por Luciano Ferreira
“My Secret World” é o título de uma canção da banda escocesa The Golden Dawn, uma das muitas do selo Sarah Records, e também de um documentário sobre a gravadora de Bristol, lançado em 2014. Foi dirigido e produzido por Lucy Dawkins num período de quatro anos. É um documentário feito por fã e para os fãs desta cultuada gravadora britânica, e isso em nada diminui o material apresentado, seja como registro e resgate histórico, seja na qualidade do conteúdo. Apresenta uma edição dinâmica e utilização de recursos gráficos que casam perfeitamente com as ideias do selo, mostrando variados locais de Bristol, berço do trip-hop, e também cidade onde a gravadora esteve sediada durante sua existência (1987/1995).
Claire Wadd e Matt Haynes, os fundadores do selo, contam em detalhes seu envolvimento apaixonado com a música e os fanzines, comentam sobre bandas e canções, relembram o primeiro encontro que deu início à amizade, a relação e, na sequência, a gravadora, que desde o princípio buscou se diferenciar em tudo dos outros selos, principalmente em relação aos aspectos estéticos de seus lançamentos, controlados de forma quase ditatorial, mas também muito passional e romântica.
A escolha de um nome feminino e a maneira totalmente pessoal como administravam o selo e até como contatavam e contratavam as bandas, colocando a música em primeiro lugar, são exemplos do diferencial da Sarah. Não só isso, seus fundadores assumiam uma postura política que buscava combater o machismo e o sexismo no mundo da música e na sociedade, se posicionavam contra o governo de Margaret Thatcher, contra as práticas de exploração capitalistas, inclusive o consumismo na indústria da música. Mais, buscavam se aproximar dos fãs, respondendo de próprio punho as cartas que recebiam. Tinham até mesmo uma política diferenciada em relação ao valor cobrado pelos discos.
Recheado de muitas imagens e cenas da época, shows e videoclipes, o documentário traz várias entrevistas com músicos, bandas e críticos musicais (Alexis Petridis, do The Guardian e Everett True, da NME e Melody Maker) que relatam a maneira como a grande imprensa musical na época tratava com desdém e até certo ódio qualquer lançamento das bandas do selo. “This isn’t music, this is cancer” (Isso não é música, é um câncer), escreveu um jornalista. O uso do termo Twee, cunhado pelos jornalistas para referirem-se de forma pejorativa às bandas do selo, é rechaçado por todas as bandas, e rende um dos momentos mais esclarecedores do documentário. John Peel, o falecido e também cultuado DJ da radio BBC, ao contrário, é citado como um grande entusiasta e incentivador da música que a Sarah lançou desde o início.
Com cerca de 100 minutos de duração e utilizando recursos gráficos e narrativos dinâmicos, “My Secret World – The Story Of Sarah Records” conta a história da gravadora do primeiro single (“Pristine Christine”, da banda The Sea Urchins) ao último lançamento, a coletânea “There and Back Again Lane”, na qual consta um manifesto escrito por Wadd e Haynes. “My Secret World” desfaz a ideia de que todas as bandas do selo tinham uma sonoridade semelhante e estavam ligadas a uma determinada cena. Há espaço ainda para falar sobre os rumos tomados por seus fundadores após o fim do selo: Haynes fundou a Shinkansen Records e até “herdou” algumas bandas do finado selo; Wadd foi trabalhar para a Vital, uma grande distribuidora independente, que nas suas palavras a fez lembrar que tinha um diploma em Economia.
Em seus momentos finais, o documentário abre um breve espaço para relatos de fãs ao redor do mundo como forma de mostrar a influência e importância do selo para muitas pessoas – muitas imagens usadas na produção foram cedidas por eles. Por sinal, a ilustre presença de um desses fãs, o guitarrista Jacob Graham, da banda norte-americana The Drums, acontece ao longo de todo o filme. É dele uma das frases mais fortes: “É a gravadora mais próxima da perfeição que conheço”. O próprio Haynes avalia que a gravadora nos dias atuais tem um alcance que jamais teve durante a sua existência: “Creio que a Sarah hoje é maior do que foi em sua época”.
Numa época em que não havia internet, os fanzines eram uma das formas bastantes utilizadas para divulgação de bandas independentes, e foi a partir deles que a Sarah Records surgiu e deu ao mundo tantas bandas e exemplos de possibilidades diferentes das usuais. A importância dos fanzines para o surgimento da gravadora é outro assunto abordado. Fica claro que foi através de seus fanzines feitos de forma artesanal e impresso em máquinas de xerox (o próprio Scream and Yell surgiu dessa forma) que Wadd e que Haynes começaram a lançar os famosos flexidiscs, que geralmente eram colados na capa da publicação. Mesmo já com a gravadora, o casal continuou lançando fanzines, que passaram a fazer parte do catálogo de lançamentos da gravadora. “Um fanzine bem escrito deveria ter o mesmo efeito que escutar um single de 7”. Ler dez páginas de um fanzine deveria fazer sentir o mesmo que escutar uma canção pop de três minutos. Essa era nossa ideia”.
No fim, a sensação é de que “My Secret World” tem um intuito claro desde o início: fazer uma homenagem à gravadora, merecida e necessária, mas preso a sua premissa inicial, o que não o diminui enquanto relato, mas em abrangência. Uma das questões que levanta de forma subjetiva é: Seria possível uma gravadora como romântica como Sarah Records nos dias de hoje?
– Luciano Ferreira é editor e redator na empresa Urge :: A Arte nos conforta e colabora com o Scream & Yell.