texto por Ananda Zambi
Depois de dois anos de edições online devido às restrições sanitárias impostas pela pandemia de Covid-19, o Festival Carambola retornou ao formato presencial nos dias 2 e 3 de abril no estacionamento do Parque Shopping Maceió, no bairro de Cruz das Almas, na capital alagoana. Pela primeira vez realizado em dois dias, o evento de música brasileira cresceu significativamente desde seu surgimento, em 2017. O festival cresceu rápido, mas sem perder a qualidade, e tocou em pontos importantes a serem pensados na sociedade e na política.
Um dos pontos positivos a serem ressaltados é o fato do Carambola continuar com a honrosa missão de promover e fortalecer a cena alagoana. Não à toa a programação contou com 50% de artistas locais, dentre eles músicos da capital e do interior do estado. Além disso, nos intervalos dos shows, houve apresentações de grupos de cultura popular de Alagoas, como coco de roda, maracatu, bumba-meu-boi e frevo. O festival também fez questão de evidenciar a potência da nova música do Nordeste, destacando no line-up nomes como Getúlio Abelha, do Piauí e radicado no Ceará, e Rachel Reis, da Bahia.
Produzido por duas mulheres, Lili Buarque e Didi Magalhães, a programação certeira seguiu um modelo que vem sendo bastante difundido em festivais no exterior via plataforma Keychange, numa tentativa de igualizar a presença de artistas homens e mulheres na escalação. No Carambola, metade das atrações era do sexo feminino, representado por Cris Braun, Tuyo (duas dos três integrantes), Jup do Bairro e Céu, entre outras. Outra iniciativa elogiável foi liberação de uma cota de ingressos gratuitos ao público trans e travesti.
Além dos artistas já citados também se apresentaram Ítallo França, Gilsons, Cleiton Rasta, Luana do Reggae, Naty Barros, LoreB e Marinho. No time de DJs, estavam os alagoanos Gabs e Eleva e o pernambucano Patrick Torquato.
Sábado (2/4): A ansiedade por shows e encontros
Com uma estrutura bem maior que a dos anos anteriores, o festival reservou um espaço amplo para o público, com os stands de bebida e alimentação bem localizados e com um funcionamento relativamente ágil, além de banheiros químicos suficientes para suportar centenas de pessoas em cada noite. Na primeira noite, o público, ávido por shows e interações sociais, chegou cedo para aproveitar cada minuto do evento e esquecer por um momento todas as dificuldades que o Brasil e o mundo vem passando.
Quem abriu a todo o vapor os trabalhos do festival foi Cris Braun. Meio alagoana meio carioca, a artista, que transita entre a mpb e o pop rock com irreverência e ousadia cativantes, apresentou o repertório do seu mais novo disco, “Quase Erótica” (2021), que reúne canções inéditas e releituras com arranjos modernos de músicas do Sex Beatles, sua antiga banda (um dos mais divertidos grupos de rock dos anos 90). No setlist, músicas como “Príncipes e Feras”, “Invisíveis” e “A Cara da Minha Metade” marcaram presença, assim como as versões de “Tudo Que Você Queria Saber Sobre Si Mesmo”, “Aprender” (do repertório do parceiro Alvin L.) e “E o Seu Namorado Também”, um revival dos anos 1990 que acentuou ainda mais a personalidade atrevida de Cris em cima do palco, com direito à nova dancinha da Anitta e interação com os músicos acompanhantes. Por fim, surpreendera positivamente a presença no show de “Fuga nº 2”, clássica d’Os Mutantes, e “Essa é a Sua Vida”, também dos Sex Beatles, para deixar o coração quentinho. Como a artista foi a primeira atração da noite, o público ainda era pequeno, mas quem estava lá foi naturalmente se contagiando com aquela energia divertida, como não podia deixar de ser se tratando de Cris Braun. Tomara que nas próximas edições ela esteja escalada para um horário melhor para que mais gente possa conhecer seu ótimo trabalho.
O show em seguida foi do trio paranaense Tuyo, que estava pisando em Maceió pela primeira vez. A apresentação da banda influenciada por folk-pop e afrofuturismo impressionou. Quando Lio Soares, Lay Soares e Jean Machado entraram no palco, a vibração ali presente era tal qual a de uma catarse, expurgando, nem que fosse por um momento, as mazelas opressoras da sociedade. A qualidade técnica do grupo nos registros de estúdio se confirma ao vivo com uma performance impactante. O grupo abriu muito bem o show com a sequência “Sonho da Lay” e “Pra Curar”, ambas presentes no mais recente álbum da banda, “Chegamos sozinhos em casa” (2021). O vocal potente e emocionante de Lay é um destaque a parte, ela que também sabe conduzir muito bem esse momento de comunhão único entre artista e público. Também não faltaram os sucessos “Vidaloca”, “Solamento” e “O Jeito é Ir Embora”, mas a sensação que dá é que todas as músicas da Tuyo são hits para serem cantados a plenos pulmões.
Quem se apresentou depois foi um dos representantes do agreste alagoano no festival. Diretamente da cidade de Arapiraca, Ítallo França mostrou o repertório do seu disco mais recente, “O Time da Mooca” (2020), um dos melhores da cena local nos últimos anos. Idealizador do projeto Alfabeto Numérico, o artista deu um grande salto desde que começou sua carreira, em 2014. “O Time da Mooca”, álbum conceitual que através do tema do futebol acessa lembranças nostálgicas da infância e da adolescência do artista, foi apresentado pela ótima banda composta por Rodrigo Cruz, Ricardo Evangelista, Paulo Franco, Janu Leite e Nyron Higor. No set, marcaram presença as autorais “Breno”, “Zuada e Zuera”, “Camisa do Flamengo”, “O Time da Mooca” e “Orlando Golada”. Complementando o clima futebolístico, o artista tocou “Meio de Campo”, de Gilberto Gil (famosa na voz de Elis Regina), além de versões de “Cravo e Canela”, de Milton Nascimento, “Chuva de Caju” (de Julia Mestre, com quem cantou na edição online do festival no ano passado) e a tão em voga “Sujeito de Sorte”, de Belchior. Ítallo França também conquistou a simpatia do público presente e é mais um nome do cenário alagoano que merece ser conhecido em todo o Brasil.
Após o show de Ítallo, foi a vez de uma das atrações mais esperadas da noite: Getúlio Abelha. Maceió era a capital do Nordeste que faltava para o artista de Teresina radicado em Fortaleza se apresentar. Em um rápido bate-papo antes do show, Getúlio prometeu um espetáculo “extremamente interativo” e desejou que o público se apaixonasse. Dito e feito: saindo do meio da plateia em direção ao palco carregado por seus dançarinos, o artista queer sempre dá uma atenção especial à parte visual no seu trabalho, e nessa noite estava com um blazer e uma calça branca, vermelha, amarela e azul, que logo deu lugar ao cropped e à calcinha celeste. Entrou em cena com a música “Perigo”, seguido de “Tapuru” e do hit “Laricado”. Em “Voguebike”, a performance contou com os bailarinos andando de bicicleta e, em um determinado momento, Getúlio chamou casais para dançarem em cima do palco. Outras músicas de “Marmota”, primeiro disco do artista, lançado em 2021, estiveram presentes na noite, como “Sinal Fechado”, “Aquenda”, “Tamanco de Fogo” e “Vá se Lascar!”. Getúlio fez questão de ressaltar que esse é o primeiro álbum de forró feito por um LGBT, um feito importantíssimo, não só pelo pioneirismo mas também por abordar, por vezes, questões de gênero e críticas ao conservadorismo em um ritmo onde não se vê tanto isso.
Para controlar o fogo provocado por Getúlio Abelha vieram os Gilsons, principal atração da primeira noite, esquecendo um pouco a sacanagem e voltando-se para o amor. O show foi, na maior parte do tempo, dentro das expectativas: lotado de gente, mas sereno e bonito. O trio, formado por José Gil, João Gil e Francisco Gil (filho e netos de Gilberto Gil, respectivamente), se inspira na MPB e na música baiana, visando o resgate de uma ancestralidade. O conjunto tocou músicas como “Vem de lá”, “Algum ritmo”, “Dês”, “Proposta” e os sucessos “Devagarinho”, “Love love” e “Várias Queixas”. Após tocarem “Voltar à Bahia” e anunciarem que naquele momento iriam “voltar às raízes”, o grupo fez versões de “Palco”, do patriarca da família , “Swing de Campo Grande”, dos Novos Baianos e “Aí Foi Que o Barraco Desabou”, de Jorge Aragão, deixando o show, enfim, mais animado.
Para encerrar a noite e valorizar a cultura periférica, as apresentações de Cleiton Rasta e Luana do Reggae soaram mais como um pós-show, mas nem por isso deixaram de divertir. Cleiton, do interior de Alagoas, trouxe seu carisma impagável com as performances de “Cabeça de Gelo”, que viralizou com o DJ, mas cuja música na verdade é de autoria de Shalon Israel, “Olhos Verdes”, da banda alagoana Vibrações, e com canções de outros cantores de reggae, como Bob Marley e Sean Paul. Logo após veio Luana do Reggae, um ícone do reggae melô de Maceió dos anos 2000. A cantora abriu com “Não Dá Mais” e cantou outros sucessos como “Argentina”, “Jackeline”, e seu maior hit, “Ainda Te Amo Demais”. Nitidamente feliz de estar ali, Luana mostrou que manda bem no palco.
Domingo (3/4): Uma noite, dois momentos
Os portões que deveriam abrir às 16h, abriram às 17h e no início do evento ainda houve uma pancada de chuva. Esses fatos fizeram atrasar alguns shows e encurtar outros, mas nada que pudesse prejudicar muito a noite.
Quem abriu o segundo dia do Festival Carambola foi a rapper arapiraquense Naty Barros. Mesmo debaixo de chuva, a cantora, compositora e beatmaker subiu ao palco e já havia um público fiel lhe aguardando na grade. Após menos de cinco minutos, a chuva parou de vez, favorecendo bastante a rapper, já que, se já não é fácil ser a primeira atração de qualquer evento cultural, imagina com chuva. De branco e com uma calça escrito “Só nós tem o código” (referente à letra de “Criptografia”), Naty apresentou, além dessa, músicas como “Farol de Pele Preta”, “Lama”, “Há lagoas nessas terras” e “Magia Black Side”, todas do seu primeiro álbum “Bata Cabeça” (2021). Com sua obra calcada em reflexões sobre negritude e Nordeste e sob o olhar de religiões de matriz africana, o show de Naty Barros contagiou a todos os presentes.
A atração seguinte foi Rachel Reis. Baiana de Feira de Santana e revelação da nova MPB, Rachel mistura música da Bahia, pop e afrobeat, botando grande parte do público pra dançar, que sabia cantar de cor todas as músicas dela mesmo com ela só tendo lançado alguns poucos singles até agora, como “Despedida”, “Desatei”, “Chanel” (em parceria com Cuper e Zamba), “Me Veja” (parceria com Illy), “Sossego”, “Ventilador”, “Saudade” e, claro, o hit “Maresia”. Também rolaram versões de “Tigresa”, de Caetano Veloso, “Morena Tropicana”, de Alceu Valença e “Deusa do Amor”, do Olodum. O engajamento da plateia chamou muita atenção, o que provou que Rachel já é um fenômeno e ainda será mais, pois vai lançar seu primeiro álbum ainda esse ano, segundo ela. Seria interessante tê-la visto com a banda completa, mas ainda assim deu pra ver que a artista tem carisma, presença de palco e afinação. Ou seja, está preparada pro provável grande sucesso que virá após o lançamento do seu primeiro disco solo.
Os shows que se seguiram tinham uma vibe bastante diferente da do início da noite. E por isso era visível que havia ali dois tipos de público: os que curtiam mais brasilidades e os que foram ver bandas com um som mais alternativo. Isso não atrapalhou as apresentações, afinal a plateia do festival estava disposta a conhecer artistas novos e se abrir para o novo.
A atração seguinte, antes do show, publicou no Instagram que ia tocar suas músicas preferidas na apresentação. Para quem achava que LoreB, uma das representantes da cena local do festival, era uma grande promessa da música independente nacional, vê-la ao vivo trouxe certeza. A artista, cuja sonoridade tem influências de indie pop, acid jazz e MPB, subiu ao palco com uma roupa que lembrava a de Chapeuzinho Vermelho (destacando a cor como referência a um certo candidato à presidência do país) e, com sua guitarra, começou o show com o sambinha “Ska Amy (Caber)” e “Amnésia”, do EP “Etéreo”, lançado em 2019. Também estavam no setlist “Se Fosse Normal Ser Louco?”, “Não Há Mais Tempo” e “A Parte Que Falta”, do álbum mais recente da artista, “Cheio de vazio” (2021), além de uma versão de “Ando Meio Desligado”, d’Os Mutantes. Ao longo da noite, a artista demonstrou uma potente e afinada performance vocal, além de presença de palco.
Continuando num estilo um pouco mais introspectivo, a banda Marinho veio na sequencia surpreendendo por também exibir uma vibração bem mais intensa e enérgica ao vivo. Rodrigo Marinho, vocalista, baterista e líder do grupo que une post rock, dream pop e música ambiente, começou o show declarando que “tem que ter muita coragem pra amar”. A banda, formada também por Victor de Almeida, Katty Winne e Joaquim Prado, apresentou músicas como “Talvez Não”, “Um Dia”, “Mesmo Tudo” e “Vai Amanhecer”, repertório tanto do disco “Sombras” (2017) quanto do mais recente, “Leve Vazio”, lançado em 2020. A apresentação foi curta, mas boa a ponto de instigar a ver outros shows da Marinho e a ouvi-la nas plataformas digitais com mais frequência.
Devido à série de atrasos, o show de Jup do Bairro (que havia sido um dos mais elogiados do Lollapalooza dias antes) infelizmente foi um dos mais curtos, mas a artista conseguiu dar o seu recado, inclusive pra parte significativa da plateia que não a conhecia ainda. Acompanhada de Mulambo e Evehive, a cantora, compositora, apresentadora e atriz trans cujo trabalho transita entre o rap, o funk e o punk iniciou o show abordando questões de gênero, inspirada na tese de Simone de Beauvoir que diz que não nascemos mulheres, mas nos tornamos mulheres. E então cantou “Sinfonia do Corpo”, “Sou Eu” e “Luta Por Mim”, uma firme crítica ao racismo que tem participação de Mulambo destacando repetidas vezes a frase: “Mais um corpo preto no chão não muda porra nenhuma”. A artista também cantou “Pelo Amor de Deize”, parceria com Deize Tigrona que está em seu primeiro EP, “Corpo sem Juízo” (2020), que foi bastante destacado e premiado naquele ano. Já que era sua primeira vez em Maceió, ao final Jup incluiu no set um funk proibidão mesmo não costumando tocar na sua atual turnê.
Para encerrar a noite e o Festival Carambola 2022, a headliner de domingo foi a cantora e compositora paulista Céu. Sempre impecável e à vontade, Céu estava visivelmente emocionada por estar voltando aos palcos, e as plateias, que estavam afim de ver dois tipos de shows ao longo da noite, se uniram para curtir o show de uma das artistas brasileiras mais singulares deste século. A cantora iniciou com “Off (Sad Siri)”, “Coreto” e “Pardo”, músicas do disco “APKÁ!”, o mais recente dela de músicas inéditas. A artista também cantou “Arrastar-te-ei”, “Minhas Bics”, “Perfume do Invisível” e “Varanda Suspensa”, do álbum “Tropix” (2016), um dos novos clássicos da música brasileira. O show incluiu hits de todas as fases da cantora, como “Cangote”, “Concrete Jungle”, “10 Contados”, “Lenda” e “Malemolência” – nessa música, Céu convidou Rachel Reis para cantar com ela, a quem rasgou elogios, e após, as duas interpretaram “Maresia”, da artista baiana. Céu também se lembrou do seu último trabalho lançado, “Um Gosto de Sol”, em que fez releituras de canções pop nacionais e internacionais, e cantou “Deixa Acontecer”, clássico do grupo Revelação. Shows de festivais costumam ser diferentes dos espetáculos solo, mas Céu valoriza sua trajetória em suas apresentações, colocando no seu setlist músicas de todos os seus discos. Ouvir Céu é tão prazeroso a ponto de nos fazer lembrar de coisas boas que aconteceram até em momentos ruins.
Um grito de esperança entalado na garganta
Impossível ignorar os posicionamentos políticos que ocorreram por parte dos músicos e da plateia nos dois dias de festival. Praticamente todos os artistas se manifestaram contra o presidente Bolsonaro – seja ressaltando a importância de votar, através de um apelo para que o tiremos de lá ou até mesmo dizendo com todas as letras, que o candidato que deve ocupar o cargo é Lula. Por parte do público, enquanto no sábado houveram alguns posicionamentos mais discretos, como gritos apenas em coro, no domingo as manifestações surgiram mais à vontade em adesivos e bandeiras e em mais momentos do festival. Enquanto o atual presidente do país tentou censurar críticas ao seu governo no Lollapalooza Brasil 2022, falhando miseravelmente, o Festival Carambola 2022 também foi, querendo ou não, um evento espontaneamente político, em que o direito de se expressar e a vontade de ser quem se é se sobressaíram a qualquer constrangimento que quem está no poder tenta imputar. Bom pra lembrar que arte faz parte de um modo de viver e pode ser um instrumento de mudança, de revolução. Que em 2023 possamos festejar mais uma edição do Festival Carambola, tão importante para a cena do nordeste, quem sabe respirando novos ares de democracia.
– Ananda Zambi (@anandazambi) é jornalista e editora do Nonada – jornalismo travessia. Nas horas vagas, também brinca de fazer música.” A foto que abre o texto é de Rodrigo Brasil.