entrevista por João Paulo Barreto
Começa nesta quarta-feira (24/02), em plataforma on line e inteiramente gratuito para todo o país, e segue até a próxima quarta-feira (03/03), a 16ª edição do Panorama Internacional Coisa de Cinema, em Salvador, Bahia. Se estivéssemos em um período fora de uma pandemia, a tradicional mostra teria acontecido em outubro/novembro do ano passado, no Espaço Itaú Glauber Rocha, em, Salvador, com sessão de abertura lotando as três salas (e com a quarta sala sendo liberada, pois teria muita gente). Como sempre aconteceu, após a sessão, um debate riquíssimo e uma festa repleta de sorrisos, boas vibes e música no salão térreo do cine Glauber, antigo Guarani, celebraria mais um ano de cinema brasileiro.
Esse texto pode parecer começar como em uma reminiscência, um lamento, mas o simbolismo de ver aquelas salas lotadas, ano após ano, bate pesado ao perceber que 2020 foi o primeiro que isso não aconteceu desde muito tempo. Mas não é um lamento, esclareço. O Panorama, assim como diversas outros festivais, resiste. Seguindo um novo padrão de normalidade, a mostra se transfere para os espaços virtuais da internet, mas mantém a mesma qualidade em sua seleção de filmes, debates e consonâncias com um pensamento crítico, social e cinematográfico. Principalmente quando a necessidade desse pensamento crítico se torna tão importante neste insano começo de nova década.
Cláudio Marques, co-diretor do festival junto com a cineasta Marília Hughes, observa os desafios das adaptações pelas quais precisaram passar o Panorama em sua versão on line. “Transpor o Panorama para o formato mobilizou outras estratégias e sentidos. Primeiramente, passamos a lidar com um território muito mais amplo. E isso tem tanto um lado positivo quanto desafiador. Se antes o Panorama era um festival para o público baiano, agora ele se torna um evento nacional e pode alcançar pessoas em todo o território nacional, desde que elas tenham computador ou celular e uma boa internet”, afirma Cláudio em relação à ampliação de uma audiência para além da sala de cinema que a edição alcançará.
A seleção de filmes brasileiros que a mostra traz para as Competitivas Nacionais de Curtas e Longas revela uma diversidade de trabalhos realizados durante os últimos meses e aponta um norte para um futuro no qual o cinema feito no Brasil precisará ser ainda mais de resistência. Distante de qualquer clichê, essa afirmação é uma constatação diante dos atentados que essa indústria passou a sofrer de 2019 em diante. Cláudio observa um perfil menos ficcional nos filmes inscritos. “Senti que recebemos menos ficções esse ano. Achamos, ainda, que se trata de um efeito provocado pelo represamento das obras em escala mundial. Produtores e diretores aguardam que voltemos ao “velho anormal”. Temi que já fosse um reflexo da desordem provocada por Bolsonaro, mas creio que sentiremos isso, mais fortemente, a partir do ano que vem”, explica o diretor.
Dentre as ficções selecionadas, destacam-se produções da Bahia, como “Filho de Boi”, de Haroldo Borges e Ernesto Molinero, a contar a história de um garoto e sua relação de encantamento com o circo; “Eu, Empresa”, de Leon Sampaio e Marcus Curvelo, filme reflexo da geração youtuber no qual Curvelo traz seu alter-ego, Joder, para mais uma tentativa de deixar a sina de perdedor para trás; e “Voltei!”, da premiada dupla Glenda Nicácio e Ary Rosa, aqui, abordando em uma atmosfera teatral, em um único ambiente, um momento decisivo para o Brasil e para uma família em reencontro. Também da Bahia, serão exibidos os documentários “Rio de Vozes”, de Andrea Santana e Jean Pierre Duret, impactante relato acerca da urgência na preservação do Rio São Francisco; e “O Amor Dentro da Câmera”, de Jamile Fortunato e Lara Belov, que presta uma bela homenagem ao amor de décadas e à vida em parceria que tiveram Orlando e Conceição Senna.
Dentre os curtas metragens, destaque para “O Barco e o Rio”, trabalho amazonense que aborda uma relação familiar conturbada e com anseios de fuga; “5 Fitas”, filme de Heraldo de Deus e Vilma Martins a pintar belo retrato de uma religiosidade que resiste ao tempo nessa Bahia que vai perdendo raízes, e “Ventania no Coração da Bahia”, de Tenille Bezerra, documentário sobre a festa de Iansã. Dois filmes que trazem um retrato baiano de um período que parece ter sido há muito tempo, mas que se anseia por ter de volta. E, ainda, há alguns filmes que já foram aprofundados em resenhas e entrevistas aqui no Scream & Yell, como “Dorivando Saravá – O Preto que Virou Mar” (entrevista com o diretor Henrique Dantas), “Inabitável” (entrevista com os diretores Enock Carvalho e Matheus Farias) e “Vil, Má“, de Gustavo Vinagre, apresentado no 28º Festival Mix Brasil.
A cineasta, atriz e escritora Conceição Senna, falecida em 2020, é a homenageada dessa edição do Panorama. Para Cláudio, a importância da homenagem traz em seu peso um reconhecimento do legado deixado por ela e a importância desse mesmo legado para as novas gerações. “Conceição faz parte de uma geração muito corajosa. Hoje, temos dificuldades imensas, mas já conhecemos muitos caminhos já trilhados anteriormente. Temo que a nova geração não reconheça a importância dos que estão indo, nos deixando. É um problema agudo em nosso país: a falta de memória e reverência aos que já tanto lutaram. Conceição, ainda por cima, sofreu os obstáculos por ser mulher. Atriz, diretora, apresentadora, dona de um sorriso belíssimo, uma gana de vida incomensurável! Fica aqui o nosso respeito e gratidão por ela!”, celebra Cláudio.
Com o incentivo da Lei Aldir Blanc, votada e aprovada graças aos esforços da oposição na câmara e senado federal, o festival pôde acontecer nesse começo de 2021. “A Lei Aldir Blanc trouxe um respiro fundamental em tempos muito difíceis. Além de trabalho, trouxe possibilidade de sobrevivência para todo um setor severamente ameaçado. Sobre o futuro? Sou e tenho que ser otimista até como forma de sanidade mental. Os editais são formas importantes, mesmo que imperfeitas, de democratizar o acesso aos recursos. Eles precisam de continuidade e regularidade, precisam ser anuais, algo que nunca aconteceu na Bahia, por exemplo”, alerta Cláudio.
O Panorama segue divulgando uma produção feita no Brasil e no mundo em curtas e longas metragens. Segue discutindo o Cinema. E o mais importante: segue resistindo em um período em que o Cinema, a produção cinematográfica e a indústria cultural têm sua importância e relevância questionada por ineptos que “nos governam”. Nessa entrevista ao Scream &Yell, Cláudio Marques aprofunda a experiência de realizar junto com sua equipe o Panorama em sua versão virtual 2021. Confira o papo.
Toda a programação do festival será disponibilizada gratuitamente no site. Para ter acesso, você só precisa se cadastrar! Os filmes serão disponibilizados conforme a programação diária e poderão ser assistidos durante as 24 horas do dia: xvi-panorama.coisadecinema.com.br
Como todos os festivais que estavam programados para acontecer no segundo semestre de 2020, o Panorama também precisou se adaptar ao formato digital. Para você, quais os desafios atrelados a essa adaptação? Acompanhar outros eventos que aconteceram no mesmo formato te ajudou a organizar essa edição?
Transpor o Panorama para o formato mobilizou outras estratégias e sentidos. Primeiramente, passamos a lidar com um território muito mais amplo. E isso tem tanto um lado positivo quanto desafiador. Se antes o Panorama era um festival para o público baiano, agora ele se torna um evento nacional e pode alcançar pessoas em todo o território nacional, desde que elas tenham computador ou celular e uma boa internet. Se antes não nos importávamos tanto se o filme que queríamos exibir já tinha sido programado em festivais em outros estados, no formato virtual, o ineditismo ganhou um peso maior. O público dos festivais se tornou um só! Além disso, tivemos que aprender toda uma tecnologia de exibição online a que não estávamos habituados, e tudo isso em pouco tempo. Outro grande desafio é a quantidade de eventos. Tem muito coisa acontecendo no mundo virtual. Eventos e cursos de outros estados tornaram-se acessíveis sem que fosse necessário sair de casa. Graças a Lei Emergencial Aldir Blanc as pessoas estão produzindo em tempos difíceis. Mas há um receio de que o pouco tempo que a lei exige para a realização dos eventos crie uma concentração muito grande e pouca adesão às atividades. Enfim, é preciso chegarmos ao fim desse período para entender. Seria bom que os eventos pudessem ser melhor distribuídos ao longo do ano. E quanto à última questão, sim, os eventos que conseguiram realizar primeiro foram muito importantes. Eles foram os pioneiros e apontaram caminhos e desafios.
O Panorama acontece esse ano com o suporte da lei Aldir Blanc, votada a partir de um esforço da oposição na câmara e no senado em buscar um suporte para os profissionais de cultura no difícil período da pandemia. É um exemplo claro da função do Estado como fomentador das artes, mesmo que o atual governo discorde. Você é otimista quanto ao futuro das atividades artísticas sendo realizadas através do suporte de editais?
Exato, a Lei Aldir Blanc trouxe um respiro fundamental em tempos muito difíceis. Além de trabalho, trouxe possibilidade de sobrevivência para todo um setor severamente ameaçado. Sobre o futuro? Sou e tenho que ser otimista até como forma de sanidade mental. Os editais são formas importantes, mesmo que imperfeitas, de democratizar o acesso aos recursos. Eles precisam de continuidade e regularidade, precisam ser anuais, algo que nunca aconteceu na Bahia, por exemplo. Mas para que esse otimismo cresça, é preciso uma grande mudança, é preciso eleger um governo que trate cultura e educação como prioridades.
Com meses de cinemas fechados, festivais se adequando a esse formato digital, para você, há esperança de um dia, ao menos, nos aproximarmos de um nível de “normalidade” que tínhamos antes no que se refere ao frequentar salas? Claro que existem eficientes protocolos sanitários e, mesmo lentamente, a vacinação seguindo em frente. Mas, para você, como será esse consumo de entretenimento daqui para a frente?
O impacto da pandemia é tremendo na forma como consumimos as obras. O streaming cresceu de uma maneira impressionante no último ano. Hoje, filmes de diretores que antes ansiavam as salas de cinema estreiam diretamente na internet. Acredito que muitas salas de cinema não vão resistir e, infelizmente, irão fechar. Mas a sala de cinema como espaço privilegiado de fruição das obras irá sobreviver. Porque a experiência da sala de cinema é única, é incomparável, e perdê-la deixaria esse mundo mais pobre e mais triste.
Como um dos curadores do Panorama, qual sua impressão acerca das produções vistas durante o processo de seleção?
Senti que recebemos menos ficções, esse ano. Achamos, ainda, que se trata de um efeito provocado pelo represamento das obras em escala mundial. Produtores e diretores aguardam que voltemos ao “velho anormal”. Temi que já fosse um reflexo da desordem provocada por Bolsonaro, mas creio que sentiremos isso, mais fortemente, a partir do ano que vem.
O Panorama presta homenagem a Conceição Sena, cineasta, escritora, atriz e roteirista baiana, falecida em 2020. Conceição vem de uma geração formadora de uma importante cinematografia no estado. Para você, qual o legado de Conceição para a geração atual e futuras dentro do fazer cinematográfico?
Conceição faz parte de uma geração muito corajosa. Hoje, temos dificuldades imensas, mas já conhecemos muitos caminhos já trilhados anteriormente. Temo que a nova geração não reconheça a importância dos que estão indo, nos deixando. É um problema agudo em nosso país: a falta de memória e reverência aos que já tanto lutaram. Conceição, ainda por cima, sofreu os obstáculos por ser mulher. Atriz, diretora, apresentadora, dona de um sorriso belíssimo, uma gana de vida incomensurável! Fica aqui o nosso respeito e gratidão por ela!
É um símbolo de resistência, também, ver o Panorama 2020 acontecer em sua décima sexta edição em 2021. Após tantos anos levando o festival ano a ano para a frente, e tendo essa adaptação crucial para essa edição, você também tem a mesma opinião quanto a esse aspecto simbólico?
Sim, estamos vivos! E estamos contentes por nos mostrar, revelar um pensamento e uma paixão contínua pela arte, pelo cinema, pelo pensamento. Vamos sobreviver, vamos continuar criando, nos adaptando, mas também lutando pelo que nós acreditamos.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.