por Pedro Salgado, especial de Lisboa
Quando a pandemia eclodiu em Portugal, o país vivia um momento de boa recuperação econômica e de confiança generalizada. Com a propagação do surto (Portugal foi um exemplo na 1ª onda da pandemia, e quase entrou em colapso na segunda onda, quando o pico de óbitos bateu em 300 no final de janeiro – atualmente a média semanal do país é 3 mortes por Covid-19), a forte redução do consumo e do turismo condicionaram todos os setores de atividade e a cultura foi uma das áreas mais prejudicadas. No meio musical, a resposta ao confinamento e às várias restrições impostas pela Direção-Geral da Saúde (DGS) resultou num aumento das iniciativas digitais.
Durante o mês de Março de 2020, o Festival Eu Fico Em Casa foi transmitido diretamente no Instagram de artistas como Capicua, Tomás Wallenstein, Ana Bacalhau, Samuel Úria e Filho da Mãe, entre outros, e o sexteto lisboeta You Can’t Win Charlie Brown apresentou um vídeo alternativo da música “Above the Wall”, no qual os músicos, munidos dos instrumentos que tinham em casa, contribuíram, à distância, com a sua parte para a interpretação da nova versão.
Outra iniciativa importante surgiu oito meses mais tarde, quando os Capitão Fausto lançaram o filme-concerto “Sol Posto”, exibido em simultâneo numa sessão única em 70 salas de cinema portuguesas, integrando três performances exclusivas da banda, registradas em três momentos distintos do dia (crepúsculo, noite e alvorada) e propondo uma reflexão sobre a passagem do tempo e a sua percepção.
Para Manuel Molarinho, músico do Baleia Baleia Baleia e na one-man-band Manipulador e responsável do selo portuense Saliva Diva, as dificuldades sentidas no confinamento exigido implicaram um acerto no seu trajeto: “Como músico, o principal problema foi a questão psicológica. Eu tinha em perspectiva 70 shows para o ano de 2020 e no início do surto foi angustiante. Depois, recebi uma resposta grande da sociedade civil, que me ajudou comprando discos e fazendo doações. Para além disso, candidatei-me às linhas de apoio disponíveis e como abri atividade nas finanças há muito tempo, não ocorreram problemas nesse campo. Fiz a minha readaptação e agradeço o interregno pois permitiu-me dar mais amor a algumas coisas, como é o caso do próximo disco dos Baleia Baleia Baleia que deverá sair no outono. Era para ter sido editado no ano passado, mas agora estamos a dar-lhe mais tempo, energia e ideias”.
Pedro Valente, o responsável da Azáfama (uma empresa sediada em Lisboa que se dedica ao agenciamento e ao management de artistas como Pedro de Tróia, Beautify Junkyards, Esteves e JP Simões, entre outros, bem como à produção de eventos), recorda a diminuição e em alguns momentos o desaparecimento total dos shows e do seu impacto financeiro e anímico nos vários agentes culturais: “Foi a altura de colocar o dedo na ferida, percebendo o grau de vulnerabilidade da indústria e a sua dependência dos shows, quando, idealmente, as apresentações ao vivo deviam ser apenas uma de várias formas de rendimento e sobrevivência. Chegamos a um ponto em que a estrada é o ventilador a que a música e os músicos estão ligados e quando falha a energia deixamos de respirar. O processo de criação por si só é pouco sustentável, o que poderá ter consequências na qualidade das criações”.
Momento de transição
A Casa do Capitão, um espaço cultural localizado no Hub Criativo do Beato (zona oriental de Lisboa), abriu ao público nos meses de verão de 2020 e foi, em si mesmo, uma resposta ao contexto de pandemia e da paralisação da atividade cultural da cidade que, na altura, se encontrava com uma programação muito reduzida. “Foi necessária alguma criatividade para iniciar este pop-up, porque para abrirmos ao público num modelo de alguma forma viável, precisamos incorporar as regras aplicadas à restauração, respeitando todas as medidas de confinamento vigentes, e mesmo com essa adaptação subsistiram as principais dificuldades quando abrimos pela primeira vez, como a limitações das lotações e as restrições dos horários que estavam em vigor. Estas condicionantes levantam algumas dificuldades à viabilidade dos shows, no que diz respeito à bilheteira e do próprio espaço, que também depende de receitas de consumo de bar para sobreviver. Por fim, enfrentamos outro problema à data da nossa abertura, que dizia respeito à confiança do público no regresso aos espetáculos culturais”, explica Gonçalo Riscado, diretor da Casa do Capitão.
Um dos setores mais penalizados na crise pandémica foi o dos festivais. Em 2020, o cancelamento da maioria dos festivais de verão em Portugal representou uma perda de cerca de 1,6 mil milhões de euros, segundo Ricardo Bramão, fundador e presidente da Aporfest (Associação Portuguesa de Festivais de Música), a associação mais representativa dos festivais e dos seus agentes e que organiza os eventos Talkfest e Iberian Festival Awards: “Os festivais de 2020 não começaram a trabalhar nesse ano, mas sim em 2019 e só regressando em 2022, tornam-se quatro anos de produção de eventos que só terão uma edição. Para recuperar esses quase três anos, todas as verbas investidas, o dinheiro e a produção será muito complicado e acho que demorará uma década a ser conseguido”.
Sobre o futuro dos festivais, Bramão revela ponderação, mas sublinha igualmente o caráter contingente do período. “Vivemos um momento de transição em que está a haver uma adaptação a novas regras e ainda não se arrisca muito. Por isso, é um ano de maior complexidade no reajuste dos festivais e mesmo que a pandemia acabasse agora ou a vacinação tivesse sido cumprida para todos os grupos de risco seria sempre um período transitório. É uma fase de adaptação, porque depende da confiança do público”.
Face à incerteza, a Azáfama teve de repensar as suas estratégias, tomar decisões e, em alguns casos, lançar trabalhos novos, mesmo sabendo que o retorno imediato ficaria abaixo daquele que teria num cenário pré-pandémico. “Torna-se preponderante pensar a médio e a longo prazo. Não faz sentido lançar discos à pressa, em cima do joelho, para “salvar o verão” a nível de apresentações ao vivo. O que é lançado tem que ser pensado e certeiro, porque pode determinar quem sobrevive a tempestade e quem morre na praia. Mais do que nunca é preciso privilegiar a qualidade e não a quantidade”, diz Pedro Valente.
Sobrevivência das salas de programação
Uma das iniciativas fundamentais de revitalização cultural é o Circuito Lisboa, que se iniciou em 3 de Maio e prolonga-se durante o mês de Junho. A ação resultou de um apoio da Câmara Municipal (prefeitura) de Lisboa no âmbito do programa Lisboa Protege com o objetivo de garantir a sobrevivência das salas de programação da rede Circuito em Lisboa, nos meses de inverno, e permitir que os espaços abrissem portas, temporariamente, através de um apoio destinado a artistas e outros profissionais do espetáculo. A Casa do Capitão foi uma das 12 salas de programação abrangidas por este apoio, junto com Musicbox, Titanic Sur Mer, Lounge, Valsa, Lux Frágil, Hot Clube de Portugal, Damas, B.Leza, Village Underground Lisboa, RCA Club e Casa Independente.
“Tal como nos restantes locais, para a Casa do Capitão a iniciativa foi fundamental, permitindo retomar a nossa programação, apoiar artistas emergentes e não só, garantindo-lhes um cache mínimo, e possibilitando que eles voltem a um dos palcos da cidade. A grande maioria destes intérpretes não tem grandes públicos e as suas carreiras ficam em risco sem estas oportunidades, por isso, embora estas medidas não resolvam as suas vidas financeiras, o sucesso das mesmas está na soma do trabalho que estes espaços puderam desenvolver e da visibilidade que estão a dar aos músicos que regressam a estes lugares. A programação do Circuito Lisboa na Casa do Capitão tem tido também boa adesão do público”, explica Gonçalo Riscado.
Relativamente à dinamização da atividade artística, os teatros municipais deram um contributo significativo. Em Lisboa, o Teatro São Luiz e o Teatro Maria Matos, tal como o Teatro Rivoli (Porto) e o Theatro Circo (Braga) têm incluído nas suas programações vários músicos portugueses, num processo marcado pela continuidade das atuações e contando com a adesão do público. Os espaços respeitam as orientações da DGS, entre as quais que o público utilize máscaras de proteção e as salas de espetáculos tenham lotação a 50% e, atualmente, nos casos concretos de Lisboa e Braga, devido ao aumento da taxa de infectados pela Covid-19 (superior ao resto do país), os shows têm de terminar às 22h 30m.
“Na música a questão divide-se em duas áreas específicas. Por um lado, os shows, eventos institucionais ligados aos municípios e aos teatros municipais, são iniciativas que não têm larga escala, pertencem a uma estrutura central e não dependem das contas a pagar para serem concretizadas. Por outro lado, a maior dificuldade está a acontecer na área do mercado mais informal, no underground, nas salas mais pequenas e em espaços que abriam só para fazer um determinado evento. As dificuldades são grandes. Na cidade do Porto, a sala Maus Hábitos transformou-se num restaurante e fazem-se shows à mesa (com o público sentado). Desconheço se as duas salas do Hard Club estão disponíveis, mas é uma situação um pouco similar e têm lugares sentados”, conta Manuel Molarinho.
Programa Garantir Cultura
Sobre o programa Garantir Cultura, que contou com verbas consideráveis, as quais se espera que sejam aplicadas total e corretamente, e a aprovação do Estatuto dos Profissionais da Cultura, duas medidas do Ministério da Cultura anunciadas em 2021, Pedro Valente valoriza as deliberações, mas revela algumas preocupações: ”Verificam-se problemas de precariedade na indústria que deveriam ter sido abordados há muito tempo com seriedade. É um efeito colateral da pandemia (não são muitos, mas existem) e que tornou ainda mais urgente essa análise. E, naturalmente, programas como o Garantir Cultura, serão um balão de oxigénio para muitos players na indústria. Embora os prazos estabelecidos para a realização dos planos de atividades previstos nas candidaturas me inquietem um pouco, porque vai haver muita coisa a acontecer até ao fim do ano, quando o mercado continua a ser bastante pequeno, podendo não ter capacidade para absorver tudo”.
O cancelamento dos festivais de grande dimensão, como o Rock in Rio Lisboa, o NOS Alive (Oeiras), Primavera Sound (Porto, que já anunciou sua edição para 2022) ou o Super Bock Super Rock (Sesimbra), que dependem de uma determinada logística e/ou de aspectos internacionais, possibilitou um interesse maior em festivais de menor dimensão e indoor, não tão dependentes de uma enorme bilheteria e que estão a ocorrer. O Festival A Porta (na cidade de Leiria) e o Festival Artes à Vila (na vila da Batalha), que contará com as atuações de Filipe Sambado, Benjamim e JP Simões, entre outros, representam alguns dos momentos especiais da temporada festivaleira de Portugal. “São duas iniciativas muito interessantes. Destaco a transversalidade cultural do Festival A Porta, que vai buscar elementos às várias gerações e recordo que há dois anos os First Breath After Coma (banda de Leiria) tocaram lá durante 24 horas. O Festival Artes à Vila integra as raízes da música portuguesa e coloca-as em lugares onde não estamos habituados a escutá-la (o evento decorre no Mosteiro da Batalha). Portanto, nós temos muito boas ideias de festivais e não foi por causa da pandemia que apareceram, porque elas já existiam antes”, explica Ricardo Bramão, presidente da Aporfest.
No que respeita à presente “fome de concertos” do público, que resulta em salas cheias, Bramão demonstra alguma cautela: “Ainda não sabemos se essas enchentes acontecem por termos sede de espetáculos ou se é claramente o reconhecimento do produto português. O que defendemos enquanto associação é que o artista português seja cada vez mais apreciado, ou seja, que paguemos para ver uma determinada atuação do nosso agrado. O nosso trabalho vai demorar muitos anos, mas o panorama está a mudar. A Aporfest quer que o público valorize da mesma forma o produto nacional e internacional. Considero que a valorização tem de partir do artista, do promotor e do público. Acredito que mais bandas portuguesas irão estar acessíveis para os espectadores”, conclui Bramão.
Futuro da música portuguesa
“Temos de arranjar outras formas de existir e crescer para além das apresentações ao vivo. Não podemos ficar novamente nesta situação aflitiva perante o aparecimento de uma nova pandemia. Mas isso é um problema que deve ser resolvido à escala mundial, embora em Portugal a situação seja ainda mais grave devido ao reduzido tamanho do nosso mercado, aliado a dificuldades crônicas de exportação da nossa cultura. O micromercado português é incapaz de alimentar muitas bocas com receitas de streaming, por exemplo. Embora existam, são poucos os que conseguem pagar estruturas com vendas online de música. A pandemia teve efeitos nefastos na indústria, mas os problemas estruturais e os desafios já existiam. Temos muitas reflexões a fazer e não nos podemos esquecer de tudo, assim que o mercado dos shows voltar á velocidade de cruzeiro”, defende Pedro Valente.
Em relação ao panorama musical português do futuro, Manuel Molarinho apresenta igualmente o seu ponto de vista: “Sinto que o online não funcionou porque os músicos alimentam-se da audiência e num país como Portugal vão sempre existir respostas camarárias (das prefeituras). Para além disso, o atual modelo coaduna-se melhor com a música ambiental, o cantautor ou o jazz clássico e menos para a pista de dança, o mosh e o suor em conjunto. Acredito que futuramente haja uma preocupação mais visual com os shows e vão haver algumas ações nesse sentido. A adaptação poderá passar por um cuidado superior com a cenografia, cinematografia e teatralidade dos espetáculos”. Molarinho acredita também que poderão existir “Iniciativas menores e exclusivas, para amigos, que permitam uma proximidade maior e em segurança”, mas sublinha que, em função do grau de incerteza, “ainda é cedo para falar”.
De acordo com Gonçalo Riscado existem vários fatores importantes no horizonte: “Artisticamente, no cenário nacional e não só, está por avaliar o impacto desta parada em termos de novos criadores, novas bandas, projetos que terminaram e a consequência deste fenômeno na diversidade da oferta, bem como o que se pode ter perdido em aspectos geracionais, tema que nos preocupa e parece ser relevante. Depois, impõe-se a questão da viabilidade dos espaços, que dependerá do impacto da prevista crise econômica pós-pandemia e do processo de recuperação”.
Adicionalmente, Riscado sustenta que vai levar algum tempo até que a circulação internacional de artistas tenha a expressão que tinha antes da pandemia. “Tudo indica que o foco estará mais colocado em artistas locais nos primeiros meses e anos de funcionamento, mas depois será possível recuperar o trabalho de programação e circulação. A garantia de uma boa divulgação da música e dos artistas passa, primeiramente, por continuar a investir para que os processos criativos não parem e assegurar que todas as estruturas base do ecossistema estão protegidas quando for possível voltarem a funcionar”, conclui.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui. A foto que abre o texto é de Vera Marmelo, registro do show “meia casa” de Jónatas Pires no Teatro Maria Matos, em Lisboa, em junho de 2021.