entrevista por Luiz Mazetto
Com pouco mais de 15 anos de história, a The Budos Band já possui uma discografia de respeito, com um total de seis full-lengths, todos lançados pelo já icônico selo Daptone Records, de Nova York, conhecido por ser o lar de grandes nomes históricos e contemporâneos da soul music como Charles Bradley, Sharon Jones, Naomi Shelton e Menahan Street Band.
Um dos principais diferenciais da Budos, que conta com nada menos do que 9 integrantes em sua formação, é justamente a forma como misturam um verdadeiro caldeirão de influências, que vão do soul e do afrobeat ao rock psicodélico e ao início do heavy metal. O resultado é a criação de um universo musical muito próprio, em que esses diferentes sons se fundem de maneira orgânica e imperceptível. Em seus dois mais recentes trabalhos, “V” (2019) e “Long in the Tooth” (2020), esse gosto dos músicos pelo rock/metal fica ainda mais evidente.
Na entrevista abaixo, feita por videochamada no último mês de janeiro, o extremamente divertido baterista Brian Profilio, que é professor de artes e também responsável por algumas das capas e cartazes de shows da Budos, fala sobre a vida na pandemia, revela que a banda nunca chegou a tocar junta as músicas do último disco, conta como foi gravar o cover de “Changes”, do Black Sabbath, com Charles Bradley, comenta sobre como foi tocar antes do Slayer em um festival e revela quais discos mudaram a sua vida, entre muitas outras coisas.
Como tem sido dar aulas online, de forma remota?
É como se eu estivesse recebendo 50% do que deveria estar recebendo das crianças, é mais ou menos assim. Quer dizer, é frustrante, não é tão recompensador.
E os seus alunos sabem sobre o seu trabalho como músico?
Não realmente. Alguns alunos sabem, mas eu não conto para eles. Eles descobrem de alguma maneira – não sei, outros professores podem contar para eles. Mas eu nunca falo para eles, tento manter os dois mundos separados. Mas mesmo quando eles descobrem, não é algo tão importante. Tipo, eles não escutam a Budos Band ou algo assim. Eles podem falar algo como “Aí sim, o Mr. P é um rockstar”, mas eles não sabem nada realmente sobre. Eles não se importam com a Budos Band, eles só se importam com o disco mais novo de hip-hop que acaba de ser lançado ou algo do tipo. A minha música soa apenas como “Ah, é legal, é divertido”. Mas eles não curtem mesmo. Tipo, jovens de 15 anos não vão gostar disso (risos).
O último discos da Budos Band, “Long in the Tooth” (2020), foi lançado há cerca de cinco meses. Como foi a experiência de lançar um disco durante a pandemia?
Ahh, é legal que nós temos música sendo lançada, porque recebemos uma ótima recepção ao disco. As pessoas curtiram bastante – então tivemos uma ótima reação ao lançamento. Mas, quer dizer, teria sido ótimo poder cair na estrada por alguns dias. Não fazemos mais turnês grandes, de qualquer forma, fazemos um fim de semana aqui, outro fim de semana ali, coisas menores assim. Mas teria sido legal poder tocar alguns finais de semana, passar por alguns festivais – isso teria sido legal. A data mais próxima que temos atualmente para um show é em agosto, no Colorado, em uma cidade chamada Telluride. Essa é a data possível mais perto que temos. Vi algumas gravações da Europa no verão passado, em que eles estavam fazendo alguns eventos ao ar livre com um grande círculo no gramado, isso é algo legal. O lance mais difícil para nós seria viajar. Eu não quero entrar num avião, não quero ficar voando por aí.
E vocês chegaram a tocar alguma dessas músicas do disco novo ao vivo antes do lançamento do álbum?
Não, não. E essa é a razão para isso: o disco foi gravado de uma maneira estranha. Normalmente, quando saímos em turnê, temos três ou quatro músicas novas em que estamos trabalhando e então as tocamos nos shows. Assim, quando chega a hora de gravá-las no estúdio, nós já as conhecemos, porque elas já estavam sendo tocadas. E então escrevemos mais algumas e é meio que um processo natural, orgânico. Esse disco é estranho porque originalmente seria usado em um disco de hip-hop. Tipo, a razão pela qual entramos no estúdio foi para um grupo de hip-hop, que ia trabalhar conosco. Então era apenas bateria, baixo, guitarra e teclado – e é isso, nós quatro. E nós fomos e gravamos o disco inteiro, sem metais nem nada. E então pensamos que esse lance de hip-hop não ia dar certo. Então a nossa sessão de metais entrou em estúdio um ou dois meses depois e colocou os metais em todas as músicas. E eu nem estava lá quando eles gravaram os metais, em nenhum momento. Então foram meio que duas sessões de gravação diferentes. Por isso, quando o Tom (Brenneck), nosso guitarrista e que cuida de toda a parte de produção, nos enviou as músicas e falou “Escutem aí!”, eu fiquei pensando “Que músicas são essas? Eu nem conheço essas músicas” (risos). Foi estranho. Mas então não, eu nunca toquei nenhuma dessas músicas do disco ao vivo. Não sei se consegue ver aqui, mas tem uma bateria aqui no fundo e eu tenho escutado as músicas no iTunes e tentado tocá-las. A boa notícia é que, como eu pensei inicialmente que eu alguém iria fazer rimas em cima das músicas, eu meio que peguei leve em muitas das faixas. Então elas não são tão difíceis de tocar na bateria. Eu poderia tocá-las se precisasse, tenho ensaiado elas há algumas semanas, não seria difícil, mas nós nunca nem as tocamos ao vivo, então definitivamente é algo estranho.
E você pensa que o fato de estarem juntos há tanto tempo, pouco mais de 15 anos, contribuiu para que o disco soasse como algo unificado, sem soar estranho ou algo que foi feito depois, uma vez que foram duas gravações separadas? Porque, pelo menos para mim, não parece em nenhum momento que o disco foi feito desta forma.
É, você tem razão, cara. Honestamente, eu fiquei chocado. Porque quando o pessoal falou “Ok, vamos chamar os caras para gravarem os metais”, eu meio que pensei “Sério? Em cima disso aí? Tá bom”. E então quando o álbum ficou pronto, foi algo muito louco, tipo “Nós poderíamos fazer outro disco assim, muito facilmente”. Porque normalmente são 9 caras lá, aí temos que preparar a gravação para isso, temos que isolar os metais, fazer isso, fazer aquilo, é todo um lance. E então como você tem 9 caras lá, também é preciso pensar: “Quem vai beber? Quem está fazendo isso? Quem vai para uma festa?” – é muito difícil que todos estejam na mesma página. E então quando começamos a tocar, alguém fala “Vamos fazer essa parte de novo” ou “Vamos tirar essa parte” e apenas leva todo o tempo do mundo para escrever as músicas. Mas esse disco foram apenas quatro caras, apenas nós quatro. Foi uma pequena festa, mas não como é normalmente quando temos 9 pessoas. Por isso, acabamos gravando essas 11 músicas em algo como um final de semana. E se você olhar para a duração das músicas, elas são curtas, devem ter 2 minutos e meio cada, em média, elas são rápidas. Porque, como disse antes, nós pensamos algo como: “Vamos apenas dar a esses rappers o que eles precisam porque eles provavelmente vão cortar algumas partes, colocar um monte de produção em cima. Então vamos dar apenas alguns fragmentos e deixar que eles sigam em frente”. Mas então tudo mudou e foi decidido que iríamos transformar todas essas músicas que fizemos em um disco de verdade da Budos – e foi algo como “Ok, isso também é legal, eu acho (risos)”. Mas você tem razão, o disco funcionou – é meio estranho.
É um pouco estranho esse fato de o disco ter sido feito tendo em mente vocais hip hop, porque o produto final acabou um disco bem dark, soa meio que uma continuação perfeita do seu álbum anterior, “V” (2019).
Obrigado. Esse é apenas o jeito que nós tocamos. Tipo, mesmo que formos fazer uma música hip-hop ou algo assim, ainda vai ter aquele som dark. Tudo está sempre em escala menor, tudo é meio taciturno, é apenas meio como as coisas são. Seria muito estranho nos ouvir tocar músicas alegres e com batidas mais animadas, apenas não funcionaria. Então acho que esse é meio que o nosso som, nossa marca registrada, neste momento, sempre tocando um lance mais para baixo, melancólico. Quero dizer, as músicas são dark, mas ainda são meio divertidas, sabe? É a mistura que buscamos. Porque nós não temos um vocalista, então as pessoas vêm aos shows e não querem apenas nos ouvir sendo apenas melancólicos, elas também querem dançar e se divertir. É engraçado, porque as músicas são meio densas e dark, mas a vibração é alta e divertida, é energética – acertamos um ponto estranho com isso, que eu não entendo completamente.
Não sei se você concorda, mas pelo menos olhando de fora, a obra de vocês parece dividida em duas fases: a primeira com os discos “I” (2005), “II” (2007) e “III” (2010), que seguem uma linha mais tradicional de big band. Enquanto, a partir de 2014, com o “Burnt Offering” (2014), e, mais especificamente com os dois últimos discos (“V” e “Long in the Tooth”, de 2019 e 2020, respectivamente), a banda passou a ficar ainda mais dark/pesada – com a guitarra tendo mais destaque e até a arte dos discos agora trazendo o preto como cor principal. Isso foi uma mudança consciente, no sentido de que vocês pararam e pensaram para fazer essa mudança de direcionamento?
É, foi muito natural. Não foi como se sentássemos e disséssemos (nesse momento, Brian faz uma voz engraçada): “Ok, é isso que vamos fazer nos três primeiros discos…”. Nos três primeiros álbuns, nós estávamos… isso foi há quase 20 anos – foi em 2004, há cerca de 15 anos. Então, enquanto banda, nós estávamos curtindo muito afrobeat e música etíope e você pode ouvir isso no nosso som. E havia meio que uma cena afrobeat em Nova York, havia muitas bandas de afrobeat, era uma época diferente. Nós íamos fazer shows e você tinha outras três, quatro, cinco bandas de afrobeat, seja tocando conosco ou indo nos ver tocar. Era uma cena muito diferente, muito vibrante por um tempo. E acho que o que aconteceu foi que essa cena meio que apenas se dissolveu lentamente, não sei o que aconteceu. Então por volta de 2007, 2008… E outra coisa que aconteceu foi que começamos a fazer muito mais shows. E estar na estrada é tipo, você tem longas viagens com a banda, você fica sabendo o que cada um está ouvindo. Sei que todos nós crescemos ouvindo rock basicamente, e então passamos a curtir afrobeat por volta de 1998, 1999, mas então por volta de 2005, 2006, meio que começamos a voltar aos nossos velhos hábitos. Queríamos ouvir AC/DC na van, beber um monte de cerveja. E a cena afrobeat tinha acabado neste momento, então nós estávamos soltos na estrada e não queria apenas sentar e tocar “tiqui tiqui tá, tiqui tiqui tá” por 20 minutos. Quero começar a tocar mais pesado, e então foi meio que quando todos pegaram seus instrumentos e, em vez de ser apenas uma bolha afrobeat ou uma bolha funk, começamos a beber muito mais e a tocar mais pesado – apenas mais alto e um pouco mais desleixado. E foi apenas uma conexão melhor com o público, então os nossos shows ficaram melhores e nós apenas continuamos levando essas grandes festas para o palco – foi muito mais fácil. Para mim, como baterista, é muito mais fácil tocar algo mais rock, meio pesado, do que sentar e ficar tentando tocar umas levadas loucas sincopadas de afrobeat. E acho que a seção rítmica é onde as coisas mudaram, eu e o baixista. Porque ele começou a tocar mais e mais alto e a simplificar suas linhas de baixo, e então a guitarra acompanhou. Mas se você escutar os metais, eles ainda estão meio que fazendo a mesma coisa. Os metais não mudaram tanto, foi principalmente uma mudança na seção rítmica. Há menos percussão, temos menos bongôs, congas nas gravações, menos cowbell, menos xequerê – na verdade, não há mais xequerê e cowbell. Mas nos dois primeiros discos nós tínhamos cinco caras tocando percussão. Agora talvez a gente tenha uma pessoa, duas no máximo – uma pandeireta, e é isso. Não é como ter uma seção completa de percussão ao fundo, tocando em cima de tudo. Porque isso também deixou a seção rítmica mais firme. Como baterista, eu meio que precisava ficar firme para manter os ritmos, para manter todos os músicos de percussão juntos. Mas uma vez que eles começaram a ficar no passado, eu pude ficar muito mais solto como baterista, me abrir muito mais. E penso que isso… nunca foi uma mudança premeditada, acho que muito tem a ver com fazer shows, estar na estrada e tocar com bandas de rock, ver como eles fazem as coisas, foi algo como “Vamos trazer um pouco dessa energia para o palco” – foi mais ou menos como aconteceu.
E houve algum show específico que vocês viram que teve um impacto maior em vocês e que os fez pensar em tentar novas coisas?
Essa é uma boa pergunta. Não todos nós, mas metade da banda ama metal. Há um lugar no Brooklyn, em Nova York, chamado Saint Vitus e nós costumávamos ir lá com uma certa frequência para ver shows de metal. O nosso baixista está em uma banda de metal, e eu, o trompetista e o baixista também formamos uma banda de metal. Estávamos apenas nos envolvendo, indo em muitos shows e era uma energia apenas diferente, mais intensa. Não consigo pensar em um show específico assim de cabeça, mas há uma grande diferença em termos de vibração nesses shows, quando você faz a comparação entre ir assistir àquela banda que falei, Antibalas, que é uma banda de afrobeat, e ir assistir uma banda de metal. Então apenas continuamos nos movendo. E o lance é que nós nunca quisemos que a Budos virasse metal, sabe? Nós não somos uma banda de metal, nós nunca seremos uma banda de metal. Eu não vou tocar com pedal duplo, fazer blast beats, isso nunca vai acontecer. Mas nós buscamos trazer essa energia e essa atitude. Quanto a shows específicos, não consigo pensar em um que tenha sido… Mas apenas estar na estrada e ver outras bandas, como bandas de rock e tudo mais. E essa é uma outra coisa que aconteceu também: em algum momento nós decidimos que não queríamos mais bandas de funk ou afrobeat abrindo os nossos shows. Porque nós vamos para uma cidade e então, sei lá, os The Funkin Beats vão abrir o show e você tem uma banda com 10 integrantes, com uma seção de metais, e eu penso “Porra, cara! Essas pessoas já vão ouvir a nossa banda de 10 pessoas com uma seção de metais. Não quero ficar sentado por uma hora ouvindo uma banda instrumental do nosso estilo. Tem uma banda punk ou de garage rock na cidade? Chamem eles para abrir pra gente”. Então nós começamos a fazer isso, a chamar bandas punk e de garage rock – não bandas de metal, mas bandas de rock – e isso foi ótimo. Porque o público ficava mais animado, mesmo que não conhecesse essa banda, porque levar um monte de riffs na cara é muito diferente de ficar ouvindo cinco pessoas tocando trompete por uma hora e então ouvir “E agora com vocês a Budos Band! Panãnãnã, panãnãã” (nesse momento Brian faz uma voz engraçada imitando instrumentos de sopro). Era horrível, odiava isso. Então esse elemento também mudou. E então começaram a nos convidar para coisas como o Psycho Las Vegas. Nós fomos convidados para tocar nesse festival (nota: a banda tocou na edição de 2016) e o lineup tinha Blue Oyster Cult, Alice Cooper, Boris, High on Fire, e a gente! Isso foi legal, foi divertido. O Converge também tocou. Todas essas bandas eram intensas. O Uncle Acid and The Deadbeats também tocou, eles foram ótimos. E foi tipo “E agora a Budos Band”. Foi legal porque em um festival como esse, você obviamente vai ter fãs de metal, basicamente. E não estou dizendo que eles nos amaram, mas nós nos encaixamos o suficiente para que as pessoas digam “Isso é legal”. Algumas pessoas realmente curtiram, ali na frente do palco, realmente animados, mas a maioria ficou mais para o fundo, tranquilo, bebendo uma cerveja. Eles não estavam dançando, não me entenda mal, ninguém dançou, mas as pessoas estavam meio que curtindo. Um pequeno respiro entre as bandas mais pesadas, então é legal. Então nós ficamos sabendo: “Vocês vão tocar em um festival de metal neste final de semana e no próximo vão tocar em um festival de reggae”. Foi tipo “O que?” (risos). Sem brincadeira, cara (risos).
Sim, eu entendo os fãs de metal gostarem da banda. Aliás, vi que o Steve Von Till, do Neurosis, citou o seu último disco entre os melhores lançamentos de 2020.
É, eu também vi, nos mandaram isso! O cara do Neurosis, isso foi incrível. E também o Dave Lombardo, do Slayer, nós o conhecemos e ele adora a nossa banda. É tipo “Jesus, cara. Qual elogio melhor como baterista posso receber? É tipo inacreditável”. Isso aconteceu quando tocamos no Texas, num festival chamado Fun Fun Fun Fest (na edição de 2011). Havia vários palcos diferentes; você tinha o Orange Stage, que tinha, sei lá, música pop, você tinha o Blue Stage, que era focado em música eletrônica, o Green Stage, e então você tinha o Black Stage. E foi tipo “Ei, caras, vocês vão tocar no Black Stage”. E a gente “Sério?” E quem está no Black Stage? A porra do Slayer. Eu fiquei “O que? A gente vai tocar antes do Slayer? Qual o problema de vocês? Nós vamos ser mortos”. Mas era a gente, um comediante chamado Brian Posehn e depois o Slayer. E eu fiquei pensando “Foi ótimo terem colocado esse comediante aí, porque ele meio que quebrou o gelo o bastante”. Mas acho que esse foi o show mais assustador que eu já toquei. O Dave Lombardo estava lá na cabine de mixagem apenas meio que olhando para a gente e eu estava atrás da bateria pensando “Como assim?”. Foi um ótimo dia, muito divertido. Ele veio até nós e foi super legal conosco. Eu estava como “Jesus, cara, isso foi legal, ufa! (risos)”.
Como estamos no território do metal, queria falar um pouco sobre o cover de “Changes”, do Black Sabbath, que vocês gravaram há alguns anos com o Charles Bradley – que ficou incrível e teve uma grande repercussão. Por isso, queria saber como surgiu essa ideia e o que você achou do resultado final?
Bom, eu lembro quando a ideia surgiu, nós estávamos em turnê com o Charles. Fizemos muitas turnês com o Charles, porque metade da banda dele era a nossa banda, então era mais fácil, menos pessoas. Então se tivesse dois ou três membros da Budos com o Charles no palco e outros dois ou três caras, então você tinha a banda inteira do Charles. Então nós só precisávamos levar tipo mais quatro ou cinco pessoas e estava tudo certo. E ele é apenas ótimo. É engraçado porque no início ele estava abrindo pra gente e depois nós que estávamos abrindo para ele. Mas nós estávamos na “sala verde”, apenas escutando o “Vol 4” (1972), do Black Sabbath, e então começa a tocar “Changes” e leva a sala inteira abaixo. E então eu falei: “Ei Charles, o que você acha dessa música?” e acho que ele falou algo como “Ah, é linda” e tudo mais. E então pensamos “Vamos fazer isso”. No disco (“Changes”, de Charles Bradley), você tem o cover de “Changes” e também “Ain´t It a Sin”, que é uma música que eu escrevi para o Charles e é um lance um pouco mais animado. E o Tommy, nosso guitarrista, falou “Cara, vamos gravar essa música (“Ain´t It a Sin”)” e enquanto estávamos conversando, nós falamos “Vamos tentar ‘Changes’ também e ver como ela sai”. E acabou sendo algo meio incrível. Lembro que o Mike Deller, nosso tecladista, sentou-se no órgão B3, da Hammond, e apenas começou a tocar os acordes e tudo soou incrível e todo mundo ficou “Puta que pariu, isso é legal”. Então nós fizemos dois takes da música e então o Charles chegou depois e apenas cantou e foi algo “Uau, isso é incrível” – realmente funcionou. E foi apenas meio que uma ideia que surgiu de ficarmos sentados na “sala verde”.
E vocês já pensaram em gravar um disco de covers de bandas de rock e metal com diferentes vocalistas?
Não, não. Vocalistas são algo difícil. Nós tentamos fazer covers de músicas do Deep Purple, do Vanilla Fudge. Fizemos algumas músicas de rock dos anos 1970, com os metais fazendo a linha, a melodia dos vocais, e isso meio que funciona. Mas para nós, trazer um vocalista… nós nunca nem pensamos em fazer isso. Pode acontecer um dia, quem sabe? De verdade, poderia ser legal, estou aberto a isso. Mas nunca pensamos nisso não.
Vocês tocaram no Brasil há quase 10 anos, em 2012. Quais suas lembranças desses shows em São Paulo e da viagem pela América do Sul?
Acho que tocamos aí em agosto ou setembro de 2012. Ahh, fiquei apenas chocado com o tamanho da cidade. Tipo, Nova York é muito perto da minha casa, mas ir para o Brasil e ver a cidade foi tipo “Uau, isso é selvagem”. Lembro de estarmos na rodovia (nota: provavelmente aqui ele se refere a uma das Marginais que cortam São Paulo) e ver as favelas e tudo mais e pensar “Isso é pesado, cara”. E nós tínhamos um cara com a gente, não me lembro do nome dele, ele estava meio que cuidando da gente. E falou tipo “Não vão para esse lado, para aquele lado, e nem para aquele outro. E se tiver um jogo de futebol, não vão para lá também”. E eu apenas pensei “Putz, que merda, cara. Vou ficar bebendo aqui no hotel” (risos). E nós tocamos em um tipo de mostra de arte ou algo assim (nota: os shows da banda em São Paulo aconteceram no SESC Pompeia). E eu lembro que saímos do palco depois do nosso set e o público começou a gritar um canto no estilo de torcida de futebol, tipo “Ole, ole, ole, ole” e foi alto, muito alto. E no final eles cantavam “Budos, Budos”. Eu lembro de pensar “Puta que pariu, isso é muito louco”. Eu nunca tinha escutado algo assim antes. E era muito alto e muito intenso. Então voltamos para o palco. A plateia estava animada, nós definitivamente sentimos o carinho, foi legal. Mas só ficamos aí tipo dois dias, acho que fizemos apenas dois shows. Foi apenas legal o quanto a cidade era um pouco selvagem. Manhattan tinha esse mesmo clima quando eu era jovem, nos anos 1980 e início dos 1990. Eu costumava andar de skate e ia para Manhattan fazer isso. E a cidade tinha um clima mais duro também. Havia alguns bairros que eram meio assustadores e um pouco estranhos, apenas tinham um clima assim. Na verdade, agora, nesse cenário pós-pandêmico, Manhattan está voltando um pouco a isso (risos). Mas a cidade estava tão limpa depois do 11 de Setembro. Tipo, a cidade ficou muito limpa e entediante. E quando fui aí para o Brasil, foi como “Ah, aqui parece uma Nova York das antigas”, com aquele clima meio louco de ficar ligado o tempo todo, que Manhattan costumava ter. Mas foi muito legal ir para aí, adorei mesmo, me diverti muito.
E você conhece algum artista brasileiro?
Bandas? Ahh, conheço aqueles artistas de street art, Os Gêmeos. Mas não sei se conheço alguma banda. Quer dizer, o Sepultura, né (risos)?
Por favor, me diga três discos que mudaram a sua vida e por que eles fizeram isso.
Ahh, três discos. Eu sei que vou dizer três agora e amanhã cedo vou acordar e pensar “Não acredito que não falei aquele disco!” (risos). Honestamente, o primeiro disco que me vem à cabeça é o “South of Heaven” (1988), do Slayer. Esse disco realmente… Antes disso, eu escutava as bandas de metal ou hard rock da época, mas esse disco apenas meio que… Eu ainda amo esse disco. Sem dúvidas, esse é um dos meus discos favoritos, de longe. Então diria o “South of Heaven” com certeza, é incrível. As baterias no álbum são apenas fenomenais, é tipo uma aula magna em como tocar bateria para metal. A produção é incrível, as músicas, os ritmos – tipo, é thrash, mas você ainda tem muito peso no disco, é um álbum pesado. Adoro esse disco, ele apenas tem um clima ótimo. Então esse é um. Hmm, merda. É engraçado. Sinto que se olhar para o que eu mais escuto pode surgir algo. Ahh, é uma pergunta difícil, né? Três discos. Acho que o “Live After Death” (1985), do Iron Maiden, teria de ser um deles. Eu tinha 10 anos quando o escutei, provavelmente foi a minha primeira incursão no mundo do metal e algo que definitivamente ajudou a abrir todo um caminho. Então esse com certeza seria um disco que mudou a minha vida, um dos meus favoritos de todos os tempos. Sinto que o terceiro não deveria ser um disco de metal. Deixe-me pensar. Há muitos discos bons ali na beirada, mas você está falando de discos que mudaram a minha perspectiva musical, que quase me fizeram pegar um instrumento. Teria de ser algo antigo. Apesar que… essa é uma escolha estranha, mas eu apenas amo tanto esse disco. Não sei se conhece uma banda da Suécia chamada Witchcraft, mas o disco auto-intitulado deles, acho que foi lançado em 2004 (nota: o disco realmente foi lançado em 2004), é chamado apenas de “Witchcraft”. Não sei como a banda está hoje, mas esse primeiro disco deles apenas me traz um clima. E esse foi um dos discos que me trouxeram de volta quando eu estava muito focado no lance do funk e do afrobeat e apenas tentando tocar bateria daquele jeito. E então eu ouvi o disco do Witchcraft e ele meio que me lembrou sobre a razão pela qual eu amo tanto metal. E meio que me trouxe de volta ao metal, após o meu pequeno salto para o funk, o afrobeat e coisas desse tipo. Acho que isso foi por volta de 2004 ou 2005. Algumas pessoas podem olhar para esse disco e pensar “É sério?”, mas ele me levou para um lugar. Ele foi como um pequeno veículo, me levando de volta a um lugar muito confortável em que eu me encontrava musicalmente quando era adolescente. Foi quase como um disco do Black Sabbath, tipo o sentimento que você tem ao ouvir os primeiros discos do Black Sabbath. Esse disco tinha esse mesmo tipo de sentimento nele. E me lembrou sobre o porquê eu amo metal.
Aliás, você conhece o Graveyard, também da Suécia? Eles também são muito bons, me lembrei deles agora que você falou do Witchcraft – eles já tocaram no Brasil, inclusive.
Ahh sim, eles são uma banda legal. Nós os conhecemos na Noruega, quando estávamos tocando em um festival. Eles estavam na tenda ao lado da nossa. Na verdade, essa é uma história engraçada. Nós estávamos em uma tenda, era tipo uma pequena “sala verde”, tínhamos cervejas, estávamos conversando. Mas as paredes da nossa tenda estavam sendo empurradas para dentro, dos dois lados. E nós pensamos “O que? Quem são essas bandas?”. Então nós saímos e eu fui até uma tenda para espiar, apenas queria saber quem era. E era o Graveyard, aí eu falei “Ei caras, tudo bem?”, e eles apenas foram legais logo de cara, tipo “Entre aí, toma uma cerveja com a gente”, apenas caras legais. Conhecemos a banda inteira, acabamos saindo com eles por dois dias, viraram tipo nossos amigos. Eles nos viram tocar, nós fomos ver eles tocar. E no outro lado da parede da tenda, que também estava cedendo para dentro, nós pensamos “Quem são?”. E então fomos lá e era o Guided by Voices (risos). Tipo cinco caras mais velhos lá com cabelo grisalho, um empurrando o outro. Eu fiquei “O que? Quem são esses caras?”. E então o nosso tour manager falou “Ah, é o Guided by Voices” (risos). Eles estavam em cinco e tinham mais cerveja do que todos nós juntos, eles tinham tipo uma parede de cerveja (risos). Vi todas aquelas bebidas na mesa e pensei “Esses caras são loucos”, era tipo três horas da tarde (risos). Foi engraçado, foi uma turnê divertida.
Essas são as últimas perguntas. Além da sua carreira musical, você também possui uma carreira incrível como artista visual, tendo feito capas de discos e cartazes de shows da banda. O que veio antes na sua vida, a arte visual ou a música? E também gostaria de saber se você se interessou em trabalhar com artes visuais por causa de capas de discos – você mencionou o Iron Maiden há pouco?
Ahh sim, definitivamente. Comecei a desenhar quando estava na pré-escola ou algo assim, era muito pequeno. Eu desenhava o Kiss nessa época, no jardim da infância ou no primeiro ano, porque eu tinha um disco do Kiss – na verdade, eram os discos solos deles. Tinha alguns deles, não me lembro quais, acho que tinha os álbuns do Gene (Simmons) e do Peter Criss. De qualquer forma, eu desenhava a maquiagem do Kiss. Mas então, acho que quando tinha 8 ou 9 anos de idade, fui na Toys R Us, que é uma loja de brinquedos aqui nos EUA, e eles tinham os livros do “Dungeons and Dragons”. Eles tinham uma seção completa com esses livros, lembro de olhar para as capas e ficar impressionado. E eu não sabia o que era, então era algo como “O que é isso? É um jogo? Eu não sei”. Eles também tinham miniaturas e outras coisas. Então eu mergulhei de verdade nesse mundo – e ainda estou nele. Ainda jogo “Dungeons and Dragons”, ainda tenho miniaturas, não é algo que foi embora. E isso aconteceu quando eu tinha entre 8 e 9 anos de idade. E aquelas artes, ver os livros de “Dungeons and Dragons” foi algo que apenas me iluminou, comecei a copiar tudo daquilo. E a partir dali passei a curtir todos os quadrinhos, tipo as HQs do Conan e todo esse lance de fantasia – Frank Frazetta, a revista “Heavy Metal”, todas essas coisas. E eu meio que mergulhei bem ali. E foi daí que tirei todas as minhas influências de arte, desse lance de fantasia mais dark. E até hoje ainda é o que sigo, a maior parte das artes que faço é ligada a esse mundo de fantasia. Não tenho muito interesse no mundo moderno, tipo moda moderna, tecnologia moderna. Ainda sou inspirado por coisas como “O Senhor dos Anéis”, qualquer coisa nesse estilo de fantasia, apenas adoro isso. A música foi algo que aconteceu bem mais tarde. Só comecei a tocar bateria aos 21 anos. Estava em uma festa, meus amigos estavam comprando instrumentos na época, havia algumas bandas locais na nossa vizinhança. Um cara comprou um baixo, outro comprou uma guitarra, e eles disseram “Você é o baterista”. E eu fiquei “Do que você está falando? Eu não sei tocar bateria”. Então comprei um kit de bateria, comecei a tocar e me apaixonei por isso. Aprendi algumas levadas e fiquei tipo “Eu posso fazer isso”. E eu fiquei louco e apenas comecei a tocar bateria como um lunático depois disso. Eu adorava andar de skate, mas o que rolou foi que machuquei a minha coluna de maneira séria e então não pude mais andar de skate. Mas eu tinha 21 anos, então ainda estava cheio de energia, e em vez de colocá-la no skate, apenas a direcionei para o kit de bateria. E apenas meio que continuei um pouco louco com a bateria. Os dois caras que me fizeram comprar a bateria acabaram parando de tocar. Nenhum deles toca mais, mas eu ainda estou com a bateria (risos). Para mim, a música sempre foi mais uma conexão social, uma forma de me conectar com os meus amigos, de estar junto deles. Para mim, tocar bateria nunca foi realmente uma expressão pessoal. A arte, por exemplo, é 100% uma expressão pessoal para mim, mas a bateria sempre foi mais uma conexão, uma forma de me conectar com os meus amigos. E apenas manter um círculo social juntos, era mais nesse sentido. E mesmo agora, eu não sou um daqueles bateristas que se senta em casa com os pads e o metrônomo. Eu não me importo com a minha técnica pessoal. Eu adoro escutar grandes bateristas, mas não estou tentando ser um deles. Se o meu lance for bom o bastante para manter a banda junta, isso é realmente tudo o que eu quero ser como baterista.
Aliás, você pensa que essa conexão, a amizade, que mencionou há pouco é uma das razões pelas quais a banda continua junta há tanto tempo, ainda tocando bastante e lançando discos relevantes? Você mencionou que esse ponto de conexão social é muito importante para você.
Neste ponto, acho que cresceu para algo além, para uma irmandade. Está muito além de se reunir numa quinta-feira à noite para tocar. Agora é tipo um compromisso fraternal muito sério com esses caras, e penso que a nossa amizade é a razão principal pela qual estamos juntos. A música é… e isso vai soar louco vindo de um músico falando sobre uma banda com muitas pessoas, mas a música não é a coisa mais importante para nós. É poder nos reunir, viajar, curtir, estar na estrada, todas essas experiências. E a música e os shows são ótimos e adoramos isso, mas é quase como se isso se tornasse algo secundário a nós apenas sermos amigos, sabe? Nós nunca brigamos por causa de música, da banda, por dinheiro ou o que vamos colocar na capa do disco. Nós nunca nos envolvemos em nenhum problema assim, todo mundo está sempre de boa com tudo, nós todos meio que entendemos de onde cada um está vindo. E nunca chega a um ponto em que fica feio, o que eu acho que é a razão pela qual estamos juntos há tanto tempo. Porque tenho certeza de que você já ouviu histórias malucas de bandas em que um cara está fora de si e ele precisa que as coisas sejam de um determinado jeito e o outro cara quer que as coisas sejam de outra maneira, e eles não conseguem se decidir. Tipo, isso felizmente nunca acontece com a gente. É sempre algo como “Ah, legal, beleza” ou “Você não quer fazer isso ou não gosta? Tudo bem, sem problemas”. Nunca vira uma questão.
Essa é a última pergunta. Do que você tem mais orgulho nesses pouco mais de 15 anos de carreira com a banda?
Do que eu tenho mais orgulho? Ah, acho que apenas ter um legado. Ter um legado, você pensa no que você deixa para trás. Muitas coisas vão desaparecer, todos nós eventualmente. E é algo como “O que eu vou deixar para trás? De qual parte de mim o mundo vai se lembrar? Isso se forem se lembrar”. E acho que ter essa amizade, que começou como um projeto de quinta-feira à noite e se transformou em uma banda, que é conhecida por várias pessoas em vários lugares. E poder viajar por aí e ter essa série de discos que vão existir por mais tempo do que a gente. Penso que ter algum tipo de legado para deixar para trás. A maior parte de nós na banda temos filhos e, no fim das contas, nós estamos meio que deixando essa música para eles, sabe? Acho que é isso.
Luiz Mazetto é autor dos livros “Nós Somos a Tempestade – Conversas Sobre o Metal Alternativo dos EUA” e “Nós Somos a Tempestade, Vol 2 – Conversas Sobre o Metal Alternativo pelo Mundo”, ambos pela Edições Ideal. Também colabora coma a Vice Brasil, o CVLT Nation e a Loud!