entrevista por João Paulo Barreto
A nova visita a “Marighella” dentro de uma sala de cinema gerou um impacto ainda mais forte. A anterior foi há 11 meses, em uma sessão especial que aconteceu no então Espaço Itaú de Cinema – Glauber Rocha, em Salvador, a primeira do filme em um cinema do Brasil, na Semana da Consciência Negra do ano passado. Em um final de ano como o do catastrófico 2020, quando as mortes pela pandemia cresciam exponencialmente, verbas de vacina (como viemos a descobrir alguns meses depois) eram desviadas e a falta de perspectivas de um país perdido desesperava os mais atentos, a sessão de “Marighella” na minha primeira visita ao Cine Glauber após meses de confinamento bateu pesado neste escriba.
Corta para esse final de 2021, e o sentimento em relação ao que acontece ao nosso redor não mudou muito. Porém, após a segunda dose da vacina (mas ainda usando máscara em locais públicos, evitando aglomerações e podendo sair de casa com mais regularidade), a comparação com aqueles últimos meses do ano passado, quando a pancada dirigida por Wagner Moura me fez deixar combalido a Sala 1 do Glauber, é inevitável. No entanto, a sessão para imprensa do filme acabou por causar resultado semelhante àquele inicial do ano passado. Para quem sabe reconhecer a fragilidade de nossa democracia e percebe os riscos de um Brasil desgovernado por fanáticos, as duas horas e meia de projeção de “Marighella” nos traz para essa realidade de maneira brutal.
Depois de embargos da Secretaria de Cultura do governo brasileiro e imbróglios burocráticos gerados de modo proposital pela Ancine gerida pelo atual executivo, a obra dirigida por Wagner Moura alcança seu público após quase três anos da data inicial prevista para sua estreia, que seria no começo de 2019. “O fato de você ser atacado pelo governo de um país porque você fez um filme é um negócio que temos que parar para pensar em como é algo extraordinariamente louco. Quando você tem um presidente e membros de um governo que te atacam porque você fez um filme, diz muito mais sobre o tempo que a gente está vivendo do que sobre o filme em si. Porque é um filme”, explica Wagner Moura em entrevista ao Scream & Yell por ocasião da sua visita a Salvador para uma sessão especial para convidados no Teatro Castro Alves. O diretor, dentro desse constatar estupefato da perseguição de um governo contra seu trabalho, não esmaece: “Claro que eu não facilito para ele. Porque eu sou combativo. E não faria nenhum sentido se eu não fosse. Porque eu sou assim. Porque eu acho que vivemos um momento muito sério no país de hoje. Então, é hora de todo mundo que puder, vir para o combate, mesmo. Tem que ir para o enfrentamento”, afirma Moura.
Baseada no denso livro escrito por Mário Magalhães, “Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo” (2012), a cinebiografia levada às telas por Wagner Moura é um de um estampido que ecoa muito tempo depois de seus créditos finais. É um filme alerta para os riscos que nos ameaçam como um país que deu voz e poder a projetos de ditadores e genocidas por convicção. Na sua abertura, um letreiro nos fala sobre as perdas de liberdades que os militares impuseram logo após retirar João Goulart do poder em 1964 sob o pretexto de salvar o Brasil da “corrupção e da ameaça comunista”. A promessa de novas eleições após um ano do golpe militar, claro, não foi cumprida. O Brasil amargou 21 anos sob a alçada sanguinária da ditadura.
O estampido citado acima é daqueles de cenas explosivas, sim, mas a dureza de “Marighella” se faz presente ainda mais forte em seus momentos de ternura, como quando Clara e Carlos se despedem, e o deputado deixa uma fita gravada para seu filho, que não pôde reencontrar como lhe prometeu. Em outro ponto, engolimos em seco o momento em que vemos as lágrimas do homem dentro do carro voltando de Cachoeira, cidade do Recôncavo, onde teve que deixar o filho após este perceber e alertar o pai da emboscada dos militares. Tais momentos dolorosos reverberam com mais força que os tiros e bombas que explodem no decorrer daquela trajetória do grupo de homens e mulheres que decidiu não aceitar os desmandos tirânicos e assassinos de uma corja sanguinária de militares.
“Marighella” se torna um filme símbolo de um momento em que o Brasil se vê quase perdido. Quase. A força de sua cena durante os créditos finais, quando é cantando com força o hino nacional, esse outro símbolo que, de alguns anos para cá, foi cooptado por forças mal-intencionadas e mesquinhas, traz esse sentimento de que merecemos mais do que esse país levado para trás por mentiras, notícias falsas, obscurantismo e negacionismo. Wagner Moura traz em sua fala uma força semelhante àquela dos personagens ao bradar o nosso hino. “Eu acho que o Brasil já vive um momento em que nos demos conta de que a eleição de 2018 foi pedagógica. A nossa história, a História do Brasil, é também absolutamente violenta, autoritária, golpista, racista. Bolsonaro sintetiza esse Brasil elitista que, em determinado momento, os eleitores foram às ruas dizer: ‘esse Brasil existe. Olhem para esse Brasil que ele existe.’ E esse Brasil é sintetizado na figura de Bolsonaro. Agora, eu acho que esse mesmo país é muito mais do que isso. E esse mesmo país, hoje, olha para isso e diz: ‘Não é esse o Brasil que queremos.’ Nós nos defrontamos com isso. Somos um país mestre em camuflar as coisas. É o país da lei da anistia. É o país do racismo disfarçado. E Bolsonaro mostrou que o Brasil é um país com um histórico terrível. Só que a gente está olhando para isso e todas as pesquisas dizem que não queremos mais”, pontua o cineasta e afirma: “Eu sou muito otimista com 2022”.
“Vamos ter que reconstruir um país. Vai ser um trabalho muito duro, porque andamos para trás. Foi algo devastador em todas as áreas. Mas é assim. Vamos reconstruir e caminhar para vocação que eu vejo que é a desse país: a de um lugar exemplo para o mundo”, completa Wagner. Depois daquele dia em novembro do ano passado, quando as incertezas e medos eram mais densos, sair de um cinema depois de uma sessão de “Marighella” em outubro de 2021 traz uma nova perspectiva para um futuro menos sombrio em nosso país. Um ano após sua primeira entrevista sobre “Marighella” com o Scream & Yell, Wagner Moura traz novas impressões sobre sua experiência nesse trabalho que, finalmente, chega às telas dos cinemas. Confira o papo!
Wagner, conversamos há 11 meses em uma entrevista por ocasião da sessões especiais que “Marighella” teve na Semana da Consciência Negra, em novembro de 2020, no Cine Glauber Rocha, localizado na Praça Castro Alves, aqui em Salvador. Agora, finalmente o filme entra em circuito comercial. Ver esse trabalho chegando às telas após três anos desde sua finalização, após toda perseguição de um governo formado por insanos, a sensação é a de um expurgo, é a de um alívio?
Estou caminhando com esse filme desde 2013. Com muito orgulho, “Marighella” é uma missão na minha vida. Passei por muita coisa com esse filme. Todo tipo de delícias e dores possíveis eu vivi e acho que vamos viver ainda. Porque esse lançamento não vai ser fácil. Eu já sei que tem uma milícia digital dando nota baixa ao filme no IMDb, sendo que ele nem estreou. Todos os ataques sofridos. Os ataques do governo. O fato de você ser atacado pelo governo de um país porque você fez um filme é um negócio que temos que parar para pensar em como é algo extraordinariamente louco. Quando você tem um presidente e membros de um governo que te atacam porque você fez um filme, diz muito mais sobre o tempo que a gente está vivendo do que sobre o filme em si. Porque é um filme. Claro que eu não facilito para ele. Porque eu sou combativo. E não faria nenhum sentido se eu não fosse. Porque eu sou assim. Porque eu acho que vivemos um momento muito sério no país de hoje. Então, é hora de todo mundo que puder vir para o combate, mesmo. Tem que ir para o enfrentamento. E também porque seria um desrespeito à memória de Marighella fazer um filme sobre sua memória e sobre a memória de toda aquela gente que tombou na luta contra a ditadura, e eu não fazer com que esse filme se tornasse algo com que as pessoas se identificassem. O filme terminou virando um produto que, pelos ataques que sofreu e pela importância de Marighella e por tudo, se tornou uma coisa com a qual as pessoas, simbolicamente, se identificam. Acho importante que o filme seja visto, mesmo, como uma peça de clara oposição ao estado das coisas no Brasil. Lançá-lo agora, e sobretudo lançá-lo aqui em Salvador, tem uma coisa para especial para mim. Hoje é um dia muito especial para mim. Porque é aquilo que você falou. São muitos anos carregando isso. E eu fiz um filme de amor. Para mim, o meu filme é um filme sobre amor. E acho que essa sessão especial no Teatro Castro Alves, por mais que tenha barulho aqui ou ali, lá dentro daquela sala, vai ser uma troca de amor. Quando a gente estrear esse filme aqui na Bahia, na minha terra, na terra de Marighella, cercado pelas pessoas que sempre quiseram que esse filme acontecesse, que gostam de mim, que gostam de Marighella, que entendem a simbologia do filme para o momento do país, essa vai ser uma noite de troca de amor. Eu acho que é uma coisa que estamos mesmo precisando.
Qual foi o maior desafio nessa estreia como diretor em “Marighella”?
O desafio para mim é enfrentar o extracampo. Algo que não tem nada a ver com o filme. Quer dizer, tem a ver com o filme, mas tem a ver com enfrentar as paixões que o filme desperta. Eu fico feliz que o filme incomode Bolsonaro. Eu acho bom, mesmo. Mas eu fico impressionado e chocado quando penso como é que pode um governo declarar guerra a um produto cultural. E mais do que isso. Ele declarou guerra ao Brasil, à Cultura de uma forma geral. Então, receber isso contra o filme é o mais difícil. Porque é triste “Marighella” não ter podido estrear. Mas a parte boa é todo o resto. Porque eu tive muito prazer em fazer esse filme. Se por um lado os ataques foram duros, por outro aquilo nos deu um sentimento enquanto filmávamos. Fazíamos tudo pela necessidade de estarmos juntos e de respondermos àquilo com o filme em si. Todos os dias, tinha uma energia muito poderosa, combativa, artística, tesuda, no set. E eu acho que esse era o meu trabalho consciente mais importante como diretor. Primeiro que todos vissem o mesmo filme que eu estava vendo e desafiar a todos para que contribuíssem com o melhor que tinham. Para que todos os dias acordassem com vontade de estar ali e entendendo a importância do que estavam fazendo. Tendo tesão por fazer aquilo. E assim foi. Quando vi que em Berlim havia 25 pessoas entre elenco e equipe do filme (no festival), isso é uma coisa que eu nunca vi na minha vida em nenhum filme que eu fiz. Quando você viaja para um festival, tem um produtor, um ator, três ou quatro pessoas no máximo. Nós éramos 25 pessoas no cinema de Berlim. Galera que sabia que não tínhamos grana para pagar passagem e eles queriam estar lá naquele primeiro dia. Aqui, hoje, em Salvador, está cheio de gente da equipe. Está todo mundo aqui. Foi algo forte para todos nós. E as circunstâncias extra filme, ao invés de desestabilizar, foi o contrário. Nos deixou mais unidos, mais fortes, e mais a fim de contar a história de Marighella.
O filme equilibra momentos de ação constante e frenesi, com momentos de calmaria e ternura. Como foi planejar esse equilíbrio como diretor e junto ao montador Lucas Gonzaga?
Eu queria muito ver os personagens de forma complexa. Para mim, como ator, o meu trabalho é esse. É ver as pessoas de forma multidimensionais. Ninguém é uma coisa chapada. Marighella é colocado em xeque o tempo todo no filme, com todo mundo. Ao mesmo tempo, esse é um filme que vem da minha admiração por ele. O personagem do Bruno (Gagliasso, que vive o delegado Lúcio, torturador a serviço da ditadura) é um personagem complexo que chega para o americano e fala: “vá se foder. Aqui é o meu país e eu estou fazendo isso porque acho que é a coisa certa”. Coisas, por exemplo, como o humor. Eu não queria fazer um filme que os guerrilheiros fossem uma galera pesada. As pessoas viviam suas vidas. Eu conversei com ex-guerrilheiros. Lembrei de quando eu morava em Bogotá e falava com as pessoas de lá sobre a época em que Pablo Escobar estourava bombas. As pessoas diziam que viviam a vida. Eles diziam: “A gente ia para o bar beber, estouravam bombas e nós voltávamos para casa”. Eu queria mostrar aquelas pessoas assim. Tive que cortar muita coisa no filme, mas, para mim, esse momento que você fala, as cenas de Marighella com Clara ou com Carlinhos. As cenas em que personagens se sacrificam por outros nesse filme. Isso para mim não era uma coisa muito racional de pensar. Planejar um equilíbrio no filme entra a ação e os momentos mais calmos. Isso não era tanto. Meu foco era mais em ter personagens vivos. Que não correspondessem a estereótipos de guerrilheiros, que era o que Marighella menos era. Ele não era aquele guerrilheiro duro. Ele era um cara divertido, engraçado. Amante da vida, poeta. Queria que todos os personagens tivessem essa riqueza. Todos eles.
No nosso último papo, perguntei se você estava otimista quanto ao Brasil após a eleição de 2022. Após quase um ano, como está esse sentimento?
Eu estou totalmente otimista. Eu acho que o Brasil já vive um momento em que a gente se deu conta de que a eleição de 2018 foi pedagógica. Falei isso em uma entrevista recente que dei à Folha. Foi uma eleição trágica. Estamos no meio de um projeto de destruição do país. Tudo o que o Brasil tem de bom está sendo destruído. No entanto, ela é pedagógica porque nos fez enxergar um Brasil que estava camuflado pelo pós-ditadura, pelo ciclo de progressismo que veio logo depois da ditadura militar. A Constituição de 1988, o governo FHC, o governo Lula, o governo Dilma. Isso nos levou a ver e a projetar um Brasil que, embora ainda desigual e que embora tenha evoluído e tinha tanto ainda para ir, camuflou um Brasil personificado na figura de Bolsonaro. Uma figura que sempre existiu. A nossa história, a História do Brasil, é também absolutamente violenta, autoritária, golpista, racista. Bolsonaro sintetiza esse Brasil elitista que, em determinado momento, os eleitores foram às ruas dizer: “esse Brasil existe. Olhem para esse Brasil que ele existe.” E esse Brasil é sintetizado na figura de Bolsonaro. Agora, eu acho que esse mesmo país é muito mais do que isso. E esse mesmo país, hoje, olha para isso e diz: “Não é esse o Brasil que queremos.” Nós nos defrontamos com isso. Somos um país mestre em camuflar as coisas. É o país da lei da anistia. É o país do racismo disfarçado. E Bolsonaro mostrou que o Brasil é um país com um histórico terrível. Só que a gente está olhando para isso e todas as pesquisas dizem que não queremos mais. Eu sou muito otimista com 2022. Vamos ter que reconstruir um país. Vai ser um trabalho muito duro, porque a gente andou para trás. Foi algo devastador em todas as áreas. Mas é assim. Vamos reconstruir e caminhar para vocação que eu vejo que é a desse país: a de um lugar exemplo para o mundo. Um país que, sobretudo, se amparará em dois pilares que só o Brasil tem: a Cultura e o Meio Ambiente. A relação dos povos indígenas com o meio ambiente. Que eles nos ensinem isso. Que a gente tenha a sabedoria de aprender. E com esses dois pilares, possamos nos apoiar para mostrar ao mundo uma nova forma de desenvolvimento que ninguém viu ainda. Eu acredito muito nesse Brasil.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.
infelizmente, o filme é ruim. A cena inicial é promissora, mas o resto fica só nisso, uma bela fotografia. E claro, é um filme-simbolo-manifesto-etc, muitos dirão que o valor tá nisso. Então tá bom. Só sei que perderam uma grande chance de fazer um filme que realmente seduzisse e tocasse o grande público para a causa. Esperava mais inteligência, ritmo e sagacidade, muito mais do que aquela caricatura espalhafatosa e cansativa. Aquela cena final, por melhor das intenções, foi histérica e constrangedora.