entrevista por João Paulo Barreto
Em uma das faixas de “Home”, seu terceiro disco, Eric Assmar canta “não posso cantar como um homem negro dos Estados Unidos. Este não é o meu lugar. Tenho apenas a minha história para contar. É somente o meu blues. Faço apenas o meu próprio caminho”. A música chama-se “It’s Only My Blues”, e define com precisão os passos trilhados pelo artista de 33 anos que anda por essa estrada musical desde a adolescência. O trecho descrito elabora uma reflexão direta sobre as escolhas do exímio guitarrista em sua própria carreira. Distante de qualquer deslumbramento com a fama, o perceptível foco de Eric em relação ao fazer musical, em relação à construção de uma carreira, é direto: a busca por algo que o permita viver de sua própria arte, mas, também, focado em uma elaboração técnica e respeitosa diante de um estilo musical que possui raízes culturais seculares e profundas. Acompanhar essa trajetória se torna um esmero diante da percepção de estarmos diante de algo especial.
Pouco mais de cinco anos separa a chegada de “Home” do seu predecessor, o solar “Morning” (2016). De lá para cá muitas curvas sinuosas, muitos percalços e perdas. Impossível não citar o súbito falecimento de seu pai, o pioneiro mestre baiano do blues, o guitarrista Álvaro Assmar, que nos deixou em dezembro de 2017. Também não dá para não citar o processo cirúrgico enfrentado por Eric em 2018, quando teve que se submeter a uma intervenção médica para sanar um problema em suas cordas vocais. Precisou ficar sem cantar por três meses e sem falar qualquer palavra por quase um mês. Nessa fase, perdeu 13kg, e foi quando mergulhou profundamente na introspecção diante da perda recente do pai. Recuperado, trouxe o foco para a continuidade de seu legado, tanto como guitarrista quanto como radialista, apresentando o programa de rádio Educadora Blues, que, em breve, completa 20 anos no ar. Um ano depois daquela fase, em 2019, lançou “Family & Friends”, disco que Álvaro havia deixado quase pronto. Da homenagem ao saudoso guitarrista, Eric arregaçou as mangas e passou a trabalhar na criação de “Home”, primeiro disco sem Álvaro como produtor, e, como o próprio Eric definiu, o mais comprometido com o blues entre seus trabalhos. Além disso, é o disco com uma maior entrega pessoal e autobiográfica em suas letras.
Dentre as letras que seguem por esse viés mais pessoal, “I’m Still Working” descreve essa fase de recuperação. “É uma música bem autobiográfica. Eu passei por algumas reviravoltas na vida nesses últimos anos”, relembra Eric. “Nesse período, eu estive sempre envolvido com alguma coisa que me mantinha trabalhando, coisas nas quais acredito e que fazem sentido para minha alma. Essa música é um desabafo, na verdade. Talvez seja a música mais confessional do álbum todo. Ela é um blues porque tinha que ser um blues. Uma coisa que, para dizer, eu precisava ser sincero com a forma de expressão mais natural que eu tenho fazendo música: tocando um blues”, pontua o guitarrista.
Outra das faixas confessionais do disco é “Can You Hear Me”, uma daquelas músicas cuja percepção de se tratar de extravasar a dor cativa o ouvinte. “Foi uma música que surgiu em uma madrugada dessas. Uma canção acústica, a primeira canção que escrevi na pandemia, já quando começou. E era uma canção diretamente confessional e de saudade de meu pai. Que escrevi para ele, mesmo. Ela foi escrita com violões que toquei e gravei aqui no meu home studio. Me imaginando conversar com ele. Pensando na saudade que tenho de conversar com meu pai. E, sobretudo, aqueles momentos que você quer compartilhar, tipo: eu queria que ele estivesse aqui agora para eu contar tudo o que aconteceu desde que ele não mais estava, entendeu? Saber como ele reagiria aos acontecimentos, vendo tudo o que aconteceu, vendo tudo que está rolando comigo, com a vida, com o mundo, enfim… Muita coisa para contar”, descreve Eric com pesar.
“Home” é, também, um disco no qual Eric Assmar vai além do power trio, cujo nome definia o conjunto musical composto com o baterista Thiago Brandão e o baixista Rafael Zumaeta. “O primeiro disco, ‘Eric Assmar Trio’ (2012), e o ‘Morning’ (2016), são álbuns que surgiram de um trio em um estúdio tocando. Essas músicas surgiram, eu ia compondo, gravando, mas a gente ia maturando os arranjos de maneira coletiva no estúdio. Então, o conceito Eric Assmar Trio fazia sentido para aquele contexto. Agora, o ‘Home’ não só é um disco que surgiu em um contexto mais solidário em termos de ideias e concepção de arranjos, como havia mais elementos. No ‘Morning’ já havia um pouco disso, com violões em algumas faixas. Mas no ‘Home’ tem essas camadas de violões em várias faixas. E é um disco que incorporo mais o órgão Hammond, além de mais vozes,” explica o guitarrista.
Dentre os nomes que Eric trouxe para o “Home”, os organistas Luciano Leães, Jelber Oliveira (que também participa ao piano) e André T (também responsável pela mixagem e masterização) deixam suas marcas de qualidade em faixas como “Close to Me”, cuja pegada reggae junto ao Hammond tocado por Leães cativa. Do mesmo modo, a entrada de Jelber Oliveira com o Hammond em “I’m Still Working” traz a lembrança da inserção de Boom Gaspar ao Pearl Jam de modo tão acachapante quanto. Já André T traz tanto para a faixa título, a singela “Home”, quanto para a clamante por socorro “Bad Dream”, uma participação mais discreta, mas bem perceptível em seu somar necessário às guitarras de Eric. Dividindo com Thiago Brandão, parceiro de baquetas que acompanha Eric há longa data, o baterista Victor Brasil deixa sua marca positiva nesse disco tão agregador que, claro, traz Rafael “Zuma” Zumaeta no contrabaixo como aquele que o próprio Eric define como pilar de sustentação para a banda. “Zuma é meu fiel parceiro e que está sempre comigo. De fato, ele é um ‘chão’. É o músico com quem eu há mais tempo toco. E é um cara com quem eu tenho uma identificação surreal por conta dessa solidez de convívio que criamos”, salienta Eric.
Sobre a letra que abre esse texto introdutório, na qual Eric aborda a ideia de seguir a própria estrada não se considerando um bluesman, uma vez que esse status pertence aos guitarristas negros cujas trajetórias de vida nos racistas Estados Unidos transparece de maneira pulsante em seus trabalhos, o guitarrista soteropolitano, cujas pesquisas de mestrado e de doutorado tiveram o blues como objeto de estudo, explica: “São reflexões que sempre venho tendo e que, nesse período, se maximizaram. Qual o meu lugar como músico de blues aqui no Brasil? Será que é a mesma coisa, será que não é uma outra coisa, ou será ainda que não é muito mais legitimo eu assumir ser quem sou, escrever músicas, contar a minha história, sendo do jeito que eu sou, vindo do lugar de onde venho, sem querer calçar sapatos que não são os meus? Sem viver aquele fetiche de querer ser um músico nascido no Texas, na década de 1950, ou o cara que veio de uma família de pessoas que foram escravizadas, querendo vestir a capa de um histórico de dor e sofrimento racial sem ter vivido. Ou seja, superficializar um histórico de luta? Não vou fazer isso. Não é humanamente decente na minha visão de vida eu querer vestir uma capa de bluesman. Não sou bluesman. Bluesman é o Robert Finley. Bluesman foi o Robert Johnson, Muddy Waters, BB King, Albert King. Esses caras são bluesman”, finaliza Eric.
Arrisco dizer que esses mesmos caras teriam orgulho de vê-lo levar à frente, aqui na minha maltratada e amada Salvador, o legado da música deles, caro Eric. Vida longa ao blues! Álvaro sorri em algum lugar. Neste papo com o Scream & Yell, Eric Assmar aprofunda o processo de criação de “Home”, bem como fala do período posterior à perda de Álvaro Assmar, identidade blues em Salvador e no Brasil, e de como os últimos seis anos desde “Morning” mudaram seu modo de encarar a vida. Confira!
Conversamos há quase seis anos, em 2016, sobre seu então lançamento, “Morning”. Como é que aquele Eric Assmar de meia década atrás , com o acúmulo de traumas, de perdas, de dores, mas também de realizações, alegrias e planos concretizados, está em relação ao Eric Assmar de 2022?
Ótimo insight. Aquele Eric de 2016, como você bem colocou, naquela época tinha outras coisas em pauta. Eu tinha 28 anos. Estava em plena ebulição de agenda, aquela coisa toda de correria. Aquele rush todo. Meu pai estava aqui ainda. Eu estava trabalhando muito com ele naquela época, também. Nós estávamos fazendo shows regularmente. Era a época em que ele estava promovendo o álbum “The Old Road”, que tinha sido lançado em 2014. Então, circulamos bastante. Lembro que viajamos muito nessa época de 2015 e 2016. Eu diria que, de lá para cá, e eu até falo isso no teaser, muitas transformações aconteceram. A coisa mais marcante nesse processo todo de transformações, sem dúvida, foi o falecimento de meu pai. Principalmente da forma como foi, súbita e precoce, que pegou a todos nós de surpresa. E isso deu uma chacoalhada na minha maneira de perceber o mundo e a minha existência. Perceber as coisas ao meu redor, de um modo geral. O que aconteceu foi que precisei assumir mais responsabilidades com essa questão da memória dele, da continuidade de alguns planos que estavam em andamento. Como foi um falecimento súbito, coisas ficaram pelo caminho, como, por exemplo, o disco “Family & Friends” e o programa Educadora Blues. Além de alguns planos mais urgentes dele àquela época, como eram os shows de comemoração dos 60 anos, que ele faria em março de 2018. Me coloquei na posição de concretizar esses planos. Foi uma necessidade espiritual. Uma coisa que, para mim, ficou muito clara desde o início: preciso fazer isso! É a maneira que tenho como me aproximar do meu pai, fazer alguma coisa em gratidão a tudo que ele fez por mim ao longo da vida, da existência, sendo o pai que ele foi. E, claro, uma coisa que entendo que seja uma urgência no sentido artístico. Um cara que tem o papel que ele tem no cenário do blues nacional com planos inacabados? Não dá para ficar assim. Precisa concretizar isso. Precisa vir a público. As pessoas precisam ter acesso a esse último material que ele vinha produzindo. É uma coisa que tem uma relevância artística grande. Então, minha cabeça se voltou muito para essa coisa do concretizar os planos dele que foram interrompidos. O ano de 2018 foi um ano de mergulhar fundo nisso. Naquele período, perdi 13kg. Eu tinha uma lesão vocal que já vinha tratando desde antes. Ela piorou muito com essa questão emocional. Acabou que se tornou um caso de intervenção cirúrgica. Precisei ir a São Paulo para fazer uma operação em abril de 2018. Fiquei três meses sem poder cantar. Fiquei quase um mês sem poder falar uma palavra, mudo por quase um mês. Foi um período de muita introspecção. Um período de eu mudar completamente o meu estilo de vida, desde a minha alimentação até os meus hábitos. Me tornei um cara muito mais caseiro, mais reservado. Com essa questão toda, a gente fica um pouco mexido. No meu caso, quando tudo isso aconteceu eu fiquei um pouco… (pausa) não diria com uma fobia social, assim, mas uma necessidade de ficar mais quieto comigo mesmo. No meu canto, com as minhas pessoas. Estreitar minha relação com a minha família, com a minha companheira, com os meus amigos mais próximos. Foi um período de me voltar muito para isso. E, naturalmente, a cabeça da gente muda, né, João?! Coisas que faziam sentido em 2016, 2017 já não fazem mais. Aquela coisa de farra. Eu era um cara muito festeiro. Não só também de tocar, mas de estar sempre ali celebrando, aquela coisa toda. Fiquei um cara um pouco mais bicho do mato nesse sentido. Acho que isso mudou. Mas o que permaneceu foi a paixão visceral que sempre tive pela música. Em 2016 já rolava e, em 2018, acho que amplificou pela saudade de meu pai. E por essa paixão pela música ser o fio de aproximação, o meu fio condutor para com a memória dele. A minha forma de me conectar com a saudade de meu pai, de me lembrar dele, era estreitar essa relação com a música. Com isso veio o Educadora Blues, veio a produção. O que falo no teaser, inclusive, é que o álbum “Home” tem uma característica mais blueseira do que os anteriores e que isso foi uma consequência natural de todo esse processo. Estreitei a minha relação com a música e, sobretudo, com o blues. Nunca ouvi tanto blues na minha vida quanto de 2018 para cá.
“I’m Still Working” é uma faixa que fala de sua vida pregressa à pandemia, e a letra traz muito disso que você acaba de dizer sobre continuar seguindo em frente. Tendo essa faixa como um símbolo do período, bem como o “Home” como um álbum gravado durante o confinamento, como se deu esse processo de criação do disco?
Na verdade, a ideia de “I’m Still Working” surgiu antes da pandemia. Foi uma coisa que pintou na minha cabeça nessa virada de 2019 para 2020. Eu olhando em retrospecto e pensando: “caramba, aconteceu isso tudo e eu continuo aqui, trabalhando”. A coisa que me manteve de pé foi a possibilidade de ter o que eu faço como meu trabalho. Uma coisa que é muito mais do que um trabalho, muito mais do que um meio de sobrevivência. Para mim, é uma razão de existência. Fazer música é tudo que tenho. Sem isso, eu não veria sentido na minha existência. Sendo bem sincero. Mas, assim, claro que com a pandemia veio aquela coisa toda. Para todo mundo por razões individuais e também por razões coletivas. Deu uma chacoalhada assim geral na noção de que as pessoas tinham da vida em comunidade, da vida em sociedade, e, também, da fragilidade das coisas. O quanto somos impotentes perante os acontecimentos de âmbito global que afetam, mesmo. E não há o que você possa fazer. Em um instante, tudo passa a ser secundário. É um negócio bem doido. Um negócio que bagunçou com a cabeça de todo mundo. E os danos estão aí. Desde as mais de 600 mil vidas perdidas, até as pessoas que sobreviveram à doença, mas estão com sequelas físicas, até pessoas que perderam seus empregos, pessoas que perderam suas possibilidades de sobreviver. Aqui no Brasil, a questão da fome, que é um negócio bizarro. Estamos vendo como a fome aumentou aqui no Brasil, como que a miséria, o desemprego, tudo isso cresceu em um passo galopante e assustador. E fora a questão, também, falando desse âmbito mais pessoal, da saúde mental das pessoas. Isso foi algo que custou para muitas pessoas. Foi um negócio bem triste. Então, só estamos falando de coisas ruins. Pandemia só trouxe desgraça. Só trouxe tragédias. Muitas. Sucessivas. E olhar também para isso e perceber que eu fui e sou um cara de muita sorte por ter conseguido continuar trabalhando por outras vias. Também sou professor de guitarra, também trabalho com gravações em estúdio. Trabalho com transmissões on line, shows on line, esse tipo de coisas. A minha maneira de me manter trabalhando foi possível graças a esse suporte on line. Graças, também, a pessoas que confiaram a mim essa responsabilidade, no caso de alunos, no caso de contratantes de shows on line, no caso de contratantes de gravações de voz, de guitarra, de violões, etc. Produções dos programas para a rádio Educadora FM. Olhar para trás e perceber que pude continuar trabalhando, “I’m Still Working”, continuo trabalhando, mesmo depois de tudo que aconteceu, continuo vivo, com saúde, não peguei Covid, não tive perrengues relacionados a isso com a minha saúde. Claro que perdemos entes queridos, pessoas próximas, todo mundo perdeu alguma pessoa mais ou menos próxima. Uma coisa dessa de atingir tanta gente, acho que ninguém saiu 100%. É difícil encontrar alguém que não tenha conhecido uma pessoa que não tenha morrido de Covid. Mas, no meu caso, é de se olhar para a própria realidade e ter a consciência de um próprio privilégio. Sou um cara privilegiadíssimo. Sobre o aspecto social, tenho uma condição de ter uma vida muito digna fazendo o que faço. Então, acho que olhando para isso que aconteceu depois da ideia inicial de “I’m Still Working”, ela só ganha novas camadas. E, claro, como toda obra artística é polissêmica, a gente joga no mundo. Claro que estou falando sobre a minha visão para fazer aquela criação. Vou achar o maior barato se outras pessoas ouvirem e re-elaborarem aquilo de uma outra forma à luz das suas próprias histórias de vida, das suas próprias percepções. Acho que isso só engrandece qualquer criação artística. É um barato você poder fazer com que a obra seja viva, seja dinâmica. Fazer com que ao longo do tempo ela vá ganhando novos significados de acordo com quem ouve. Cada tempo em que aquilo é ouvido, cada contexto. Ela está no mundo. É isso aí.
É a expressão “I’m Still Working” também no sentido de estar funcionando, que, no seu caso, reflete sua fase pós cirurgia nas cordas vocais, além da ideia de seguir em frente fazendo blues no Brasil. O momento da letra que diz: “They told me I should Quit” me faz pensar naquela ideia já discutida na nossa outra entrevista sobre a luta por ainda conseguir se fazer blues no Brasil e, mais especificamente, na Bahia.
Sim, verdade. “Working” vai bem além. “Working” é “eu continuo funcionando”. 13kg a menos, sem voz, bem magrinho, mas ainda consigo carregar uma guitarra e fazer minimamente ali, com toda modéstia, o que consigo fazer. Então, o pára-choque caiu, o pneu está furado, mas o carro continua andando. O motor está lá. Fora a questão afetiva, também. Da dor da perda de meu pai, aquela coisa toda. Então, acho que vai muito nesse sentido e o “…they told me I should quit”, a terceira pessoa do plural a quem me refiro na letra, na verdade, é uma coisa simbólica. Esses “eles”, na verdade, são os acasos, são as peças que a vida vai pregando na gente ao longo do caminho. Não é nada dirigido a pessoa B ou C, nem nenhuma indireta, nem nenhuma atribuição de culpa ou rancor de pessoas B ou C. Nada disso. Não tenho inimigos. Mas ficamos impotentes diante do que a vida vai desenhando para a gente. O que foi a pandemia senão uma grande catástrofe que simplesmente caiu no nosso colo sem que a gente pudesse intervir? Essas coisas vão aparecendo, elas vão tentando, mas a gente precisa ter jogo de cintura e força de vontade para ir driblando e traçando nosso percurso. Então, é sobre isso que a letra fala. Não me referi especificamente a essa coisa de fazer blues aqui na Bahia ou no Brasil, porque, assim, isso é uma outra queixa muito comum. Estou sempre em contato com pessoas que fazem blues nas mais variadas partes do Brasil. Acho que posso falar talvez em um âmbito mais nacional, digamos assim, do que exclusivamente na cidade de Salvador. Até porque a cena musical esteve parada por muito tempo. Mesmo com esse fluxo de retomada, ainda não está com a liberdade total que tínhamos antes da pandemia. Então, em um âmbito nacional, vejo as pessoas reclamando que o blues não é um gênero muito abraçado no Brasil, não é fomentado pelo poder público, pelas esferas que poderiam exercer esse fomento de uma maneira mais determinante para que chegue a mais pessoas, para que os artistas consigam subsídios de realizar suas iniciativas, sejam gravações, festivais, etc. Mas acho que se fizermos um retrospecto de uns 15, 10 anos para cá, o blues no Brasil cresceu muito, tanto em termos de adeptos e interpretes, artistas jovens, quanto em número de festivais e número lançamentos. Isso acompanhou, também, o crescimento da facilidade de se produzir músicas e de se difundir músicas com as plataformas digitais, mas que, também, exercem uma ação completamente predatória e desigual com os artistas. É uma falsa democracia, uma coisa muito mais benéfica para o usuário do que para o artista, de uma maneira bem desproporcional. Mas por outro lado, é mais fácil para as pessoas de partes diversas ouvirem a sua música de uma maneira mais instantânea. Isso sem entrar no mérito da divulgação, da difusão, dos algoritmos, que por outro lado invisibilizam uma parte monstruosa dessa produção contemporânea. Mas, se é para falar de quantidade, acho que nunca houve tantas pessoas fazendo blues no Brasil como há hoje. E nunca esse panorama foi tão diverso, sob o ponto de vista geográfico, com pessoas de estados variados do Brasil, como também do ponto de vista de gênero. Nunca vi tantas mulheres fazendo blues como tem agora. E acho que também talvez por conta do panorama racial, com pessoas negras fazendo blues. Embora seja uma música de origem negra, aqui no país acaba não tendo essa representação por uma questão, eu diria, relacionada aos percursos pelos quais o blues chegou ao Brasil, muito articulado com essa cultura urbana do rock, uma coisa que talvez tenha tido uma adesão mais intensa por parte de uma classe média branca, aquelas questões problemáticas que afastam o blues feito aqui do blues lá da sua origem, na diáspora negra africana, a escravização no sul dos Estados Unidos, e aquela coisa toda. No fim das contas, acho que o blues no Brasil, apesar de tudo, vem crescendo. E não sou do time dos que têm uma queixa, aquela coisa de “ah, o poder público deveria isso, deveria aquilo”. Acho que essa batalha não é só do blues. Essa batalha é da Cultura de um modo geral. Vivemos em um momento político catastrófico, no qual o Brasil está completamente à deriva. Estamos em um momento em que se chegou ao absurdo de você ter que explicar às pessoas porque a Cultura é importante para a formação de um povo. Esse discurso de “ah, ladrões da lei Rouanet, etc e tal”, essa coisa abjeta que a gente vê na política, sobretudo no governo federal. Isso é terrível! Mas vai chegar a hora em que vamos nos livrar disso. E só para não dizer que o problema é só esse, acho que todas esfera públicas, em âmbito municipal e estadual, têm dívidas com a diversidade cultural e com um maior fomento das produções. E o blues é apenas um dos que resistem apesar dessas lacunas, apesar dessa falta de fomento. Então, se querem interpretar dessa forma, acho super pertinente. Os artistas continuam funcionando. “They’re still working”, apesar disso tudo. Apesar deles. “Apesar de você”, como diz a canção de Chico Buarque, “amanhã há de ser outro dia”. E que bom que a gente consegue fazer, e que, no meu caso, eu tenha meios para fazer isso a partir de pessoas que prestigiam o trabalho que faço. Sou sempre muito grato por isso.
Faz um eco na minha cabeça ouvir a letra da música de Álvaro, “Pra Sempre Em Minha Vida”, quando ele diz que “se houve pedras no caminho, nenhuma teve 12 compassos”, e pensar nisso que você falou agora sobre identificação com o lugar que se vive e querer atrelar esse local ao seu trabalho, à sua arte. Quando lhe perguntei em 2016 sobre isso, você falou sobre essa identificação. Penso que a perda de Álvaro e tudo que aconteceu em sua vida de lá para cá tenha aprofundado ainda mais essa impressão de estar no lugar certo.
É bem oportuno você ter lembrado desse tópico sobre o qual nós conversamos lá atrás, em 2016. Tudo isso acho que ganhou contornos novos ainda mais. Com tudo isso que aconteceu de lá pra cá. Sou um apaixonado pela minha cidade. Gosto de viver em Salvador. Acho que temos coisas muito positivas, uma diversidade musical, um povo incrível, um povo hospitaleiro, um povo pelo qual tenho um amor muito grande. Nasci e fui criado aqui. É o lugar em que me identifico. Acho que até toda essa minha criação, embora eu não fale diretamente, não faça uma ode direta a lugares, não tenha músicas que façam essa expressão em um caráter direto, mas tudo isso acho que é fruto da minha ação como sujeito social e naturalmente, como sujeito social que convive com a cidade de Salvador no seu cotidiano. Então, acho que tudo isso deságua na criação, deságua na pessoa que sou, na maneira como enxergo o mundo. E continuo achando uma grande furada esse negócio de: “ah, cara, você toca blues. Para sua carreira acontecer, você tem que ir para Los Angeles, você tem que ir para Nova York. Ou, em um âmbito nacional, você tem que ir para São Paulo”. E aí vejo todos os colegas de São Paulo que tenho no blues, e não são poucos, e você conversa com essas pessoas e ouve queixas muito parecidas com as mazelas que a gente vê no cotidiano do mercado, da indústria cultural aqui da cidade de Salvador. Então, pare e pense: será que esse problema não é pelo fato do blues ser uma música de nicho? Pelo fato dela não ser mainstream e que as pessoas vão passar esse perrengue em qualquer lugar do mundo? Pois é. E venho com outro ponto. Aqui em Salvador, em outros mercados, talvez lá, sobretudo, em São Paulo, vejo que tem muita gente fazendo. Tem muito artista de blues, blues-rock sobretudo, e, claro, é uma cidade que tem uma população muito maior do que a daqui de Salvador. Geograficamente, ela também é mais ampla. Então, existe uma oferta de espaços muito mais ampla para se ouvir blues. A iniciativa de festivais, por exemplo. São Paulo acaba sendo um polo aglutinador de muitas iniciativas culturais do Brasil, o principal polo da indústria cultural brasileira. Isso vale tanto para a música quanto para cinema, para artes plásticas, para as artes de um modo geral. Por razões econômicas, de convergência, talvez de localização, por estar perto do Rio de Janeiro, Paraná, Brasília, lugares que têm esse fluxo. e essa coisa também de destinos que são mais comuns para voos que vêm do exterior. Então, acabam sendo portas de entrada e de saída para o exterior mais viáveis, com mais ofertas, e, por sua vez, menos custosas para quem viaja com frequência. Mas isso, na era da internet, acho que você consegue estreitar essas relações. E se o papo é circular com sua música, você consegue plenamente ir e voltar. Fazer shows em SP, fazer turnês e se articular para poder fazer isso. Acho que vai muito da disposição de cada pessoa. E no fim das contas, velho, você é livre para escolher viver no lugar onde for bom para você. Se você me diz que o lugar onde você quer viver é Igatu, na Chapada Diamantina, hipoteticamente, se faz bem para você estar lá, por que não estar lá? A vida é uma só. A vida passa muito rápido. E quando falo que novas camadas entraram na minha cabeça e na minha maneira de enxergar isso de 2016 para cá, me refiro ao fato de que a perda de meu pai me fez enxergar essa coisa de uma outra maneira. Eu queria ter envelhecido mais ao lado dele. Eu queria ter visto meu pai envelhecer. Eu queria ter podido acompanhá-lo por mais anos. Estar com ele até um momento da vida mais avançado. Ele era um cara com muita vontade de viver. Ele queria ter vivido mais. Eu sei que ele queria ter vivido mais. “He was not ready to die”, como a própria música que ele compôs diz. Aquela premonição macabra que está no disco “Family & Friends”. Então, olho para isso tudo e vejo o quanto que quero estar perto da minha mãe, o quanto quero poder vê-la viver mais anos. Quanto que quero poder estar mais perto do meu irmão, dos meus tios, dos meus sogros, das pessoas que estão ali próximas do meu ciclo social e afetivo. Então, acho que não só é possível você trabalhar muito bem no lugar onde você vive, no meu caso em Salvador, sendo um lugar onde tenho uma inserção, uma respeitabilidade do público local fazendo o que faço. Sou, em uma proporção muito pequena, um cara reconhecido por fazer o que faço, referência para as pessoas daqui por fazer o que faço. Nesse mercado do blues e do rock aqui em Salvador, as pessoas me têm como uma referência de credibilidade. Isso é uma coisa que vem como fruto, e acho que é natural do fato de eu já trabalhar com isso há tantos anos. Apesar de eu ter 33 anos, já trabalho com música desde o início da minha adolescência. Sem parar, o tempo todo. E trabalhando só com isso. Nunca tive plano b. Nunca fui músico nas horas vagas. Nunca existiu isso na minha vida. Eu sempre fui só músico. Full time. Essa sempre foi a minha obsessão de vida. Então, consigo trabalhar muito bem daqui. E aqui eu estou ao lado das pessoas que amo. E a vida é uma só, cara, e passa muito rápido. Essa coisa de: “ah, vou me mudar para ficar longe…” Não vou ficar, também, forçando as pessoas. Forçando a barra para que a minha régua, a minha maneira de perceber a realidade, seja um padrão para todo mundo. Isso é muito da busca pessoal, é muito do que está na perspectiva, nos valores, e na experiência de vida de cada um. As minhas vivências me fazem querer estar aqui. Na minha percepção de mundo, Eric sendo quem Eric é, isso é uma coisa estritamente pessoal, me faz querer estar aqui. Mas não julgo o músico que quer ir para fora, o músico que não consegue se inserir em uma cena de uma determinada cidade, e opta por se mudar e acaba encontrando melhores oportunidades, isso acontece. Sou, sim, um cara de sorte por poder trabalhar super bem aqui. Mas nem todo mundo que trabalha com arte consegue essa mesma sorte. Nem todo mundo consegue se sentir inserido em um lugar. O cara pode nascer em uma cidade e querer se mudar para viver em outra cidade. Acho super legitimo. E, cara, você é livre para fazer o que você bem entender. A vida é uma só e temos mais é que ser feliz e buscar fazer aquilo em que a gente acredita.
Fazer aquilo no que acreditamos e colocarmos a humildade como algo sempre em mente nesses caminhos. Ouvir “A Simple Man” me fez pensar nisso. Lembrei, também, daquela canção do Lynyrd Skynyrd, “Simple Man”, quando eles cantam “mamma told me to be simple”.
Seu link foi super oportuno com “Simple Man”. No caso, eu coloquei “A Simple Man”. O “A” é um artigo indefinido. Um cara simples. Um homem simples. Isso foi mais uma forma de eu me colocar como: “sou gente que nem você”, sabe? Uma pessoa como qualquer outra. Uma pessoa simples. Mais do que um “The” Simple Man. o “The” dá uma ideia muito de singularidade. Nesse caso, eu quis dar uma ideia de que poderia ser uma pessoa como qualquer outra. A música do Lynyrd é “Simple Man”, sem artigo no início. Tem essa diferenciação, também. Uma forma de eu diferenciar, porque é um super sucesso dentro do universo do blues, do rock e do southern rock pelo qual o Lynyrd e os Allman Brothers são reconhecidos. Mas tem a ver. Ela não foi uma inspiração direta, não, mas tem conexões. E essa música escrevi pensando nessa questão pessoal. Sou um cara de um contexto social que vem de uma classe média alta. Tocando nesses tipos de ambiente, você acaba convivendo com muitas pessoas desse nicho. E você sendo músico atuante, começa a perceber algumas nuances. Isso é um olhar muito meu. Algo bem pessoal. Não estou dizendo que é uma verdade absoluta e indiscutível. Tanto que isso não existe. Mas é uma crítica, uma insatisfação minha com um mundo de acúmulo de bens materiais, vamos dizer assim. Essa coisa que a gente vê muito propagada em redes sociais, essa coisa de influenciadores. Essa ideia de lifestyle, pessoas que cultuam essa coisa do estilo de vida de ter milhões de patrocínios para usufruir de viagens, hotéis, coisas caríssimas, luxuosas, carrão, vinhos caros, um super apartamento, uma cobertura na praia, coisas desse tipo. Claro que estou falando de uma maneira bem genérica. Mas é uma crítica minha, um pensamento meu, decorrente de eu ver esse mundo, e do que vejo nesse nicho social em que vivo. Nesses ambientes, vejo que as pessoas se apegam muito nesse tipo de coisa, vivem uma vida para trabalhar pura e simplesmente para acumular dinheiro para comprar bens materiais X e Y, para poder minimamente chegar a uma coisa que eles entendem como um ideal de vida, e, no fim das contas, não é isso. Como é que você explica milionários como Paul McCartney, Eric Clapton, Sting, ainda hoje dia, fazerem turnê, fazerem shows, lançarem discos, gravarem, compor? Você acha que esses caras precisam de dinheiro? Claro que e não precisam! Por que eles fazem isso? Na minha visão é porque música é simplesmente uma necessidade vital para eles. São caras que se tornaram referências porque amam profundamente o que fazem. E acho que são inspirações para nós por causa disso. O “veinho” Macca é inspirador. Um cara que nos ensina muito. Nos ensina que, no fim das contas, não precisam esbanjar. Volta e meia você vê nos tabloides notícias de Paul no metrô de Londres, caminhando na rua. Um cara que tem um patrimônio bilionário. Chega a um ponto que, acredito eu, nada disso deve fazer mais sentido. O que Paul McCartney pode querer de bem material que ele ainda não tem? Acredito que o que deve estar na cabeça dele é querer experiências. Ele quer canções novas, ele quer viver, conhecer pessoas. Então, no fim das contas, o dinheiro existe para lhe dar tranquilidade de você viver nesse sistema capitalista que a gente vive, pagando suas contas, tendo o mínimo de conforto para fazer suas escolhas e viver sob seus termos. Isso é legal para caramba. Não vou ser hipócrita e dizer que isso não tem importância, porque tem, sim! Mas, como digo na letra da música, “money can fool you and drive you mad” Dinheiro pode te confundir e te enlouquecer. “Don´t forget what your old man said” Esse “old man” é uma referência ao meu “old man”, ao Álvaro Assmar. Um cara com quem aprendi que você, no fim das contas, vive para buscar experiências, para fazer sua música. Você não vive para acumular bens materiais. “Simple Man” é uma grande crítica minha a essa engrenagem. Sou eu meio que chacoalhando o ouvinte e dizendo: “você veio ao mundo a passeio? Pense realmente sobre o que vale a pena. Vale a pena você entregar sua vida a um emprego em que você odeia simplesmente estar trabalhando naquilo, pura e simplesmente porque você quer acumular riqueza? Você quer ter um carrão, um apartamento luxuoso, você quer todo ano fazer cinco mil viagens?” Sei lá, cara. É um negócio… (pausa) Nem todo mundo tem o direito, tem o privilégio de poder escolher com o que vai trabalhar. A gente sabe disso. Mas, nesse nicho, sobretudo ao qual me refiro, aquela classe média querendo ascender para serem ricos. Aquela coisa toda que a gente vê por aí, de pessoas com preconceito com as artes, nesse nicho é super comum as pessoas com aquele estereótipo do filho que a mamãe e o papai incentivaram para que ele fosse um estudante de Medicina, de Direito, porque são cursos que vão conduzi-los a uma profissão que, com um diploma, ele vai conseguir ser alguém na vida. E o cara é um médico ou um advogado superfrustado. Porque, na verdade, ele era um puta escritor e poderia ter trabalhado com isso. Soterrou seu plano porque resolveu comprar essa promessa de outras pessoas. Então, é uma crítica minha a isso tudo. Claro que (uma crítica) do meu lugar. Falando dos meus valores. Não quero dizer que isso é absoluto, mas convido os ouvintes a pensarem sobre isso. Será que você veio ao mundo a passeio? Pense a respeito.
“Childhood Days” traz muito de uma entrega pessoal sua na letra, evidenciando a ideia do “Home” ser o seu disco mais autobiográfico. Nela você referência, inclusive, o mês de setembro como algo simbólico. Qual significado?
“Childhood Days” é um nome que já diz o que a canção fala. É muito autobiográfica. É o álbum mais autobiográfico que lancei. Aquele no qual mais divido experiências minhas. Falo da minha infância, uma coisa que, até então, acho que não tinha abordado em canção nenhuma. Falo dessa minha experiência da infância e do meu ingresso na música. E para mim é aquela coisa. O cara que tocava uma guitarra ele era um super-herói. Ele era dotado de um superpoder que nenhuma outra pessoa tinha. Para mim era singular. Mais do que Homem-Aranha e Batman, o super-herói era o Álvaro Assmar, era o Hendrix, era o Duane Allman, era o Mario Dannemann, eram tantos os inatingíveis, os ídolos de fora, como os caras que eu via aqui em Salvador e que tocavam para caramba na cena do blues dos anos 1990. Foram eles minhas primeiras inspirações próximas, além do meu pai. Eram os amigos do meu pai, caras que eu via em situações que pensava: “puxa, isso existe! É possível ver um cara fazendo isso na real. O cara aqui na minha frente fazendo”. Então, os super-heróis são estes. E o setembro está lá porque foi o mês em que ganhei a minha primeira guitarra. Dia 03 de setembro de 1998. Foi quando ganhei a minha primeira “squierzinha” que está aqui do lado do meu home estúdio. Ela voltou para as mãos do papai recentemente (risos). Estou com ela aqui e a tenho usado bastante esses tempos. Nunca vou esquecer o fascínio que tive naquele dia. A minha alegria. Lembro como se fosse ontem. Lembro super bem. Enfim, “september brought a reason to believe in dreams and simple heroes, with six strings, instead of wearing capes”. Mês de setembro trouxe uma razão para acreditar em sonhos e em super-heróis. Acho que respondi sua pergunta. É bem por aí, de onde vem o meu fascínio por guitarras e como isso entrou na minha vida. Falo dos Beatles na canção, também. Eles foram minha primeira grande influência musical da vida. “Childhood Days”, na verdade, sou eu dividindo experiências da minha infância com as pessoas. Aquelas que me conduziram a ser o músico e a pessoa que eu sou hoje.
“It’s Only My Blues” me fez pensar naquela questão que havíamos conversado na entrevista de 2016 acerca da identidade do blues, bem como na ideia de se fazer essa música em um local no qual ela não é tão valorizada, isso pensando tanto na Bahia quanto no Brasil como um todo.
Essa música, “It´s Only My Blues”, surgiu em minha cabeça e aí já é um pouco da junção do Eric músico com o Eric pesquisador. Nesse meio tempo, em meio a essa turbulência toda, terminei o curso de doutorado, em 2019. Defendi em 2019, conclui em 2020. Com a pandemia, o diploma, mesmo, só foi sair em 2021. As minhas pesquisas tanto de mestrado quanto de doutorado tratam sobre aspectos da prática do blues no Brasil, seja um mais voltado para o cenário de Salvador, como é o caso da pesquisa do mestrado, que teve um viés etnomusicológico. Ou no caso do doutorado, a pesquisa ligada ao ensino da guitarra blues. Uma coisa conectada diretamente com a Educação Musical, mas em cima da guitarra blues no Brasil. Então, são reflexões que sempre venho tendo e que, nesse período, se maximizaram. Qual o meu lugar como músico de blues aqui no Brasil? Será que é a mesma coisa, será que não é uma outra coisa, ou será ainda que não é muito mais legitimo eu assumir ser quem eu sou, eu escrever músicas, contar a minha história, sendo do jeito que eu sou, vindo do lugar de onde venho, sem querer calçar sapatos que não são os meus? Sem viver aquele fetiche de querer ser um músico nascido no Texas, nas décadas de 1950, ou o cara que veio de uma família de pessoas que foram escravizadas, ou seja, querer vestir a capa de um histórico de dor e sofrimento racial sem ter vivido. Ou seja, superficializar demais um histórico de luta? Não vou fazer isso. Não é humanamente decente na minha visão de vida eu querer vestir uma capa de bluesman. Eu não sou bluesman. bluesman é o Robert Finley, que ainda está vivo. Ele é filho de meeiros. Foi um cara que viveu o preconceito racial, viveu o trabalho rural, viveu tudo isso. Isso é um bluesman. Bluesman foi o Robert Johnson, o Muddy Waters, o BB King, o Albert King. Esses caras são bluesmans. Então, tudo isso é um histórico. Dentro dessa linha temporal do blues, você tem os outros caras que se tornaram grandes artistas de blues, grandes referências, sem terem sido bluesmas. Leia-se: os músicos brancos que se interessavam pelo blues. Stevie Ray Vaughan, Joe Bonamassa, Eric Clapton. São caras que são estandartes do blues, grandes referências, nomes importantíssimos e fundamentais para a história do gênero. Agora, bluesman? Se entendermos bluesman como um cara que vive o histórico da luta racial, da segregação, que viveu a aquele contexto bem excludente, violento e opressor dos Estados Unidos ao longo do século XX, esses caras (brnacos) não são os verdadeiros bluesmans, são uma outra coisa. São caras que pegaram um momento mais confortável da História, digamos assim. Em que o blues já estava na boca do povo, já estava com um grau de difusão maior, em um âmbito mais global. Mas isso de forma nenhuma desmerece a importância deles para o gênero como potenciais difusores. O que o Stevie Ray fez? Ele interpretou canções de mestres, ajudou a dar visibilidade à música do blues em um âmbito mais de mainstream, com clipes na MTV na década de 1980, aquela coisa toda, mas o Stevie Ray Vaughan não deixou de contar a história dele. Fazia suas músicas, contava a sua história, um cara do Texas que cresceu em um contexto urbano lá de Dallas, que chegou a viajar para Los Angeles. Tinha um irmão mais velho que tocava na banda, o Fabulous Thunderbirds, o Jimmie Vaughan. Então, ele cresceu já nesse contexto da cena urbana do blues do Texas, na segunda metade do século XX, da década de 1970 em diante. E, super legitimo, ele se tornou uma lenda. Uma referência. Não existe falar do blues contemporâneo sem falar do impacto do Stevie Ray Vaughan, um cara que mudou a história do blues com toda certeza. Quer você goste dele ou não. Tal como Eric Clapton, também. Tal como, na minha avaliação, Joe Bonamassa tem um papel grande porque ele é um nome muito conhecido. Um nome que ajuda a formar novos ouvintes de blues hoje em dia. Uma queixa muito comum dos representantes do blues, os artistas negros mais antigos, é essa: de que jovens hoje em dia não se interessam. Então, se você tem pessoas que fazem isso, mesmo que elas não tenham uma representatividade de serem artistas negros, mas isso serve para difundir a obra e é feito com respeito a esses antepassados, com reconhecimento que houve uma trajetória e que os protagonistas são essas pessoas negras, de isso é feito com esse patamar de respeitabilidade e de humanismo, entendo eu, por que não trabalhar com essa difusão e por que não promover esse respeito a essas pessoas e trabalhar com a difusão dessa música? “It’s Only My Blues” sou eu falando disso. Me interessei por essa música, eu já trabalhava com blues e sequer tinha pisado nos EUA quando comecei a tocar blues. Meu pai tocou blues a vida inteira e nunca chegou a pisar nos Estados Unidos. Um cara branco. Eu sou um cara branco, um cara que vem de uma outra cidade, embora a maior capital negra fora da África seja aqui. Eu venho de um contexto de classe média. Alguém que se interessou por rock. Embora, aqui na Bahia, haja convergências na história do blues com a história da música da diáspora e da tradição do samba de roda, das músicas de religiosidade africana, tudo isso são consequências da diáspora negra na nossa música, que é muitíssimo presente. Na nossa cultura como um todo, na nossa culinária, nos costumes, na vestimenta, na nossa religiosidade, tudo isso desemboca aqui na cidade de Salvador de uma maneira muito intensa. Mas o blues e o tock meio que vieram por uma outra via, como uma cultura urbana que veio por intermédio de uma mídia com muitas referências estrangeiras. Crescemos em contato com tudo isso e nos interessamos por essa música. E por que não abraçar esse tipo de som para a gente fazer e fazer do nosso jeito? Criar nossas músicas, contar nosso próprio discurso, usar isso como uma referência. Claro que articulado com todas as outras referências que você tem na sua vida cotidiana. E “It’s Only my Blues” é isso. “I’m just walking in my own shoes”. Só estou calçando os sapatos que Eric quer. Não tenho nenhuma pretensão de advogar um protagonismo que não tenho. Não sou uma pessoa negra que passou por essa luta. Sou um cara privilegiado. Alguém que está no topo dessa pirâmide de privilégios e tenho consciência disso. Mas acho que isso não me impede de contar coisas que acontecem na minha vida, percepções minhas e que divido essas percepções com essas pessoas. Acho que essa talvez seja a maneira mais justa que eu tenha de apresentar a minha música para as pessoas e dividir essa minha visão de mundo com elas. Eu acho que é isso. “It’s Only my Blues” fala disso.
Ao ouvir “Can You Hear Me”, foi inevitável não pensar na faixa “I Miss You Daddy”, do “Special Moment”, disco de Álvaro. Lembro dele falando sobre o processo de composição. Sobre como a saudade de seu pai o fez trabalhar nos acordes da faixa instrumental, e como foi difícil gravá-la. Ele também disse que não a tocava ao vivo pois não sabia como iria se sentir emocionalmente. Você sentiu algo semelhante em relação a “Can You Hear Me”?
Você foi cirúrgico. Foi exatamente isso. Eu queria fazer uma canção que seja uma comunicação minha com ele, tal como ele fez “I Miss You Daddy” para o pai dele. Eu quis deixar o coração falar o que ele queria. E aí eu, logo que começou essa maluquice de pandemia, a reclusão e confinamento em março de 2020, foi uma época em que, como todo mundo, fiquei apreensivo, preocupado, sem trabalho, aquela coisa toda. Preocupado e pensando muito nas coisas. Foi próximo ao aniversário dele, o que seria o aniversário dele, dia 20 de março. Naquela semana do aniversário dele, foi uma época na qual eu estava muito pensativo, muito à flor da pele, muito emocionado com toda a situação que acontecia. Sou um cara da madrugada, um notívago convicto. Passo muito tempo na madrugada pensando, muitas dessas canções surgiram nas madrugadas. A minha tese de doutorado e a minha dissertação de mestrado, boa parte delas, foi escrita nas madrugadas. É um período em que crio, gravo, escrevo, reviso. Assisto séries, leio livros. Fico contemplativo olhando pela janela, pensando na vida. A madrugada é um momento que tenho para me desligar do mundo e me conectar comigo. Não tem celular tocando, não tem mensagem chegando, não tem e-mail, e posso fazer isso. Me sinto bem para fazer isso. Então, em uma madrugada dessas, comecei a ter essa conversa mental, espiritual, com meu pai. Peguei o violão e algo foi surgindo dessa inspiração. “Can You Hear Me” foi uma música que surgiu em uma madrugada dessas. Me imaginando conversar com ele. Pensando na saudade que tenho de conversar com meu pai. E, sobretudo, aqueles momentos que você quer compartilhar, tipo: eu queria que ele estivesse aqui agora para eu contar tudo o que aconteceu desde que ele não mais estava, entendeu? Saber como ele reagiria aos acontecimentos, vendo tudo o que aconteceu, vendo tudo que está rolando comigo, com a vida, com o mundo, enfim… Muita coisa para contar. Você imagina se ele estivesse aqui agora? Não sei quando essa conversa acabaria, porque é muito assunto, muita coisa que a gente quer conversar. Então, “Can You Hear Me” foi eu pensando como seria essa conversa. Será que ele está me ouvindo, será que ele está aqui vendo, será que ele está…(pausa) o que será que ele está pensando de tudo isso? Foi a minha indagação de como que isso está acontecendo. E, ao mesmo tempo, afirmo na música que sinto essa presença dele. “I feel your love, I’m not alone”. Isso é uma coisa que… (pausa) É o meu anjo da guarda, né, cara?! Álvaro Assmar virou o meu anjo da guarda. Virou o cara que está comigo aqui (pausa). Desculpa, fico, às vezes, meio fora de tempo quando falo disso. Mas sobre tocar a música ou não, fiz com o mesmo propósito de “I miss you Daddy”, para que seja uma música para estar no lugar dela no disco. Não que eu consiga ou que eu não consiga. Ela tem playbacks, gravei alguns violões, algumas vozes, sou eu ali tocando e cantando tudo. Fiz várias camadas minhas ali porque eu queria essa profundidade no arranjo. E é uma música que fiz para que ela estivesse lá. Para que ela pudesse ser ouvida, para que eu pudesse visitar quando sentisse, para quem quiser visitar e sentir esse sentimento e pudesse ver isso. Além de “I Miss You Daddy”, tem outras canções que falam disso e que têm sentimentos muito fortes que falam com meu coração. Entre elas, uma canção que meu pai gostava muito. E o meu padrinho, André Christovam, também ama. Ela se chama “Song for Adam”, canção de um grande compositor americano chamado Jackson Browne, um cara que fez muito sucesso nos Estado Unidos nos anos 1970. E essa versão que eu estou falando foi gravada por Gregg Allman, dos Allman Brothers, no último disco dele, o “Southern Blood”, que ele lançou antes de morrer em 2017. Essa é a última música. Um dueto de Gregg Allman com Jackson Browne. E o Gregg, nessa música, se apropria da temática da música contando a história da perda dele, que foi o irmão Duane, que morreu aos 24 anos em 1971. Gregg Allman passou boa parte da sua vida carregando a banda, o legado dos Allman Brothers, por quase 50 anos, sem o seu Allman Brother, sendo o único Allman vivo. Imagino o tamanho da dor que deva ter sido, um cara que viveu uma dependência química terrível, com vício em heroína, problemas com álcool. Eu acho que muito disso se deve à dor da ausência do irmão. Foi um cara que teve uma existência de muito reconhecimento, muita glória pelo trabalho dele. Criou uma família bonita. Os filhos dele, o Devon Allman, que é um cara presente em redes sociais, sempre demonstra uma gratidão pelo pai. Tocaram juntos. Imagino que devam ter vivido uma vida muito feliz juntos. Mas foi uma existência que teve uma cicatriz forte na perda do irmão dele. Isso não sai, cara. Um irmão que morreu em um acidente de moto aos 24 anos, sendo uma das maiores promessas da guitarra naquela época. Um cara que até hoje é um pilar fundamental do blues e do rock. O que ele poderia ter proporcionado ao mundo se tivesse continuado vivo? Então, são lacunas da existência, e o Gregg falando de um lugar de irmão. Ele chora na música. No último verso, ele não consegue cantar, com a voz embargada. É um negócio muito emocionante. Aquela música mexeu comigo pra caramba. Sempre que ouço, me derruba. “Can You Hear Me” é inspirada por isso tudo. Uma comunicação minha com meu pai e que traz essas inspirações todas.
Você citou o Duane Allman, que morreu tão precocemente, e eu me lembrei da faixa “Abraço”, uma homenagem ao Marcos Arcuri, cantor baiano que nos deixou subitamente em 2020, aos 38 anos. Como foi esse processo de composição?
“Abraço” veio logo depois do falecimento do Marcos Arcuri, que é um grande cantor do cenário do rock aqui de Salvador, um cara que tinha um talento e um… não gosto de usar essa palavra, mas ele tinha um dom, um presente divino, o cara teve de ter uma voz abençoada, de ter uma tessitura vocal, um jeito de cantar que era impressionante. O pessoal que gosta de hard rock, nunca vi um cara cantando daquele jeito aqui em Salvador. Com tanta verdade no que estava fazendo, e ao mesmo tempo tanta técnica apurada. Você via que era uma junção de um cara com muito talento; E era um talento trabalhado, através de estudo, de técnica. E um cara legal. Um cara super simples, um amigo que fiz nessa caminhada da música e que não tivemos essa oportunidade de estreitar tanto na relação. Não era um cara que estava sempre ali comigo, mas sempre que nos encontrávamos, era uma festa, uma admiração mútua e muito verdadeira. E a última vez que o encontrei, foi entre shows. A gente se abraçou, “bora fazer alguma coisa! Bora!” Aquela coisa de empolgação no encontro. De repente, o cara morreu em uma circunstância súbita, como meu pai, de problemas cardíacos. E damos de cara com a impermanência da coisa. Com a fugacidade da vida, como foi a do maestro Letieres Leite, também uma partida súbita, uma coisa que pegou a todos de surpresa. O cara vinha desenvolvendo um trabalho de uma contribuição inestimável. De repente, foi interrompido pelo ciclo da vida. A gente fica se perguntando: “como assim?” É uma sensação que nos deixa inconformado por isso ter acontecido dessa forma. Valeu por meu pai, valeu por Letieres, valeu por Marquinhos Arcuri, E “Abraço” é uma música que fala desse sentimento. As coisas são impermanentes, mesmo. As coisas vão e, no fim das contas, o que fica conosco é o que pudemos viver juntos. E o “Abraço” simboliza esse afago, simboliza esse sentimento de solidariedade afetiva, vamos dizer assim. A maneira de você lembrar da pessoa, de você lembrar do momento. “Abraço” é aquele instante do espaço e tempo em que você simboliza uma energia positiva com a pessoa, um contato. Lembro do quanto era bom abraçar o meu pai. Eu lembro exatamente de como foi a minha despedida de meu pai, dois dias antes dele morrer, a última vez que a gente se viu, se abraçou, depois de jantar, quando eu estava indo para o aeroporto pegar um voo. Tudo isso fica meio que gravado na memória da gente. E essa música eu fiz como uma canção instrumental, uma canção que tem muita inspiração de mestres que, com melodias, conseguem dizer coisas que falam com o íntimo da gente. Dentre os quais, as minhas maiores inspirações tenham sido David Gilmour e George Harrison para essa música. E com o slide eu fui criando. O slide também é uma forma de eu me aproximar de meu pai. Ele usava muito essa técnica. Então, é uma forma de eu deixar que ele fizesse parte da canção, também, por essa via. E é uma canção, também, que eu fiz para que essa melodia soasse como um abraço em quem estivesse ouvindo.
E “Abraço” acaba ressoando na faixa “Ainda Existe Sol” por tratar dessa ideia de esperança, algo que reflete nesse período de pandemia que afetou todo mundo. Como foi a escolha de ser uma composição em português?
Lançar em português foi uma consequência do acaso. A expressão “ainda existe sol” surgiu em minha cabeça e eu decidi escrever em cima dela. Fiz uma sequência de acordes que achei interessante. Uma canção que já foi mais sobre esse tempo estabelecido de pandemia. Algo já concreto como uma realidade com a qual todo mundo estava sendo forçado a se acostumar, digamos assim. Então, “Ainda Existe Sol” tem esse cunho autobiográfico, de ainda existir algo pelo qual vale a pena viver, tendo uma existência feliz, esperançosa e proativa. No meu caso pessoal com a questão da lacuna, da saudade de meu pai, daquela coisa toda. E, também, com a questão da pandemia, como você bem falou. De esperanças por dias melhores, esperança pelo mundo se reerguer, se reconstruir diante dessa catástrofe. É uma música que tem esse cunho otimista de que o tempo irá trazer o sentido, como a letra diz. Vamos vivendo o nosso tempo, fazendo bem para as pessoas, sendo bons homens, boas mulheres, boas pessoas uns com os outros, estendendo a mão a quem precisa, nunca perdendo de vista essa solidariedade para com as pessoas. Acho que ela tem um pouco essa mensagem, também. Essa fé de que as coisas podem melhorar. Pode e vai haver um sol. Dentro da música brasileira, a gente tem canções que falam sobre isso. A conhecida de Renato Russo fala sobre isso. Isso se tornou um grande clichê dento do cancioneiro popular brasileiro, mas é uma canção com uma mensagem lindíssima e de um cara que, na minha percepção, era um gênio. Um divisor de águas na cultura popular brasileira. Não que eu tenha me inspirado na canção dele. Ela foi pura e simplesmente de olhar para minha vida e pensar: “não, espera. Não acabou. Podemos acreditar em coisas melhores.” E, claro, criando essa conexão com esse mundo da pandemia. Pensei muito nessa realidade e com uma esperança de que ela se torne algo melhor no futuro.
Ouço o disco e percebo um espírito otimista no trabalho, que nos ajuda a refletir sobre os dias atuais. Não é o caso de ser um disco de auto-ajuda, nada disso. Mas as letras trazem essa ideia de reconstrução, mesmo. De otimismo.
Foi um disco que eu diria que tem músicas que me pegaram em um momento de eu meio que já tendo juntado alguns cacos, sabe? De eu ter conhecido experiências que, para mim, foram muito dolorosas, e de eu ter transformado isso em uma maneira de tentar entender quem é esse Eric agora. Para onde eu quero ir. Vamos colocar o pé no chão, vamos andar e é isso aí. Vida que segue. Vamos embora e fazer o melhor que puder dessa experiência, pois a vida é curta e a gente não precisa negar os nossos sofrimentos, mas transformá-los em ferramentas para que possamos amadurecer. Então, é um disco que trata desse momento. Mas isso, claro, como todo disco. O “Morning” foi um reflexo do que estava rolando naquela época. O primeiro já foi um reflexo daquele período de formar o trio, com a vontade de ir para o estúdio, tocar junto. Ele tem temáticas talvez mais juvenis em suas letras, é mais combativo do que os outros, eu diria, em relação às temáticas poéticas. O “Morning” já é um disco, talvez, um pouco mais de bem com a vida. Mais solar. E “Home”, talvez, seja um disco um pouco mais reflexivo do que os outros. Mas um reflexivo que, sim, tem perspectivas otimistas. Ele não é nunca deprê demais ou pessimista. Ele apenas é um disco que senta no sofá e chama você para sentar do lado e contar histórias para refletir. E não somente isso: ele te chama para dançar, chama para curtir algo mais leve, como na faixa “Close to Me”, por exemplo. Eu tinha uma vontade de gravar um reggae. Foi uma diversão. Com Luciano Leães gravando com o órgão Hammond. Uma felicidade enorme que ele me deu de aceitar esse convite. Um grande organista gaúcho, um dos principais nomes do blues brasileiro em atividade. Uma participação que engrandeceu muito o “Home”. Tanto “Close to Me” quanto “Childhood Days”, as duas músicas que ele gravou. Claro que além dele tive o Jelber Oliveira, um grande parceiro, que está tocando comigo. Ele já está incorporado a essa banda que vai tocar as músicas do “Home” ao vivo. Sempre que possível, não estarei mais tocando como trio, mas como quarteto. Esse disco tem muitos elementos, muito teclado. Senti essa necessidade de trazê-lo como novo integrante da banda. E, claro, o produtor musical super referência, meu conterrâneo querido, o André T, que também gravou o Hammond em “Home” e “Bad Dream”. Ele mixou e remasterizou, sendo o responsável por esse som do disco que me deixou super satisfeito. Veio para somar.
“Home” é um disco gravado de forma remota durante a pandemia e que agregou mais pessoas, trazendo, dentre elas, os próprios integrantes do Eric Assmar Trio, Zuma e Thiago Brandão. Não mais utilizar o nome trio no nome é muito bem justificado, de fato.
O primeiro disco, “Eric Assmar Trio”, e o “Morning”, são álbuns que surgiram de um trio em um estúdio tocando. Essas músicas surgiram, eu ia compondo, gravando, mas a gente ia maturando os arranjos de maneira coletiva no estúdio. Então, o conceito Eric Assmar Trio fazia sentido para aquele contexto. Agora, esse não só é um disco que surgiu em um contexto mais solidário em termos de ideias e concepção de arranjos, como havia mais elementos. No “Morning” já havia um pouco disso, com violões em algumas faixas. Mas no “Home” tem em várias faixas, camadas de violões. E é um disco que eu incorporo mais o órgão Hammond, tem mais camadas de vozes, dois bateristas, o Thiago (Brandão) e Victor (Brasl). Tem o Zuma (Rafael Zumaeta), meu fiel parceiro e que está sempre comigo e que, de fato, é um chão, é o músico com quem eu há mais tempo toco. E é um cara com quem tenho uma identificação surreal por conta dessa solidez de convívio que criamos. Mas, entendendo que era um momento diferente, eu olhei para a coisa e não vi um disco do Eric Assmar Trio. Acho que já seria uma coisa um pouco mais ampla. Ele tem uma coisa muito autobiográfica, algo que trata de questões muito mais pessoais, como falei. E é o meu disco mais comprometido com o blues, além do disco que tenho mais colaboradores. Por isso, achei que fazer somente como Eric Assmar seria mais justo com o conteúdo do álbum. Essa foi a razão da minha opção para ser mais coerente com o que o álbum realmente é. E dessa forma ele surgiu. Curioso é que as pessoas que fazem parte do trio também estão presentes. Então, na verdade, é a ideia do conjunto A que se juntou ao conjunto B. Ele está contido no conjunto B, digamos assim. Apenas agregamos forças criativas e afetivas. Não excluímos ninguém. Não excluímos possibilidade alguma. E é isso. Fico muito feliz que ele tenha tomado a forma que tomou. E o aspecto remoto tornou possível termos tantas participações.
E a arte gráfica? Como foi esse planejamento em parceria com Uanderson Brito e David Roth?
A escolha partiu desse conceito do álbum, que é feito em uma época de quarentena. Um álbum que tem essa temática do lar como um refúgio emocional, algo que, sobretudo, a música “Home” traz. Diria que esse conceito foi a força motriz do álbum. Eu queria que esse contexto fotográfico tivesse imagens feitas em casa. Mas, também, um contraste com o externo. As imagens foram feitas na minha casa. E as fotos todas que permeiam o projeto gráfico do álbum, bem como a capa, claro. Então, o Uanderson trouxe as impressões dele em cima desse conceito com fotografias belíssimas que vão estar no álbum físico. E algumas que já foram usadas em redes sociais e imagens de divulgação para imprensa. O contraste dele com o “Morning” é este. É um álbum com um caráter mais indoor. Ele tem uma coisa mais intimista. A capa foi feita aqui no meu estúdio, aqui no meu quarto. Sou eu no canto com uma guitarra na mão. Poderia ser uma madrugada na qual eu estava compondo uma canção. Então, o disco convida para esse aconchego. Convida a pessoa a entrar nesse lar simbólico. E não só pela via do áudio, mas, também por essa via audiovisual. Seja com o videoclipe de “Home”, seja com as fotos do álbum. Ou até com o projeto de lettering do nome do disco, que foi feito pelo designer Scheckter Barreto. Uma coisa feita à mão por ele. Então, novamente, um outro elemento que se encaixa com esse aspecto home made. Tudo isso foi pensado e discutido por nós. Eu tenho a sorte de ter esses amigos super talentosos e com esses insights, dispostos a quebrar a cabeça neste aspecto de desenvolver uma ideia para poder pensar em um conceito. E o “Home” eu acho que é o trabalho que eu tenho mais maduro nesse sentido, que mais entrega elementos mais coesos, digamos assim, e coerentes com determinado conceito.
Em 2016 você me falou de gravar um disco ao vivo com músicas inéditas. Ainda existe esse projeto?
Com certeza. O plano de um disco ao vivo está em pauta. Quem sabe um quarto seja um ao vivo, mas um ao vivo que congregue músicas desses três primeiros, que congregue homenagens ao Álvaro Assmar. Isso é parte de mim. É uma promessa de vida. Não vai haver disco do Eric, show do Eric, sem que tenha alguma coisa do Álvaro, alguma menção, alguma homenagem. Isso é uma coisa que carrego comigo com muito orgulho. E quem sabe um disco que tenha tanto essas canções minhas como alguma coisa de homenagem ao Álvaro e, também, claro, sobretudo canções novas tocadas ao vivo. Canções inéditas. Gosto da ideia de um ao vivo que não seja um requentar de marmita, entende? Claro que esse termo é relativo, porque, ao vivo, as músicas ganham outra vida. Sobretudo quando você toca blues ou jazz, as músicas ao vivo ganham outra vida com o aspecto da improvisação da jam. Mas gosto da ideia de ter músicas novas, também. Músicas cujos primeiro contato discográfico vai ser através de uma gravação ao vivo inédita. Então, quem sabe, esse quarto disco não pode ser com essa temática de ser um disco ao vivo? Por enquanto, não estou ainda pensando nisso de uma maneira muito prioritária, porque estou focado no Home. Mas não descarto a possibilidade de fazer um ao vivo nesses moldes. De repente em algum festival, ou algo assim. E também quero, ainda poder fazer discos em parceria com produtores. No caso, o André T, que foi esse amigo que mixou e masterizou o Home. Ele é um produtor super renomado e já temos essa ideia mútua de querer fazer algo juntos. Então, também existe essa possibilidade de fazer um trabalho com essa parceria e produção no futuro. Dar vida nova a músicas e novas sensações. Mas o que eu não quero deixar de fazer é me manter criando. É manter uma comunicação com o meu tempo. Eu acho que o barato da criação artística, para mim, é estar em contato com o tempo no qual estou vivendo. É para isso que eu componho. Claro que eu quero ser ouvido. Você quer que sua música se divulgue. Investimos tanto nisso para chegar a mais pessoas. Mas, no fim das contas, fazemos porque queremos publicar uma mensagem. Essa é a necessidade básica e é que nos faz acordar todos os dias.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual. As fotos de Eric Assmar são de Uanderson Brittes / Divulgação.