Três livros: “Uma rosa só”, “Gótico nordestino” e “O avesso da pele”

textos por Gabriel Pinheiro

“Uma rosa só”, de Muriel Barbery (Companhia das Letras)
Rose se considera orfã desde a morte da mãe, ocorrida há alguns anos. Seu pai, enquanto presença em sua vida, nunca existiu. Pouco sabe sobre ele: apenas que é vivo e mora em seu país de origem, o Japão. Haru Ueno nunca buscou uma forma de contato com a filha. Até que um dia, Rose recebe a notícia de sua morte e viaja até Kyoto para a leitura de seu testamento. “Uma rosa só” (“Une rose seule”, 2020), romance de Muriel Barbery que ganhou tradução nacional – de Rosa Freire d’Aguiar – em 2022, tem início no despertar da personagem em um quarto na casa do pai, um cômodo nu adornado com apenas um delicado vaso contendo uma peônia vermelha. Rose é botânica, e as flores atrairão seu olhar em seu breve percurso por Kyoto, nos dias que precedem o encontro com o tabelião. Seja a peônia, as flores da cerejeira e da ameixeira ou os lírios. Nestes dias na cidade japonesa, ela visita alguns templos e restaurantes em companhia de Paul, um belga radicado no Japão que trabalhou com seu pai por anos. O itinerário não é uma escolha de Paul, mas do próprio pai, que deixara planejado antes de sua morte. É uma forma de conhecer alguns dos lugares especiais para o pai enquanto vivo, conhecê-lo através destes espaços e da companhia de seu antigo funcionário. Pouco a pouco, este revela o véu opaco sob o qual, até então, se encontrava a figura paterna. Além disso, os momentos de reflexão e contemplação, se tornam parte de um processo de apaziguamento e tentativa de cura de seus próprios demônios e feridas internas. De uma escrita sensível e profundamente poética, a prosa de Muriel Barbery encanta linha após linha. Quem já teve contato com outros trabalhos da autora, sobretudo “A elegância do ouriço” (2006), sabe bem o que esperar neste sentido. Abrindo cada capítulo, Barbery ainda nos brinda com pequenos contos, narrados em tempos e dinastias antigas e concluídos por breves provérbios e aforismos. Povoados por personagens reais da história japonesa, como o pintor Shitao e o poeta Kobayashi Issa, cada conto ressoa no capítulo que o segue, nas experiências da própria Rose. “O mundo é como uma cerejeira que não olhamos durante três dias”. “Uma rosa só” é uma ode ao Japão, sua história, sua cultura, sua arte. Remete a um diário de viagem quando nos vemos mergulhados em Kyoto através de Rose e suas experiências ali. Sentimos, como lembranças vívidas registradas em um caderno e, principalmente, na memória, seus aromas, suas cores, suas texturas e seus sabores. No fim, este diário registra não apenas uma viagem a um país alhures, mas a jornada interna de sua protagonista. Um caminho dolorosamente trilhado dentro de si: a transformação, a metamorfose da dor em um novo sentimento.

“Gótico nordestino”, de Cristhiano Aguiar (Editora Alfaguara)
Fantasmas, doenças misteriosas, milícias, sonhos premonitórios, onças, cangaceiros e vampiros circulam pelas páginas do novo livro de Cristhiano Aguiar, o volume de contos “Gótico nordestino” (2022). Situadas na região que dá título ao livro, as narrativas de Aguiar caminham de um passado distante até um futuro muito próximo para dizer de medos e horrores que invadem a aparente normalidade da vida ordinária de seus personagens. Há contos no livro que são exemplares do quanto, camuflada em situações supostamente não realistas – e mesmo sobrenaturais – a literatura de gênero, como o horror e a ficção científica, é capaz de discutir o mundo real, o momento social e político em que é produzida. Por exemplo em “As onças”, narrativa onde avançamos para um período indeterminado, uma comunidade é progressivamente afugentada e isolada por estes grandes felinos. Se os animais são uma ameaça à espreita, não são os únicos. Numa espécie de estado de sítio, milícias cobram aluguéis por proteção, assaltam casas e estupram mulheres. Estes milicianos eram ameaças antes mesmo das onças: promoviam periodicamente a limpeza racial. Há um outro conto com ares lovecraftianos, um dos meus favoritos do volume. Pai e filha partem em viagem para uma cidadezinha paraibana buscando respostas acerca de uma suposta maldição que circunda a família há gerações. Ali, no passado, um navio atolou. Dele saiu apenas um único tripulante vivo e um estranho livro… A pandemia da covid-19 é retratada de maneira inventiva, num interessante diálogo com “As intermitências da morte”, de José Saramago, em “Lázaros”. É uma daquelas narrativas que te ganham logo na primeira frase: “– Sim, pode vir pegar: o corpo da sua avó acordou. – Disse, pelo telefone do IML”. A partir daí, acompanhamos o reencontro e o estranho convívio de uma família com sua avó, agora em sua pós-vida. É ela que está ali, mas não exatamente como era. Há muito mais para se descobrir nas narrativas de “Gótico Nordestino”. Num mundo real – um Brasil, especialmente – onde parece ser cada vez mais difícil acreditar que não estamos sonhando um pesadelo, são justamente as narrativas de gênero – o horror, a fantasia e outras – algumas das formas possíveis de dar conta desta realidade cada vez mais assombrosa. Onde o medo segue sendo inoculado dentro de uma suposta normalidade cotidiana.

“O avesso da pele”, de Jeferson Tenório (Companhia das Letras)
Pedro está sozinho no apartamento do pai, Henrique, morto recentemente em uma trágica abordagem policial. Se falta a presença paterna, o ambiente é tomado pelos objetos deixados por ele, que ganham novas cores e novos sentidos, a partir de sua ausência repentina. Uma ferida recém-aberta. Permeia o espaço também a memória, essa que pode tanto ter sido vivida quanto inventada. Ela é a matéria para que o filho reconstitua, reelabore e reinvente a existência prematuramente interrompida do pai. “E apesar de tudo, nesta casa, neste apartamento, você será sempre um corpo que não vai parar de morrer.” Em “O avesso da pele” (2020), vencedor do Jabuti na categoria Romance Literário, Jeferson Tenório propõe a genealogia de uma família negra em um país, em um estado, em uma cidade racista. Em sua narração em primeira pessoa, o filho diz de si e retorna ao passado de seu pai e de sua mãe, desde a infância deles, para dizer também das trajetórias dos dois. Sobretudo do pai. Nesta reconstituição das lembranças que não são dele, percebemos como, de uma geração para outra, a existência – a simples sobrevivência – segue sendo um desafio onde tantos padecem. Jeferson expõe página a página uma série de situações em que o racismo “à brasileira” é naturalizado nos discursos e nas atitudes daqueles com quem seus personagens se relacionam ao longo da narrativa. Seja um anúncio de vaga de emprego que tinha como critério “ter boa aparência” – o que significava, na maioria das vezes, ser branco – ou a fala de uma ex-sogra de Martha, mãe do narrador, em um relacionamento na juventude: “Uma moreninha forte igual a você pode ajudar bastante”. Numa prosa de leitura fluída, é difícil deixar as páginas de “O avesso da pele”. Jeferson Tenório constrói um texto que te fisga pelo afeto que sobrevive na voz de um filho, apesar das inúmeras violências que ele expõe. A morte de Henrique é ficção, mas poderia ser realidade. Na verdade, é. Com outros nomes nas páginas dos jornais e outros filhos deixados órfãos. Este é um livro sobre a morte de um homem, mas é também um livro sobre a sobrevivência. Sobreviver, apesar das diversas chances que a vida tivera para te matar. Seguir sobrevivendo, após a morte, em texto, na reinvenção de sua vida pelo olhar do filho.

– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.

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