo: “Por favor, não desistam! Não desistam da Serra do Curral”. Foi ovacionado e provocou imediata reação, dessa vez com gritos que pediam a saída do atual governador de Minas Gerais, Romeu Zema.

Dividido entre interagir com a plateia e galantear Lavínia, Otto acabou descendo brevemente para a pista causando frenesi em prenúncio à parte final do show. Após a intensa e dramática “6 Minutos” (2009), reverteram as emoções com “Ciranda de Maluco” (1998) que contou com a presença de Veronez no palco. Continuaram com “Cuba” (2003) que virou um mashup de clássicos de Chico Science e Nação Zumbi, levando a pista ao delírio. Para o bis, “Pelo Engarrafamento” (2003) e “Exu Parade” (2012) do álbum “The Moon 1111”.

Veronez e Otto são artistas que não se limitam à música e experimentam outras linguagens. Otto, que tem se dedicado à pintura de telas como extensão da sua expressão, acaba de lançar livro; Veronez circula atuando no espetáculo “Auto da Compadecida” (Ariano Suassuna) e ministra oficina de formação artística. Fizeram juntos uma noite inesquecível, cada qual com seu trabalho, estabelecendo uma conversa crítica em formato de música que emociona e acolhe. Um encontro de mentes artísticas plurais e inventivas que entra para a lista de escolhas acertadas da curadoria da Autêntica.

– Alexandre Biciati é fotógrafo: www.alexandrebiciati.com

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