texto por Renan Guerra
Em 2020, quando da divulgação de sua live no Globoplay, Maria Bethânia disse em entrevistas “não gosto mais de falar do Brasil. Tenho vontade de chorar”. Isso vindo de uma artista que lançou belezas como “Brasileirinho” (2003) e que tinha orgulho de cantar o Brasil era uma constatação de que estamos em um momento realmente obscuro. Esse desânimo e essa desolação de Maria Bethânia se transformaram em “Noturno” (20210, um álbum de suntuosa melancolia, em que a tristeza faz nascer coisas belas.
O repertório de “Noturno” começou a ganhar vida no espetáculo “Claros Breus”, que Bethânia apresentou em 2019. Do roteiro desse show voltam aqui quatro faixas. Também de “Claros Breus” vem esse jogo entre luz e sombra, entre o que temos de solar e o que há de noturno em nós. Esse conceito é extremamente bem amarrado no encontro de Bethânia com o maestro Letieres Leite, responsável pelos arranjos do disco, e o produtor Jorge Helder, que conseguem dosar a grandiosidade e a delicadeza.
“Noturno” abre com a bela “Bar da Noite” (Bidu Reis e Haroldo Barbosa), com a voz de Bethânia apenas acompanhada do piano de Zé Manoel, um dos muitos nomes importantes que integram a banda da artista. Essa canção é como um chamamento de Bethânia para que adentremos em seu show em um bar pequenininho, daqueles com luz baixa, em que ficamos em mesinhas apertadas perto da artista. Na sequência, ainda mantendo o delicado mistério, vem “O Sopro do Fole”, faixa escrita por Zeca Veloso, filho de Caetano e sobrinho de Bethânia.
Os contornos sonoros ficam mais quentes e complexos a partir de “Lapa Santa” (Paulo Dáflin e Roque Ferreira), faixa mais caudalosa e que havia saído como segundo single do disco. O primeiro foi a bela e melancólica “A Flor Encarnada” (Adriana Calcanhotto). Falando em singles, há que se abrir um parêntese: “Noturno” ganhou um pré-lançamento com todas as coisas típicas de 2021: pré-saves, singles, reels, arraste pra cima e todas essas coisas de social media. E aí fica uma provocação: uma artista como Bethânia precisa seguir esses ditames de publicidade digital? Os singles soltos não tinham o impacto que o álbum, em seu todo, impõe sobre o ouvinte. É uma questão extra que rendem outras reflexões, mas voltemos ao disco.
Bethânia se arrisca no espanhol em “Vidalita”, da catalã Maria Teresa Martín Cadierno, acompanhada com beleza pelo violão de João Camarero. Na sequência, entra “Prudência”, composição de Tim Bernardes, defendida com uma força por Bethânia que faz parecer essa uma canção antiga, daquelas que sempre esteve em nós, ouvintes, do tipo que conhecemos de antigas transmissões no rádio. É uma surpresa e tanto, um encontro e tanto. Um dos momentos mais belos do disco.
“Cria da Comunidade”, mais pra frente, já marca um interessante encontro da cantora com Xande de Pilares, que canta em dueto com Bethânia essa faixa assinada ao lado de Serginho Meriti. Na sequência, entra a destruidora “2 de junho”, composta por Adriana Calcanhotto em memória da morte do menino Miguel Otávio, filho da empregada doméstica Mirtes Renata, e morto por descuido da patroa da mãe, Sari Mariana Côrte Real. Uma faixa dolorosa, de versos difíceis, em que Bethânia faz ressoar sua dor, seu medo e seu desolamento – quando ela entoa “num país negro e racista” é impossível ficar incólume.
Para fechar entra “Luminosidade” (Chico César) e o fragmento do poema “Uma pequenina luz”, de Jorge Sena. É forte demais que ela encerre um disco tão duro falando sobre uma pequenina luz que não ilumina, mas que ainda brilha. Uma declamação direta, sem bases, apenas a voz de Bethânia a encerrar com “no meio de nós, brilha”. E fim.
Se Bethânia parte de seu desgosto com o país, “Noturno” faz a curva e, suntuosamente, nos lembra o que há de mais forte e belo no Brasil. Se uma parte do Brasil deixa Bethânia triste, isso não apaga dela tudo de belo que há: ela segue cantando o Brasil que sempre acreditou e cantou. Um Brasil verdadeiro, intenso, cheio de complexidades, problemas e belezas. Entre delicadas construções sonoras, o que brilha é a voz de Bethânia como alento em meio ao caos.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.