texto de João Paulo Barreto
De fato, não ia demorar muito mais tempo para que a versão cinematográfica do Homem-Aranha (chegando agora ao seu 8º filme solo (!) em menos de 20 anos) buscasse refúgio na narrativamente ousada proposta que os quadrinhos do cabeça de teia trouxeram ao inserir as realidades paralelas com o mesmo personagem. Ou como foi batizado nas páginas, o Multiverso.
Após usar a clássica apresentação do herói perdedor em cinco filmes (com o quarto deles trazendo a mesma origem recontada como se fosse novidade), e, felizmente, tendo seu tempo otimizado pelos Estúdios Marvel ao reaproveitar o personagem em sua versão mais jovem sem qualquer necessidade de introdução, mas, sim, em um encontro direto com outros medalhões da Casa das Ideias, a parceria entre a potência geradora de blockbusters “amados” por Martin Scorsese e a Sony Pictures necessitava, realmente, de um sopro de inovação. Assim, a ideia de unir atores oriundos dos longas anteriores vivendo figuras centrais em embates diretos com o high-tech aracnídeo vivido por Tom Holland surge como um certo alívio na proposta narrativa de mais um filme com base na criação de Stan Lee e Steve Dikto.
Passado esse primeiro frescor de originalidade narrativa, o que o novo filme dirigido por Jon Watts (responsável pelos dois anteriores, inclusive) nos entrega, no entanto, é a ideia de uma série de momentos claramente voltados para o regozijo de fãs alimentados há meses por trailers destrinchados, teorias e análises quadro a quadro de toda e qualquer imagem que a internet venha a trazer. Não que exista qualquer problema com os chamados fan services, as tais cenas e sequências simbólicas dentro de um imaginário de fãs passionais e que o diretor e roteirista inserem com o único intuito de um “agradar geral”. Porém, é perceptível uma fragilidade em seus diálogos quando os mesmos se tornam basicamente falas para admiradores na plateia soltarem um “ooohh” de carinho quando dois personagens clássicos elogiam um ao outro ou quando a confusão com pessoas homônimas geram uma artificial gag entre as notórias figuras em cena.
Mas não me entendam mal. Essas observações não chegam a tornar o mergulho na aventura algo que prejudique a experiência como um todo. Dito isso, o espetáculo visual de “Homem-Aranha: Sem Volta para Casa” (2021) garante ao seu público um robusto retorno em termos de diversão dentro das quase duas horas e meia que o longa possui. E indo além, o aspecto relacionado ao peso emocional que a perda de certos personagens centrais traz tanto para a narrativa dessa terceira parte quanto para toda a mitologia da quase sexagenária criação quadrinística de Lee e Dikto, garante ao seu protagonista um arco dramático apesar de não inédito, uma vez que fatos semelhantes foram vistos nos cinco filmes iniciais, mas, ainda assim, deveras impactante e que ajudará a moldar as (inevitáveis, claro) continuações. E Tom Holland, saliento, prova-se como um ator à altura da exigência dramática que seu personagem precisa cumprir.
Sem o risco de entregar aqui pontos chaves da trama, é pertinente citar que a proposta metalinguística que temos no roteiro dessa nova aventura consegue criar para sua audiência um campo de possibilidades de observações vasto e que vão além do aspecto apenas visual exuberante. Claro, há seu desfecho fácil, com a criação de soros que curam até mesmo esquizofrenia (!), mas aprofundando-se na ideia de se usar elementos de outras produções como um aspecto central no qual o próprio Cinema se torna um Multiverso (ou uma realidade paralela nas próprias produções), como quando os roteiros repletos de conveniências dos Homem-Aranha de 2012 e 2014 são criticados abertamente aqui, ou quando até mesmo o nome engraçado de certo vilão é ironizado, bom, tais pontos colocam “Sem Volta para Casa”, junto à sua abordagem narrativa, em um patamar superior.
E se citei a condição esquizofrênica de determinado personagem como um dos pontos chave da trama, ao observar a ideia prática da dualidade dessa mente atormentada em comparação ao aspecto ternário da personalidade de outra figura central da trama, a gama de possibilidades de análise se multiplica exponencialmente. Pegue, por exemplo, a ideia trazida aqui da mesma pessoa impedindo fisicamente que seu alter-ego cometa um assassinato. Ou, ainda, quando suas cópias figurativas discutem as qualidades umas das outras. E se já não fosse o bastante, as vemos salvar a si mesmas da morte iminente.
Se você chegou até essa parte da leitura, alerto para o fato de que o fechamento desse texto trará um aspecto de revelação. Caso não tenha assistido ao filme ainda, sugiro que o faça e retorne.
As figuras dessa tríade às quais me refiro são, claro, os Peter Parker das três franquias do Homem-Aranha. Vê-los apresentar cada um individualmente aspectos diferentes de comportamento, personalidade e atitudes, sendo que os três nada mais são que representações da mesma figura, só traz à mente a ideia freudiana do ID, ego e superego. Aqui, a impulsividade do Peter Parker de Tom Holland diretamente ligada aos aspectos inconsequentes do ID e a presença combalida e calma de Tobey Maguire e seu Peter Parker marcado pelo tempo traz um aspecto atrelado à postura apaziguadora e madura do ego (ao menos, claro, em comparação à sua versão adolescente). Já Andrew Garfield e seu Parker atormentado pela culpa e peso da morte, claro, pode ser vista aqui como uma versão autorrepressora e do superego, uma vez que com tamanho peso na consciência, tudo o que ele pode fazer é conter-se em um modo estóico de reprimir a própria dor.
Quem diria que um filme da Marvel traria devaneios desse tipo para um mero escriba. O gigante Martin Scorsese deveria experimentar.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.
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