de Ismael Machado
Todos os finais de tarde a cena se repetia. Ele, um jovem aprendiz, ia para a sacada do prédio e tateava num sopro um tanto desafinado. O trompete lhe parecia rebelde ao não querer reproduzir com perfeição a melodia de “Round Midnight”, de seu Deus Miles Davis.
Ele arranhava apenas a superfície da música. Não acertava a embocadura correta, a respiração exata. Sobravam reclamações dos moradores vizinhos. Até o síndico do prédio recebeu um bilhete anônimo por baixo da porta reclamando daquele ‘som horrível’ que todos os dias eles, moradores de bem, eram obrigados a suportar.
O aprendiz ignorava as queixas. Passava parte do dia e da noite estudando a música. Os dedos passeavam no ar, em um trompete imaginário. Ia para as atividades externas com Miles Davis e John Coltrane revezando-se no fone de ouvido. O jazz elevava seus pensamentos.
Um dia leu num portal algo sobre um vírus mortal. Não se preocupou tanto assim. Mas pouco a pouco as atividades foram sendo encerradas. As aulas, o estágio, os esportes, os encontros sociais. Ele ainda assistiu a um concerto que homenageava o cool jazz. Emocionou-se profundamente quando ouviu a execução de “My Favourite Things”, de Coltrane.
As semanas se passaram. E um fim de tarde onde o céu explodia de tonalidades e luzes, o aprendiz musical foi mais uma vez até a sacada. E pela primeira vez executou “Round Midnight” exatamente como ouvia e imaginava. Pela primeira vez, repito, a música de Miles Davis se tornou tão íntima dele quanto sempre sonhara.
Naquele fim de tarde ouviu aplausos em vez de reclamações. Pessoas foram até a sacada. Sua primeira plateia.
Ao fim, olhou a rua deserta. O som parecia ainda ecoar. Durante dias e dias repetiu a performance. Os vizinhos já o esperavam naqueles fins de tarde reclusos.
Até o dia em que o silêncio fez companhia à rua sem transeuntes. E quando todos, de suas sacadas vizinhas buscaram com o olhar o palco improvisado do jovem músico, testemunharam o corpo dele sendo levado por pessoas com roupas de ‘astronauta’.
E cada um se sentiu infeliz para sempre.
– Ismael Machado é escritor, roteirista e diretor audiovisual. Publicou cinco livros e é ganhador de 12 prêmios jornalísticos. Roteirista dos longas documentários “Soldados do Araguaia” e “Na Fronteira do Fim do Mundo” e da série documental “Ubuntu, a partilha quilombola“.