entrevista por Bruno Capelas
Criado em 2001, em Barcelona, o Primavera Sound se tornou, ao longo dos últimos anos, uma referência global em termos de festivais de música. Sua marca, jovem, antenada e criativamente ousada, chega à terceira década de vida com uma expansão intensa para as Américas – e não são poucos os que estão ansiosos para ver as edições inaugurais do evento em cidades como Los Angeles, São Paulo, Buenos Aires e Santiago. Mas engana-se quem pensa que esta é a primeira propagação do festival catalão: há dez anos, Portugal tem um Primavera para chamar de seu. E para quem já tem ingresso na mão para ir ao Anhembi em novembro, olhar para a cidade do Porto pode ser uma boa pista para entender o que se pode esperar.
Em 2022, o NOS Primavera Sound – nome oficial do “Primavera Porto”, patrocinado por uma operadora de celulares local – chega à sua nona edição, após dois anos de pandemia. “Parece que é a primeira vez que fazemos um festival, temos medo de esquecer coisas, mas estamos com muita expectativa, muito ansiosos”, diz José Barreiro, diretor do festival português. E olha que ele tem experiência de sobra no assunto: além do Primavera, é uma das cabeças por trás do Paredes de Coura, tradicional festival português que, este ano, receberá Pixies, Beach House, Turnstile, Idles e Parquet Courts em agosto.
Já o Primavera Porto, por sua vez, acontece entre 9 e 11 de junho, no Parque da Cidade – um lugar que, ao mesmo tempo, dá pra chegar de metrô, mas está cheio de lagos, patos e gansos. Ao contrário do irmão catalão, que cresceu em tamanho de público ao longo dos anos, o NOS Primavera Sound se manteve nestes dez anos como um festival médio, para entre 30 mil e 35 mil pessoas. “Queremos fazer um festival mais soft, mais urbano, sem atrofia de público, sem filas enormes. Temos a noção de que se o produto que vendemos crescer, ele estraga”, diz Barreiro.
E o lineup? Bem, o cartaz – como diriam os lusos – é uma versão gourmet (as palavras são do próprio Barreiro) do que rola em Barcelona, um recorte que agrada mais ao público português. Em 2022, isso resultou em um escrete bastante roqueiro, com Pavement, Beck, Nick Cave, Tame Impala, Interpol e Gorillaz como headliners. Mas, entre as letrinhas menores, há uma baguncinha bem gostosa, entre destaques do indie véio (Dinosaur Jr., Kim Gordon, Slowdive), novidades interessantes (Black Midi, Japanese Breakfast, Dry Cleaning), novas leituras do pop alternativo (Rina Sawayama, Sky Ferreira, Caroline Polachek, Little Simz) e até dois insuspeitos nomes brasileiros: Arnaldo Antunes e Pabllo Vittar.
“Arnaldo Antunes é, para mim, atualmente o melhor escritor de canções em língua portuguesa; já a Pabllo Vittar é, no tipo de música que faz, uma referência a nível mundial”, diz Barreiro, que lista Nick Cave, Black Coffee, Kim Gordon e Tame Impala entre os shows que não deseja perder no festival – e no qual o Scream & Yell estará presente mais uma vez – já estivemos em 2013 e 2019. Na entrevista a seguir, o diretor dá mais detalhes sobre a edição 2022 do Primavera Porto, fala sobre o momento da música do outro lado do Atlântico e aconselha uma certa postura aos fãs brasileiros. “Sempre que (uma edição local) for comparada à de Barcelona, haverá um sentimento meio… meh. É melhor não fazer isso, mas sim pensar que é um festival muito especial, muito bom, com um leque de artistas fabuloso, adotando aquele evento como seu festival”, diz.
Além disso, ele também dá sua opinião sobre quem vai a um festival sem ligar muito para a música. “Não quero chegar ao exagero de um Coachella, que parece que só existe para que as pessoas mostrem seu outfit”, afirma. “Mas ao mesmo tempo, sei que esse nicho existe e fico satisfeito que seja cool ir a um festival – e garanto que essas pessoas vão sair daqui mais bem informadas, com uma experiência melhor, do que entraram.”
O Primavera Porto chega este ano a uma década de existência, em sua nona edição – e uma pausa de dois anos por conta da pandemia. Qual é a sensação de chegar a 2022 com o festival?
Nós tivemos uma trajetória de oito edições consecutivas e o festival foi amadurecendo, tornando-se cada vez mais conhecido, com maior presença de público – em especial, do público português, que conhecia bem o festival. Desde o primeiro momento, tivemos muitos estrangeiros. Acho que nunca deixamos de crescer e sempre tivemos recordes de presença nas oito edições consecutivas. Chegou 2020 e todo mundo parou durante dois anos, especialmente a indústria musical. Agora, estamos a começar do zero, com muita expectativa, muito ansiosos. Parece que é a primeira vez que fazemos um festival, temos medo de esquecer coisas, tem sido como alguém se lembrar de algum detalhe que ainda não tratamos. Quanto ao público, acho que há muita expectativa. Já esgotamos os passaportes para os três dias, e temos dois dias que estão praticamente esgotados também. Noto uma grande ansiedade do público para voltar ao normal, sem máscara e sem distanciamento, como era antes de 2020.
A história do Primavera Barcelona é a de um festival que cresceu muito ao longo do tempo. Não é o caso do Primavera Porto, que desde o começo é um festival médio, para 30 mil, no máximo 35 mil pessoas. Por quê?
É uma estratégia que, no fundo, respeita muito o nível de exigência que nós próprios temos num festival. Temos que fazer um festival sem atrofia de público, sem filas enormes. Queremos um festival mais soft, mais urbano, mais fácil. Quando começamos, eu estava beirando os 50 anos, hoje já passei muito deles, e tenho prazer de ir ao festival sem precisar esperar uma hora por qualquer coisa. É também um respeito ao Parque da Cidade, que é a nossa sede. A Câmara Municipal do Porto fez uma intervenção no Parque da Cidade e no ano que vem talvez possamos crescer para 40 mil pessoas, mas mantendo esse nível. É um festival mais light, mais friendly, como diriam os ingleses. Todos os anos, mantemos um controle de custos, não tendo a expectativa de que o festival precisa ser maior que no ano anterior. Temos a noção de que se o produto que vendemos crescer, ele estraga. Esta é a ambição: fazer o melhor, mas sem ser pelo lado do crescimento desenfreado.
Pude ir ao festival em 2013 e ele me pareceu uma grande Torre de Babel, com uma presença massiva de estrangeiros. Como isso se moldou ao longo dos anos?
Nos dois primeiros anos, era um festival de estrangeiros que tinha também portugueses, quase 70% do público era estrangeiro. Foi um período também que a cidade do Porto começou a ser conhecida internacionalmente, começaram a se abrir mais voos, e a cidade despertou turisticamente, ficou mais atrativa e moderna. Ao longo do tempo, o número de estrangeiros foi sempre semelhante, de 10 mil a 12 mil pessoas. Enquanto isso, assistimos a um crescimento percentual do público português, a ponto de serem maioria. Curiosamente, este ano, em 2022, com a vontade das pessoas de andarem pelo mundo, os estrangeiros voltaram a ser maioria. Estamos chegando a uma lotação de 35 mil pessoas por dia, e cerca de 20 mil serão de fora. Mas creio que 2022 deva ser uma exceção. De qualquer forma, creio que essa presença massiva é por conta da marca Primavera Sound, que se tornou uma marca global. A força da internet ajuda e, agora, com o crescimento para América Latina e Estados Unidos, há maior divulgação. Essa marca ajuda muito que as pessoas viajem por conta da música.
O Primavera Sound Barcelona tem um line up bastante eclético, misturando diversas tendências da música atual. Já o Primavera Porto tem um recorte mais roqueiro, com artistas mais consolidados. Como é construir a fórmula do cartaz, ainda mais considerando as datas tão próximas com o festival catalão?
O nosso booking é o mesmo de Barcelona, e a nossa função aqui no Porto é dizer aquilo que provavelmente o público português quer ver mais. Como programadores de festivais, o Primavera Barcelona tem um leque muito variado de opções, com rock, pop, reggaeton, música brasileira, urban, é tanta coisa no mesmo festival. Nós temos que fazer uma seleção com o nosso orçamento e lotação do recinto, numa espécie de escolha gourmet da expectativa do público português. Fizemos algumas experiências também no hip hop, no reggaeton, também correm bem, porque o festival já está consolidado, mas este ano voltamos a ter um cartaz mais roqueiro nomeadamente nos headliners. Cada ano é um ano, mas sempre temos a perspectiva de agradar ao público português, dentro do que Barcelona nos oferece.
O quanto as coisas mudam para o Primavera Porto com as edições do Primavera Sound nos EUA e na América Latina?
Com essa expansão, imagino que o Primavera Sound se torna um dos maiores promotores mundiais de shows, talvez só atrás da LiveNation (nota do editor: que abraçou o festival no Brasil). Com isso, os ganhos reputacionais e midiáticos são muito grandes para todos, e é o que ganhamos mais. Do ponto de vista da escolha dos artistas, não há muitas mudanças. São festivais feitos em épocas do ano totalmente distintas, junho e novembro, então não são as mesmas turnês e os mesmos artistas. Poderá haver coincidências, mas são… coincidências.
Qual é a interação que vocês têm com São Paulo e que mensagem o senhor dá para quem está ansioso com a primeira edição do Primavera São Paulo?
A relação que temos hoje é muito pequenina, mas torcemos muito pelo festival de São Paulo. O movimento indie brasileiro é cada vez maior, tem crescido muito nos últimos anos, e notamos isso nas interações que temos nas nossas redes sociais. O que eu diria para quem está no Brasil é que sempre que o Primavera Sound for comparado ao de Barcelona, haverá um sentimento meio… meh. É melhor não fazer isso: melhor pensar que é um festival muito especial, muito bom, que reúne um leque de artistas fabuloso, buscando adotar o evento como o seu festival. Espero que o Primavera São Paulo seja o festival do indie brasileiro, mas não só, sendo também daquela turma aberta às novas sonoridades, às novas experiências. Aconselho também não ficar restrito só aos nomes grandes do cartaz, mas também olhar os nomes pequeninos. Foi assim que eu conheci o Primavera Sound Barcelona, quando ainda nem sequer pensava que ia fazê-lo no Porto: ia lá todos os anos ver os artistas pequeninos, que tocavam à tarde. Eu estudava antes de ir ao festival. Este é o primeiro ano do Primavera São Paulo, e ele vai crescer e se desenvolver, estamos aqui torcendo muito para que seja um sucesso. Espero estar em São Paulo em novembro, e também em Santiago do Chile.
Como está o momento da música portuguesa hoje?
A música portuguesa hoje vive um momento bastante forte. É um período muito dinâmico, em que as bandas tocam e têm público, as pessoas estão pagando ingressos para ir aos concertos das bandas portuguesas. Se calhar, desde os anos 1990 até hoje, não vivemos um período tão intenso, interessante, do ponto de vista musical em Portugal. Mas é claro que, como em todo lugar, existe o mainstream, o étnico, e aquilo que é o mais fresco, o mais diferente. Nesses três campos da música em Portugal, acho que estamos num momento muito positivo. Hoje, exportamos fado e canção nacional para todo o mundo, temos bandas portuguesas tocando nos festivais da Europa, a nossa música eletrônica é cada vez mais consistente. E no caso do Primavera Porto, temos uma seleção dentro de cada gênero, aquilo que está mais fresco – dentro do nosso gosto, que é subjetivo, claro, mas toda escalação é subjetiva. Tentamos fazer essa mistura a nível nacional, como o Primavera Barcelona faz a nível global. Temos o Pedro Máfama, que tem um estilo bastante indefinido, mas muito fresco, temos o Throes + The Shine, uma banda de muito rock’n’roll, de guitarra, mais forte. Temos a Rita Vian, que podia ser uma fadista, mas decidiu fazer canção pop, ao gênero Cat Power, mas com uma voz portuguesa… e é este gênero de coisas que buscamos no festival. Cada vez mais é difícil escolher os seis ou sete nomes portugueses do cartaz, sentimos que deixamos cada vez mais gente de fora. Mas pronto, há que se fazer uma seleção.
Falando ainda sobre a curadoria, me chamou atenção a escolha dos dois artistas brasileiros que vão participar do festival este ano: Arnaldo Antunes e Pabllo Vittar. Como vocês olham para a música brasileira, o que vocês buscam nela hoje?
A música brasileira é, para mim e a minha geração, algo que sempre foi muito próximo, desde a geração de Chico Buarque e do tropicalismo, até aqui. Se temos um festival gourmet, que busca que as pessoas não deixem de ir aos festivais, mesmo tendo 45, 50 anos, tínhamos que ter esses clássicos de gerações, de quem nasceu nos anos 1970, nos anos 1980, nos anos 1990. Já tivemos Elza Soares, Caetano Veloso, Jorge Ben… e este ano trouxemos o Arnaldo Antunes, que para mim é atualmente o melhor escritor de canções em língua portuguesa. Ele me toca no lado emocional, quando ouves uma poesia e os pelos do braço ficam levantados. Sinto que ele nunca tinha sido verdadeiramente bem divulgado em Portugal e creio que o Primavera Porto é o palco ideal para ele se divulgar. Se calhar, muita gente o conhece mais pelo trabalho nos Tribalistas, do que propriamente a sua carreira musical solo. Quanto à Pabllo Vittar, somos marcadamente um festival que integra, que não exclui ninguém, muito dado às questões do gênero, ao feminismo… e a Pabllo Vittar é, no tipo de música que faz, uma referência a nível mundial. Tínhamos que ter alguém como a Pabllo, que vai abrir caminho para o que outros vão fazer no futuro.
Em 2013, quando falamos pela primeira vez, o senhor fez uma crítica a festivais como o Rock in Rio, que propõem ao seu público uma atmosfera mais… Disneylândia, por assim dizer. Dez anos depois, vimos no Brasil um boom de festivais, e muitos deles marcados pela experiência de “estar lá”, não necessariamente do “ver”, do “ouvir”. Imagino que em Portugal, o fenômeno tenha sido semelhante. Na sua opinião, isso faz parte de uma nova forma de ir a festivais, ou ainda é algo um pouco esquisito?
A indústria do entretenimento tem evoluído muito nos últimos anos. Apesar de tudo, prefiro que as pessoas marquem presença, nem que não vejam a maioria dos concertos. Quando começamos, o Porto era uma cidade muito fechada, muito cinzenta, muito “católica”. Ter a oportunidade de estar num lugar onde se vê gente de todo o mundo, de todas as cores e estilos, todos os cortes de cabelo, homens vestidos de mulher e vice-versa… isso é algo que abre a consciência das pessoas. Prefiro essa tendência do que, não sei, as pessoas se encontrarem quando o Papa vem à Portugal, sabe? Esta moda dos festivais faz bem às pessoas, apesar de que a grande maioria delas ainda vai pelo artista A, artista B. Mas há sim, aquele nicho que poderia estar tanto no festival, quanto na Fórmula 1, é um núcleo que são sempre os mesmos, de 10%, 15% – mas garanto que a experiência deles vai ser melhor se forem a um festival. Sendo eu promotor de música, fico satisfeito que seja cool estar num festival. Não quero chegar ao exagero de um Coachella, desses festivais marcadamente, que parece que só existem para que as pessoas se mostrem no Instagram, que mostrem seu outfit. Não quero chegar a esse ponto, não é bom para um festival, quase como se o cartaz não importasse. Mas garanto que esses 10% vão sair daqui mais bem informados do que entraram. Gosto que as pessoas tenham essa experiência, de perceber que o mundo não é só a aldeia deles.
Pra fechar, quais são os cinco shows que não se pode perder no Primavera Porto este ano?
Tem que ser a nível pessoal, senão estou ferrado! Vamos lá: Nick Cave. Já o vi muitas vezes, mas vem com um concerto completamente diferente do habitual, é quase um best of de tudo que fez. Não será um concerto intimista, ele vai voltar a tocar rock. Tame Impala, que lançaram um disco e nem sequer conseguiram colocá-lo em turnê, por na estrada. Acho que devem vir com uma vontade enorme de fechar um ciclo em grande forma, é um álbum quase já velho – se não tivesse havido pandemia, já estaríamos falando de seu novo disco, mas no entanto mal o tocaram no palco. Estou interessadíssimo também no Black Coffee, que acabou de ganhar o Grammy, são sul-africanos com uma música eletrônica da melhor. Há Kim Gordon, do Sonic Youth, que pessoalmente é uma banda que me fez gostar de música, me fez gostar de rock, quero saber muito o que é que ela vai fazer em palco. Depois, Pavement, porque tal como o Sonic Youth é uma banda importantíssima na minha formação musical. Já falei cinco, mas mais duas: Gorillaz, porque Damon Albarn é uma caixinha de surpresas, pela produção já vi que vai ser uma coisa grande. E claro, quero estar às oito da tarde, antes do pôr do sol, estar na relva sentadinho ver o Arnaldo Antunes, e se calhar chorar um bocadinho.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e é autor de “Raios e Trovões – A história do fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum”, editado pela Summus Editorial. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.