introdução por Renan Guerra
faixa a faixa por Liège
A ancestralidade é um fio condutor para que a cantora e compositora Liège se coloque de forma inteira em suas canções: amor, cuidado, autoconhecimento e liberdade são temas que formam “ECDISE” (2021), disco de estreia da artista paraense. “A ecdise é um termo científico sobre a troca de pele de alguns animais. E no disco ela é representada por uma cobra, que troca a pele por completo para poder crescer”, explica a cantora.
Natural de Belém do Pará (PA), Liège atualmente vive em São Paulo (SP), no entanto foi em Campinas (SP) que seu primeiro disco ganhou vida, com o auxílio do produtor DJ Duh (Emicida, Arnaldo Antunes e Tulipa Ruiz), em seu Groove Arts Studio. Ela chegou com muitas das canções prontas, algumas se transformaram, outras nasceram e o trabalho coletivo fez o disco ganhar sua forma completa. “ECDISE” é interessantemente pop, pois a artista consegue de forma bastante sagaz unir suas referências e fazê-las desaguar em canções que ficam na cabeça do ouvinte, com seus refrãos a repetir.
O disco de Liège foi financiado através do Natura Musical, por meio da lei estadual de incentivo à cultura do Pará (Semear), e traz participações especiais do cantor e compositor Thiago Jamelão (que também atuou como diretor vocal do disco), do duo pop 2DE1, da rapper paraense Bruna BG e de Daniel Yorubá. “Pesquisamos diversas referências: africanas, brasileiras, entre outras. Tudo isso dentro da minha regionalidade, preservando meu sotaque e minhas questões amazônicas. Trouxemos esses atravessamentos todos para uma zona contemporânea, incluindo um pouco de r&b, pop, um lance de world music até”, explica Liège.
Para o Scream & Yell, a artista contou histórias e pequenos detalhes que construíram cada canção de seu álbum “ECDISE”. Confira abaixo o faixa a faixa:
INTRO
Essa faixa foi a primeira composta para o disco. Ela veio como manifestação espiritual após minha primeira ida a uma casa de umbanda. Foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida porque eu estava muito fragilizada e cheia de dúvidas sobre meu trabalho na música e me sentindo desprotegida. No dia seguinte, pela manhã, essas palavras vieram e intui que seria a abertura do álbum. Mais que uma resposta pra mim, mas do mundo sobre mim.
MATINTA
“Matinta” foi um beat proposto pelo DJ Duh. Ele já tinha essa base composta e na busca por me tirar da minha zona de conforto e arriscar numa sonoridade mais pop, world music, me deu pra que eu compusesse em cima. Ela é potente e seguida da “Intro”, acho que me apresenta muito bem como ser feminino e amazônida. Thiago Jamelão somou na construção do refrão pop, é uma das minhas favoritas, merece um clipe lindão!
LAVA
Essa faixa se aproxima muito do que eu fazia no início da minha carreira, falando de amor, com malemolência e abordando uma vivência regional, narrando lugares que eu vivi e que adoro apresentar pras pessoas com as quais me relaciono e da forma que me relaciono. Daniel Yorubá foi apresentado pelo DJ Duh que viu perfeitamente a cadência dele e seus versos na melodia. Escolha perfeita. para ilustrar, fizemos o primeiro clipe durante a quarentena, com imagens de bastidores das gravações da faixa e com animações da ilustradora MANDIE GILA, também amazônida.
QUERÊNCIA
É uma faixa pop que aborda nas entrelinhas uma relação homoafetiva entre duas mulheres. Sinto necessidade de falar de sexualidade porque para minha geração isso sempre foi tabu e hoje me sinto livre para manifestá-la. Falar dessa sexualidade é também falar sobre autoamor. Com sonoridade pop, com trecho de funk, “Querência” marca meu sotaque belenense e mantém a narrativa amazônida nos termos e metáforas com água jorrando e as conjugações verbais. Ela ganhou um clipe dirigido por Thatiane Almeida também durante a pandemia e com dois sets, um em Salvador, dirigido remotamente com a atuação da bailarina Bianca Lordelo e outro comigo, em São Paulo. Um grande desafio e com equipe ultra reduzida, ensaios, figurino, tudo via apps de vídeo, mas é um clipe que eu amo e que me liberta também na minha relação com meu corpo, com a minha imagem.
PROMAR
Foi o primeiro single lançado com DJ Duh e que sela essa nossa parceria. Fala de despedida, de perda, morte, mas sobretudo de refazimento e cura. Duh trouxe cor para a letra e juntos a paz que essa música precisava pra passar essa mensagem. O clipe dirigido por Lucas Moraga (diretor amazônida), também se passa na Ilha do Mosqueiro, cenário da maioria das minhas narrativas, onde cresci e onde minha família vive até hoje. É um vídeo de dança teatral com o bailarino amazônida Juan Silva.
DEIXA IR
Foi a última faixa do disco a ser composta e veio num fechamento de ciclo onde eu havia me mudado para São Paulo ainda sozinha, sem família e sem casa, morando de favor na casa de amigos e tudo parecia meio perdido. O processo de gravação do disco estava findado, mas algo faltava e me perturbava… Eu me sentia sozinha, sentia medo do julgamento das pessoas sobre o álbum, sentia pessoas do meio e que eu havia conhecido com um certo descaso sobre o que eu estava produzindo. A insegurança tomou conta de mim. Num momento de muito choro pedi em oração aos meus guias e à minha Nossa Senhora de Nazaré uma iluminação, uma resposta e recebi em forma de música. Chamei minha amiga Marisa Brito, cantora, compositora, produtora musical e professora de canto para compor a melodia junto comigo. O clipe veio coroar a mensagem de que é preciso se desprender de maus sentimentos para que o novo e o bem se apresentem, curando feridas e se abrindo. Essa foi uma mensagem que sempre aprendi com as minhas ancestrais, minha bisavó que era benzedeira, minha avó, mãe e hoje com minha filha. Quis retratar essa sabedoria, documentá-la nesse vídeo.
IMAGINA
No meio do processo do disco tivemos aquela fase de parar e pensar “o que tá faltando”? DJ Duh então foi categórico: “uma balada de amor”! E naquele momento o atual presidente estava fervendo com suas armações e planos para destruir o país e falar de amor era quase impossível pra mim, que tava cheia de ira. Então Thiago Jamelão sugeriu “Imagina”. Só assim seria possível falar de amor mesmo: imaginando. Duh me passou uma referência para ouvir na madrugada e me desafiou mais uma vez dizendo que queria a música pronta pela manhã seguinte. E assim o fiz! Na madrugada fria de Julho de 2019, imaginei um amor complicado, mas cheio de desejo com um refrão marcante. Jamelão seria perfeito pra participar dessa faixa e ele gravou lindamente comigo.
COMO ESTÁS
Essa faixa eu compus em 2017 quando morei nos Estados Unidos. Conversando com um amigo por app de mensagem o fiz essa pergunta “Como estás?” e a resposta dele e o desenrolar desse papo virou música. É uma faixa que eu amo, fala muito sobre mim, sobre muitos de nós e Duh escolheu a participação perfeita pra somar nessa composição: 2DE1, um dos duos mais talentosos que já conheci! Virei fã e amiga deles de cara e foi um processo lindo. Esse clipe terá uma carinha urbana e vai levantar questões que a nossa geração atravessa, quero muito que ele aconteça logo!
TÃO BEM
Me dei essa composição de presente em 2018 quando completei 30 anos de idade. De fato acordei, olhei no espelho e pela primeira vez em muitos anos me senti plena e feliz com o que via refletido ali. Aprendi finalmente a honrar a mulher que eu me tornei, cada pedacinho dela. Quero que todas as mulheres possam fazer as pazes consigo mesmas e resgatem esse amor próprio. É um convite ao autoamor. Então eu tinha acabado de descobrir o talento da minha conterrânea, Bruna BG, rapper da melhor qualidade. Estava fascinada e queria muito ter a honra de compor com ela. Mandei a música por app de mensagem e a empatia foi tamanha que em poucas horas a Bruna mandou a música pronta!
LEGADO
A última faixa do disco coroa a narrativa dele que é de uma mulher amazônida que honra sua ancestralidade e vive nos tempos atuais. Mostra meu entendimento sobre quem eu sou, quem veio antes de mim e a responsabilidade de ser uma ancestral de alguém e do legado que quero deixar às gerações futuras. Tem coro de vozes de amigas minhas cantoras amazônidas, Livia Mendes, Marisa Brito e Nathalia Lobato. Resume o processo de ecdise (trocar de pele para crescer), que nomeia o disco, pois para crescer, expandir é preciso saber da onde vem, para então saber para onde se vai.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.