entrevista por Bruno Lisboa
Cinco anos após o elogiado EP “Sonho de Cachorro” (2015) e um período de dedicação a banda El Toro Fuerte, Fábio de Carvalho está de volta com o álbum “Anjo Pornográfico” (2021), disco em que o cantautor mineiro coloca em evidência melodias raivosas em ode ao caos da contemporaneidade.
Composto por nove faixas, “Anjo Pornográfico” coloca as principais referências que perpassam o trabalho de Fábio de Carvalho, de artistas como Daughters, Nick Cave, The Drones e Jair Naves passando por Lupe de Lupe, Swans, Arrigo Barnabé e Oxbow.
Tendo a também mineira Aldan como banda de apoio, o disco foi produzido por Fernando Bones (Aldan) e vem sendo arquitetado desde 2018. A pandemia atrasou parte do processo de gravação, que somente foi concretizado em 2021.
O álbum é um lançamento da Rubedo Discos, novo selo (capitaneado por Bones e Carvalho) que pretende ter como foco dar visibilidade a bandas experimentais que estão fora dos holofotes da mídia tradicional.
Na conversa abaixo, Fábio fala sobre a pandemia e os desafios ligados ao fazer artístico no período, a parceria com a Aldan, as dificuldades quanto ao processo de criação e gravação do disco do novo disco, o selo Rubedo Discos, planos futuros e muito mais.
Primeiramente eu gostaria de saber como tem sido este período de pandemia? Como ela impactou (ou não) suas vidas, em especial no fazer artístico de vocês?
A pandemia foi responsável por produzir uma espécie de intervalo que dividiu o processo de feitura do “Anjo Pornográfico” em dois. Antes das primeiras medidas de isolamento social o disco não tinha esse nome e, principalmente, contava com letras muito diferentes. Havia uma consistência sonora, mas não havia uma consistência temática que busquei construir a partir do momento em que retomamos os trabalhos. Os intervalos, sabemos, também são reflexivos. Comecei a criar uma distância das composições e dos arranjos, porque começaram a soar como se pertencessem a um momento passado, onde me inspirava por coisas que já não eram meu foco. Tudo que havia gravado até hoje tinha sido feito com rapidez. Em parte, pelo custo econômico de manter uma operação de produção por mais de alguns meses, mesmo em estúdios caseiros, mas também me parece comum o receio de trabalhar com longas durações. A maioria das ideias é descartada na medida em que expandimos a duração de um processo. Ele vai se metamorfoseando, o que pode ser perigoso se comprometer os fundamentos daquilo que se fazia anteriormente. Sinto o “Anjo Pornográfico” atravessado por esse conflito entre um projeto inicial, o distanciamento crítico produzido pelo isolamento social e uma retomada insegura. A insegurança, na realidade, girava mais em torno das letras do que dos instrumentos. A maioria dos versos foram finalizados poucas horas antes da entrada no estúdio para as gravações finais. Não é algo que eu gostaria de fazer de novo, acho que o disco acaba deixando a desejar nesse departamento. Mas, ao mesmo tempo, acho que é fruto dessa situação estranha onde já me cansava desses anos de feitura do trabalho. No entanto, penso que experimentar essa longa duração também ativou meus sentidos para um outro modo de conduzir o processo criativo. Os intervalos foram, pessoalmente, momentos em que busquei perspectivar meu lugar dentro de uma cena. O que exatamente eu estou fazendo? Qual é a relação desse disco em relação aos outros trabalhos entre os quais meu nome está orbitando? Uma solução estranha que encontrei para algumas dúvidas, que já estavam ali antes, foi sair do coletivo/movimento Geração Perdida de Minas Gerais um pouco antes da pandemia. Quanto mais pensava, menos sentido fazia e, no entanto, eu não parava de buscar motivos para fazê-lo. Então eu fiz e desse modo inventei algumas razões que poderiam apaziguar a aparente indiferença que isso parecia, no fundo, significar. Afinal, ainda estou colaborando com músicos do movimento e mantenho relações de amizade e admiração, então, por que sair? Acho que o que eu buscava nesse processo era realmente cultivar alguma espécie de solidão e de silêncio que vem com essa decisão. Distância, de novo. Sentia essa vontade de distância e silêncio também quanto ao processo de feitura de um disco com a El Toro Fuerte e o hiato da banda. Tanto a Geração quanto a El Toro foram os dois canais através dos quais a minha música chegou para as pessoas. Foi ali também, em torno de 2016, que se falou de rock triste e de uma cena emergente. Sinto que essa alcunha tem logrado para muitas bandas e que, efetivamente, há um espaço de mercado pra elas. Com a El Toro, principalmente, tive a oportunidade de tocar pra públicos consideravelmente maiores, de ter contato com o lado profissional da música. Uma das principais estratégias nesse meio é construir uma identidade forte de banda, artista, cantor, enfim. Eu mesmo era, então, o músico de rock triste que canta canções para as pessoas se identificarem e que participa dessa banda de emo El Toro Fuerte. Toda essa identidade ia se formando em torno do que eu faço e, assim, já abria um caminho com expectativas de decisões futuras, das sonoridades dos meus próximos projetos. Ao mesmo tempo, penso que uma boa música é algo que extrapola por completo qualquer identificação estrita com um grupo de artistas. Uma banda, com sorte, fará um punhado de músicas realmente boas e isso tem muito pouco a ver com tudo que se vende ao redor dessas músicas. Não é sobre uma identidade visual ou sonora que fideliza os ouvintes. Não é um gênero ou estilo de composição que sempre sai bem. Fazer uma boa música tem a ver, no fim, muito pouco a ver com a sua pessoa ou com a consistência com que a sua pessoa pode produzir canções. Estar na El Toro Fuerte foi em grande parte trabalhar com a mentalidade de fazer músicas de um certo estilo, com uma certa intenção. Tentei ser uma espécie de radar, captando as palavras e sons que poderiam ressoar com o público. Me parece que a mentalidade do pop tem a ver com isso. Criar hits é isso. O hit é a música que cola nas pessoas, que elas incorporam como se elas mesmas tivessem feito a letra. É uma captura, e não digo isso num sentido pejorativo, mas mágico. Na El Toro acho que brincamos com isso, sabendo que nossos shows tinham a qualidade emocional das pessoas se juntarem pra cantar com a gente no palco. Mas sabia também que éramos uma banda pequena. O “Anjo Pornográfico”, acredito, é um disco que faz fronteira entre dois modos de pensar minha relação com a música, embora ele não seja – e não poderia ser – a expressão completa dessas ideias. Ele carrega algo dessa vontade de coesão, de mirar numa certa sonoridade, de imitar e de gerar identificação, mas ele também é o impulso inicial de uma vontade de romper com essa lógica, de criar situações líricas onde a identificação é desconfortável ou intolerável. Já mencionei isso em outras situações, mas algo que corria na minha mente durante a confecção das letras era aquele motivo do cinema slasher da câmera assumir a perspectiva do maníaco ou assassino. É frequente no disco que o eu lírico não seja exatamente um sujeito com o qual as pessoas queiram se identificar ou consigam se ver nele. E, no entanto, a voz pode inflamar seus corpos de outros modos. É, então, um exorcismo. A escuta pode ser também um modo de expurgar os próprios sons e não só de incorporá-los e pronto. No “Anjo Pornográfico”, trabalho essas dinâmicas que, de certo modo, tem a ver com o campo do religioso e do profano, do que cria distância e do que anula a distância, do que redime e do que corrói.
Ao longo dos últimos anos você construiu com o Fernando Bones, ao meu ver, trajetórias artísticas com vários pontos de afinidade e aproximação. Mas, de fato, o que eu gostaria de saber é como foi o início da relação de vocês? E quais elementos vocês julgaram essenciais para firmar essa parceria?
Eu diria que a nossa relação músico-produtor tende a ser duradoura. Não acho que estamos nem próximos de esgotar o potencial que temos de criar juntos. Acho que o Bones é uma parte essencial do som do “Anjo Pornográfico”, no sentido de que ele me ajudou a construir aqueles sons praticamente do zero. Chegando no estúdio para a pré-produção tudo que eu tinha eram ideias pra guitarras e vozes. Os baixos e baterias foram criadas ora por mim ora por ele, mas nós estávamos juntos naquele espaço e acredito que isso faz de cada coisa feita ali algo coletivo. No final das contas, ali é o espaço onde essa ideia da unidade do Criador começa a ruir também. Quer dizer, não só ele criou arranjos, como escolheu como microfonar, como distribuir os sons na mixagem e isso é tudo fundamental. Achei importante frisar isso correndo o risco de cair um pouco na obviedade. Além disso, o Bones é um pouco mais pé no chão que eu. Mais seguro de que é preciso se ater a algumas ideias, não ir vagando de uma para outra tentando tudo. Na verdade, a insistência dele em seguir uma certa ideia inicial, em manter uma consistência sonora, foi o que produziu a coesão interna do “Anjo Pornográfico”. Ele tem um discernimento crítico maior e às vezes uma desconfiança quanto a muitas novidades. Isso me ajuda a não perder a cabeça e não esquecer sobre o que uma música realmente é. Ao mesmo tempo, não era raro que eu apresentasse algo novo para ele, alguma ideia imprevista, e ele aprovasse essa intromissão no arranjo inicial. Então, acho que ele é um produtor que mantêm seus ouvidos abertos, que consegue trabalhar alguma flexibilidade que termina por ser benéfica para o projeto. Preciso destacar o papel fundamental que a Aldan, banda de Belo Horizonte da qual o Bones também faz parte, desempenhou nesse disco. São os membros da banda que ensaiaram por meses comigo e que tiveram o compromisso de recuperar todo o repertório após meses de pandemia para concluirmos as gravações. Já tinham uns dois anos que achava a Aldan o melhor show de rock de Belo Horizonte, então quando eles propuseram fazer esse disco comigo foi como ter a banda dos sonhos te apoiando. Quanto a isso, acho que é um daqueles acontecimentos sobre os quais sempre vou expressar muita gratidão pela confiança que eles depositaram em mim. Eles sempre acreditaram no trabalho e eu sou uma das pessoas que mais acredita na banda deles, sendo realmente um entusiasta de muito do que eles já fizeram e do que penso que será um futuro ainda maior.
Falando do disco como se deu o processo de criação e gravação do disco de “Anjo Pornográfico”? Quais foram os desafios promovidos no decorrer destes dois anos de gestação do álbum até o resultado final?
Já discutimos alguns dos pontos do processo de gravação e produção do “Anjo” nessa conversa acima, então vou aproveitar a oportunidade para aprofundar em algumas questões que não foram levantadas ali. Talvez o principal desafio tenha sido a minha voz. Sabia que não queria cantar do mesmo modo que antes, e que as novas músicas também não pediam aquele tipo de interpretação. O ensaio em direção as escolhas vocais do “Anjo Pornográfico” já podem ser ouvidas no meu single “Trocando de Pele” (2017), em que busquei experimentar com vozes mais agressivas e com efeitos na pós-produção. A verdade é que no “Tudo em Vão” (2015) ou “Sonho de Cachorro” (2016) não tem praticamente qualquer pensamento sobre voz. Aqueles eram puramente os jeitos que eu sabia cantar intuitivamente. Claro que fui tentando trabalhar afinação e melodia, mas não era algo que passava pela minha cabeça que eu pudesse mudar minha voz e fazer dela um instrumento como os outros. Alguma das principais referências nessa nova direção foram o Nick Cave nos seus primeiros trabalhos com o Birthday Party e depois o Bad Seeds, o Jair Naves, com sua voz grave e dramática, e Arrigo Barnabé nos seus momentos mais estranhos. Era preciso introduzir uma dose de mania, exagero e caricatura na forma de narrar as situações e expressar os estados de espírito que animam as canções. Havia também um conflito recorrente entre o sério e o cômico. Era preciso tratar os temas do disco com a densidade que merecem sem deixar de lado algo de grotesco que também está lá. O grotesco, nesse sentido, não é simplesmente o repulsivo ou incômodo, mas carrega algo de cínico. Esse cinismo, sobretudo, expressa a relatividade dos valores, a efemeridade dos sentimentos e impulsos. Queria também traduzir o peso moral que geralmente acompanha o pensamento sobre o amor, o desejo, o vício e a violência, sem que a moralidade desse as músicas uma face de crítica ou de pedagogia. Se adentrei no projeto animado pelo sentimento de que queria falar algo sobre o mal, busquei tirar as músicas de uma atmosfera redentora que poderia iluminar e diferenciar, por meio da relação letras-vozes, os sentimentos bons e ruins. Era preciso não assegurar os ouvintes de um caráter “conscientizado” da música, porque isso me soa como a maior das pretensões. Como se coubesse ao artista ser um condutor, um “explicador” do que ele conta. Quando escrevo sobre isso, por mais geral que soe, estou pensando em situações criativas bastante concretas. Busquei reservar para a faixa título uma espécie de síntese das ideias do trabalho que carregasse essa tensão, onde não se trata exatamente de dizer “isso é errado”, por mais que a perturbação moral se manifeste sonoramente no caráter ruidoso e feio de muitas passagens. Naquela música busquei traçar um panorama de signos recorrentes na nossa cultura: a evolução da preocupação da medicina com o onanista, esse personagem dos séculos passados, que hoje se transfigura no jovem masturbador que se aplica ao #nofap e outros programas de disciplina e domínio de si. Há também toda uma atmosfera de pensamento acerca das masculinidades tóxicas, da desconstrução e das transformações nos hábitos. Uma associação que escuto frequentemente como verdade é o caráter pedagógico da pornografia, sim? Traçando uma relação direta entre o consumo de material pornográfico e o comportamento masculino tóxico. Penso também sobre as dinâmicas de consumo da Internet onde tomamos posse de imagens produzidas para tornar os corpos desejáveis, sejam imagens propriamente pornográficas ou nas redes sociais onde a exposição do corpo me parece passar por um mesmo desejo de desnudamento, mesmo que sem que o corpo se dispa literalmente. A dinâmica da Internet implica um jogo de observação onde estamos perpetuamente deixando os rastros do nosso olhar nos objetos que tocamos por via dos mecanismos de interação, enfim. Há todo um modo de participação que coloca o nosso corpo no centro de uma vertigem de discursos que ora nos alertam para a desmedida dos nossos hábitos e solicitam nossa reforma, ora nos inscrevem em círculos de consumo-produção que colocam nossa sexualidade como matriz energética. Nisso tudo, enxergo menos um potencial de trazer soluções e mais de conceber ficções a partir do nosso presente. Arrematando, acho que a maior dificuldade do disco foi caminhar essa linha tênue de elaboração de um presente conflituoso, sem inocência e nem vocação para diagnósticos. Os sintomas, se desejarmos conectá-los em outras redes de significação, podem levar a toda sorte de invenção monstruosa, fantástica, absurda. A doença esgota os sintomas e os reduz a uma coisa só. Nietzsche escreve que o cristianismo perverteu o Eros em vício. Essa redução dos sentidos e da experiência me intriga. Alguma potência se perde nessa passagem de estados do Eros. Hoje somos os possuídos que desejam um exorcismo imediato, ou que nos digladiamos com nossa própria vontade inconstante, ambígua, em um mundo onde a noção de Eros já não faz tanto sentido, mas onde a de Cristo também não é exatamente como já foi. Acredito nesse “clima” ao redor, então busquei intensificar os afetos que parecem compô-lo, de prazer e transgressão, de vício, pânico, um estado de desejo sem limites que só tem o “eu” como solução, e também o tratamento que esses afetos recebem como patologias, matérias da neurociência ou nos novos pensamentos críticos do capitalismo. Queria friccionar esse espaço que separa os sintomas dos diagnósticos criando situações líricas onde o monstruoso, o patológico e o divino se misturam.
De modo geral, e de forma bem superficial é verdade, o álbum é uma pungente ode a vida contemporânea e seus desdobramentos, tendo como background para o lirismo marginal o uso bem-vindo de melodias pesadas, calcadas em distorções. Nesse sentido, como se dera este o processo de junção destes elementos e de que maneira o mundo de hoje serviu de subterfugio / amparo para criação deste universo presente no disco?
Gosto que você use a ideia de “ode” para descrever a intenção do disco. Acho que diz dessa linha que busquei percorrer entre o desespero e a celebração, entre os diagnósticos do fim iminente e a possibilidade de um novo começo. É como se o disco jamais se resolvesse entre o carnaval e o apocalipse, trazendo imagens presentes em cada um desses universos. Mais precisamente, fazendo ver as intersecções que existem entre os dois. Os personagens que habitam esse “lirismo marginal” também vivem essa ambiguidade. Em “O Amor É” eu canto: Engoli/ Vomitei/ Criação. Em resumo, acho que o disco está aí, nessa criação a partir do intragável. O pornógrafo e o anjo são as duas personagens que rondam o disco. Por um lado, a questão do fim da distância, do que se fala hoje de “pornografização” do mundo e suas relações, da imagem que impede o pensamento e a relação. Do outro, essa figura monstruosa que extrapola os limites do olhar que, no limite, pode cegar. A violência que esses dois polos, aquele que mostra tudo e aquele que jamais pode se mostrar por completo, produzem no corpo humano. São duas experiências que colocam o espetáculo e o medo no mesmo domínio. Acho que o pornográfico guarda relações com outros campos de experimentação corporal, como o cinema de terror, gore, enfim. Acho que existem esses procedimentos que são de uma violência inegável e, no entanto, nós frequentemente recorremos a eles. Era preciso falar sobre tudo isso. Os signos do cristianismo, que me acompanham têm muito tempo, também foram objetos que busquei deslocar dentro do contexto do disco. Tentei trazer algumas imagens e frases conhecidas e ver o que acontecia quando eu colocava elas diretamente dentro desse cenário apocalíptico, porque, no fim das contas, o pensamento cristão esteve sempre especulando o fim do mundo, acreditando que ele viria. Sempre houve, e ainda existem, diversos projetos de fé cristã para lidar com isso. As profecias, arrebatamentos, redenções e juízos finais. Minha vida esteve muito intimamente conectada com essas promessas e isso me trouxe um grande medo. Fui ensinado a respeitar esse medo como uma prova da verdade das profecias. No entanto, o fim do mundo está sempre se adiando e nós permanecemos aqui fazendo as engrenagens desses pensamentos se renovarem. Caminhamos entre as imagens do transe, de sermos arrebatados por uma força maior, e a necessidade de manter a unidade das instituições que representam essa força na terra. Se as vozes líricas do disco recorrem a santos, versículos, profecias, elas não estão exatamente reiterando a mensagem das instituições. Queria, enfim, percorrer os perigos do transe, mas também das máquinas contemporâneas que tentam torná-lo útil, estratégico.
O disco é o primeiro lançamento do selo “Rubedo discos”, parceria firmada por vocês. Como nasceu a ideia do selo? Qual é o seu propósito? E ainda: qual a fatia do mercado que vocês planejam abraçar?
Nós criamos a Rubedo a partir do desejo de começar uma coisa do zero, de novo. O sentimento de que algo não ia bem no que fazíamos anteriormente e que seria preciso pensar outros meios. Pessoalmente, havia para mim a questão de que faltava a construção de uma perspectiva que contrastasse com outros espaços e grupos culturais de Belo Horizonte e do país. Sentia uma solubilização muito fácil e isso faz com que seja difícil para as pessoas entenderem o que é que se está fazendo. Com toda a ideia de rock triste nós começamos a minimamente produzir alguma fricção, algum jogo de ideias. Sinto hoje que isso se perdeu completamente e deu lugar a um marasmo entre as bandas e seus públicos. Havia uma novidade que hoje já não é mais. A grande questão era criar um selo que abarcasse os sons que sentimos falta de escutar em Belo Horizonte, que também pudesse incentivar artistas que não estão aparecendo e que não tem os meios econômicos pra fazê-lo. Artistas que, de certo modo, podem ter a liberdade de não combinar com as tendências do momento ou que parecem não se adequar a esse campo. Uma banda que sempre me interessou nesse sentido é a própria Aldan, porque acho que eles fazem um som estranho, que as pessoas têm dificuldade de mapear dentro do que se faz hoje. É uma banda de rock, com certeza, mas que não está usando os timbres, as melodias, os temas que hoje tem sido mais assimilados pelo mercado. Arrisco dizer que é uma banda que não parece mesmo se importar com isso e que, no entanto, tem traçado um caminho musical cada vez mais interessante. Essa é minha interpretação, claro. Qual é a fatia de mercado pra uma banda como a Aldan? Acho que é uma fatia esquisita, mas que a gente acredita demais que existe. A ideia é poder ativar as pessoas que vão estar interessadas em grupos que tomam riscos e que não se preocupam muito com expectativas. É trazer esse público pra perto do selo e criar uma cultura em torno das bandas. Com a Rubedo tentamos também resgatar um imaginário da produção musical que não se usa tanto atualmente. Há toda uma questão com a alquimia que anima algumas das nossas concepções sobre a música como experimento, transmutação das matérias do mundo. É uma espécie de pesquisa que estará perpetuamente em elaboração. O estúdio é um laboratório e nós vamos nos iniciando nesses longos processos de tradução, comparação, crítica e reelaboração dos sons. Penso que seria muito interessante se conseguíssemos construir um catálogo que não deixasse de destacar essa busca, esse desejo de fazer junto e de jeitos diferentes. Em meio a isso tudo, destaco também a vontade de abrir espaços de diálogo. Colocar os trabalhos para jogo mesmo, se possível conversando com o público, com as pessoas do jornalismo e da crítica musical. O que é bom, o que é ruim, o que precisa ser discutido, enfim. Construir pensamento em torno das músicas. Hoje, uma parte desse meio opera como um guia de consumidor e acho que isso não é por si só um grande problema. O problema começa quando é só isso. Então se num primeiro momento nós não recebermos essa atenção crítica, nós vamos criando nossas próprias oportunidades para conversar e mostrar o que tem por trás dessas canções. Fizemos uma parceria com o Festival Esconderijo para o lançamento do Anjo Pornográfico e eu tive a oportunidade de conversar do mesmo modo que estou fazendo aqui agora, expandindo os meios de comunicar o disco, de pensar com outras pessoas sobre o trabalho.
Por fim, com disco novo e selo na praça quais serão os próximos passos?
A divulgação do “Anjo Pornográfico” vai continuar por alguns meses, principalmente por via do lançamento de clipes. Além disso, já temos alguns lançamentos planejados para o fim do ano. Tem um trabalho do João Jardel, um do Fernando Bones e um do Sentidor. Ano que vem vai ser hora de pensar meu próximo lançamento pelo selo também, dessa vez com um intervalo menor.
– Bruno Lisboa é redator/colunista do O Poder do Resumão. Escreve no Scream & Yell desde 2014.