entrevista por Bruno Lisboa
O punk é um dos maiores movimentos políticos da história da música, pois por décadas têm trazido à tona discussões importantes quanto aos rumos da humanidade, mostrando a quão necessária e importante é a articulação entre a arte e mobilização social. Mas apesar de sua importância histórica, à nível mundial, o movimento punk e seus desdobramentos careciam de um estudo que reunisse num só lugar o que vem sendo difundido em fanzines, livros, shows, grupos e discos. E foi a partir desta premissa que nasceu o Punk Scholars Network.
Fundado em 2012 no exterior, o PSN tem como intuito estudar, de forma aprofundada, o movimento punk de maneira global na esfera acadêmica. Mas o Brasil, que sempre teve uma cena punk forte e importante, seguia com parcos exemplos de estudos aprofundados do gênero. Para suprir esta lacuna foi criada no ano passado a Punk Scholars Network Brasil. O grupo é composto por mais 20 pesquisadores e vem desde 2020 realizando diversas atividades. Para o final de janeiro, inclusive, o PSN irá realizar seu primeiro seminário. Para saber mais sobre a iniciativa, acompanhar a programação e se inscrever para o evento acesse o site.
A coordenação do Punk Scholars Nacional é feita pelo doutor em Ciências Sociais João Bittencourt, que lançou em 2015, via editora Annablume, o livro “Sóbrios, Firmes e Convictos: Uma Etnocartografia dos Straightedges em São Paulo”, onde capta de forma viva aspectos essenciais que ajudam a mergulhar e compreender o universo dos, straightedges, uma subcultura e subgênero do hardcore punk que surgiu nos anos 80, da capital paulista. Além disso, João é vocalista da banda de hardcore Mercado Negro, formada em 1998 em Maranguape, uma cidade cearense da região metropolitana de Fortaleza, localizada a 27 km da capital.
Na conversa abaixo, João Bittencourt fala sobre as agruras da pandemia, o processo de escrita de “Sóbrios, Firmes e Convictos”, a cultura straightedge na atualidade, o início da sua relação com o movimento punk, a Punk Scholars Network e os desafios inerentes a iniciativa, a carência de referências bibliográficas nacionais, o discurso reacionário presente na cena punk, a cena latina, planos futuros e muito mais. Confira!
Tradicionalmente aqui no S&Y temos aberto as entrevistas falando sobre a pandemia. Então, nesse sentido, como ela tem sido para você? Quais as transformações da sua rotina como pai, esposo e professor foram alteradas?
Primeiramente gostaria de agradecer a você, Bruno, e ao site Scream & Yell pelo convite. É sempre um grande prazer poder conversar e divulgar nosso trabalho para um público mais amplo, para além dos muros da universidade. Bom, a pandemia foi (e está sendo) um evento que marcou profundamente a minha vida nos mais diversos sentidos, particularmente devido a dois episódios bem significativos: a recuperação da minha esposa, que ficara na UTI entubada por 16 dias e, mais recentemente, a perda de meu pai. Quando a pandemia eclodiu, estava em Fortaleza iniciando minha licença capacitação, onde ministraria um curso com uma colega da Universidade Federal do Ceará. Com o cancelamento das atividades presenciais na universidade, voltei às pressas para Maceió. Minha rotina foi fortemente impactada. Eu e minha esposa tivemos que ser bem criativos nesses últimos meses para lidar com o isolamento e o distanciamento social, especialmente em relação a nossa filha, que tem apenas 6 anos. De uma hora para outra ela se viu privada de ir para a escola, de encontrar os amiguinhos, de passear no parque… Se para um adulto é uma situação perturbadora, imagina para uma criança? Nas primeiras semanas, ficamos mais juntos, inventando brincadeiras, vendo filmes, desenhando, mas depois fomos saindo de casa aos poucos (sempre com muito cuidado) para andar de bicicleta, de patinete ou simplesmente caminhar. Nos revezávamos entre os turnos para poder trabalhar um pouco. Nesse tempo, ministrei alguns cursos, participei de algumas lives, finalizei um livro que estava organizando, fundei a PSN Brasil, e isso tudo à distância. Como professor, eu somente não encontrava pessoalmente os(as) estudantes, mas continuei com as reuniões de meu grupo de pesquisa, o Labjuve, com as orientações a nível de graduação e pós, reuniões de departamento, etc. Algumas pessoas acham que professor só trabalha em sala de aula, mas posso dizer que o ritmo nessa pandemia foi ainda mais puxado porque a impressão era de que estava disponível a todo instante, fora a obrigação moral de mostrar que estava fazendo algo.
Lançado em 2015, em seu livro “Sóbrios, Firmes e Convictos” você promove um olhar cuidadoso e detalhado da cena straightedge de São Paulo. Como se deu o seu interesse pelo tema e quais foram as principais dificuldades (e prazeres) desta pesquisa?
Esse livro é resultado de uma pesquisa que desenvolvi juntamente ao programa de Doutorado em Ciências Sociais da Unicamp. Desde muito jovem sou ligado à música underground, especialmente ao Punk/Hardcore, seja como membro de banda, organizador de evento, idealizador de fanzine, etc., mas até então não tinha trabalhado com esse tema em minhas pesquisas. Na época que antecedeu o doutorado estava muito próximo do universo straightedge e certamente isso me influenciou. Havia muitas questões nesse estilo de vida que despertavam meu interesse, como por exemplo o fato de jovens serem atraídos por uma proposta pautada por regras de abstinência, seja em relação ao consumo de drogas ou produtos de origem animal. Grande parte das chamadas “culturas juvenis” renegam noções como disciplina e controle, conceitos que aparecem na fala dos straightedges como estruturantes de seus ideais. Essa questão, do ponto de vista antropológico, já permitiria uma excelente discussão, mas, conforme fui adentrando nesse microcosmo, outras questões foram surgindo: as diferenciações de gênero, as conexões com as diferentes religiões, as pautas políticas, etc. Acredito que as dificuldades ficaram mais circunscritas às questões de ordem teórico-metodológica, dialogava muito com autores da chamada filosofia francesa contemporânea e ao mesmo tempo tinha que fazer essa costura com a teoria antropológica. No inicio “apanhei” um pouco, mas depois de algum tempo, a coisa fluiu bem. Não encontrei nenhuma dificuldade na pesquisa de campo, pelo contrário, todas as pessoas que me aproximei para conversar foram bastante receptivas. Conhecia algumas e elas me apresentavam outras, e assim ia estendendo a minha rede de interlocutores(as). Realizei 20 entrevistas profundas e dezenas de incursões etnográficas em diferentes espaços e situações. Era sempre muito prazeroso estar nos eventos, conversando com eles(as), cantando junto, só evitava ficar próximo do moshpit porque era arriscado (risos). Fiquei muito contente com o resultado e tenho bastante orgulho dessa produção! Muitas pessoas de dentro e fora da academia (especialmente straightedges) me escrevem para dizer o quanto gostaram e que indicaram a leitura para pessoas próximas, me marcam em postagens de instagram. (risos). No final das contas é isso que faz feliz um autor, a receptividade do público.
A cultura straightedge está inserida dentro movimento punk como uma das várias facetas que o estilo adotou no decorrer dos anos e que segue em constante transformação. Fazendo um recorte do período de sua pesquisa até os dias atuais, quais as principais mudanças você tem observado no meio?
Essa é uma ótima questão. Tenho me perguntado muito sobre o futuro do straightedge no Brasil. Tivemos um período áureo que perdurou entre a segunda metade da década de 90 até a primeira década do século XXI, mas depois houve um arrefecimento, um movimento que considero “natural” se tratando de estilos de vida jovem, fenômeno que vai mudando a partir das alterações nos ciclos geracionais que expressam o contexto social, econômico, político e cultural de uma época. O straightedge no Brasil se popularizou em um momento sui gêneris, tivemos a chegada da MTV – e posteriormente a internet – nos lares brasileiros e a expansão do mercado de bens simbólicos voltados para o público jovem. Naquele momento houve uma espécie de “monopolização” do gosto juvenil pelo rock em suas diferentes vertentes. Com as mudanças na formação do gosto e nos estilos de vida decorrentes da popularização da internet (mas não apenas) e a entrada dos jovens no universo adulto, assistimos a mudanças significativas nas maneiras como estes se relacionam com o straightedge. Os mais velhos, apesar de continuarem conectados a esse estilo de vida não sentem mais a necessidade de expressar publicamente sua vinculação, e os mais novos, por sua vez, sem a influência dos mais velhos, acabaram perdendo as referências. A transmissão geracional é fundamental para a duração de um estilo de vida jovem e essa troca ocorre mais intensamente quando as cenas estão ativas. Minha hipótese é de que atualmente o rock deixou de ser um elemento importante na formação dos estilos de vida jovem como foi nos anos 80 e 90. As pesquisas sobre o que os brasileiros estão ouvindo a partir dos algoritmos das plataformas de streaming são um bom termômetro para avaliarmos essas mudanças. O jovem de hoje prefere o rap, o funk, o trap, a música pop de artistas como Pabblo Vittar e Anitta. As pautas identitárias também entraram com toda força nesse novo cenário. A representatividade mediada por marcadores como raça, gênero e sexualidade dos(as) artistas passou a ter um lugar de destaque na transmissão das ideias. As mudanças no straightedge estão conectadas a todas essas questões elencadas acima. Se quisermos fazer uma análise mais profunda do fenômeno, devemos entender as transformações estruturais mais amplas e como elas repercutiram nos estilos de vida jovem. Conversei um pouco sobre esse tema com o Pedro Carvalho (Futuro, I Shot Cyrus) numa live que fiz no instagram da Punk Scholars Network Brasil no final do ano passado. Espero poder aprofundar essas reflexões em duas pesquisas sobre straightedges que pretendo desenvolver futuramente; uma sobre envelhecimento, onde retomarei o diálogo com as pessoas que fizeram parte da pesquisa do doutorado, entre 2007 e 2010 e outra sobre o straightedge em nosso atual contexto, buscando analisar as rupturas e continuidades em relação a primeira geração. Prometo divulgar os resultados das pesquisas assim que elas tiverem prontas.
Falando em punk rock, como se deu a sua aproximação com o gênero? E ainda: quais foram os impactos político/socais produzidos na sua vida a partir do momento em que você se tornou um pesquisador?
Se não fosse pelo punk, eu não seria cientista docial! Digo isso em minhas aulas e os(as) estudantes não acreditam. Acham que estou brincando (risos). Mas é sério! Quando digo “punk” não me refiro necessariamente à música, mas principalmente as ideias. Sempre fui ligado a uma literatura mais crítica, e não tinha essas referências em casa, na escola ou entre os amigos, elas me foram apresentadas a partir das músicas que ouvia. Antes de chegar à universidade já tinha lido “1984” (Orwell), “Admirável Mundo Novo” (Huxley), “Ética e Cidadania” (Herbert de Souza), “Tortura Nunca Mais” (Paulo Evaristo Arns), “Violência no Campo” (Júlio José Chiavenato), “O que é Punk” (Bivar) e outros livros da coleção Primeiros Passos. O Cólera me fez ter interesse pelas questões ambientais, o RATM me apresentou o zapatismo, os Panteras Negras, o RDP me ajudou a desnaturalizar a violência policial… Me aproximei definitivamente do punk na segunda metade dos anos 90, antes disso ouvia rock genérico, de Titãs à Iron Maiden. Ganhei o vinil “Sub” do meu irmão e fiquei impactado com aquela sonoridade e aquelas letras: RDP, Cólera, Fogo Cruzado e Psykoze foram as primeiras. Depois vieram Olho Seco, Garotos Podres, Devotos do Ódio e logo em seguida bandas estrangeiras como The Clash, Black Flag, Bad Religion, entre outras. Foi nesse momento que montei a Mercado Negro com meu irmão e outros dois amigos. Então começamos a participar mais intensamente do circuito das bandas undergrounds cearense. Tocávamos em algumas gigs organizadas por coletivos anarcopunks e em alguns festivais de protesto que aconteciam em Fortaleza. Até o final da graduação conseguia me dividir entre os estudos e a música, mas com a chegada do mestrado, precisei sair do estado e a banda passou a se reunir somente nas minhas férias. No Doutorado consegui me reconectar ao punk hardcore através dos estudos, mas a banda continuou de molho. Mais recentemente voltamos a ativa, porém, só nos encontramos para ensaiar quando consigo ir de férias para o Ceará. Tenho um colega estadunidense chamado Zack Furness. Ele foi o responsável pela criação do termo “Punkademic” para classificar as pessoas profundamente ligadas ao punk que acabaram enveredando para a docência e pesquisa. Eu digo que sou um punkadêmico, não somente porque pesquiso esse tema, mas porque compartilho de uma ética punk que influencia diretamente as relações que desenvolvo nos espaços da universidade.
Fundada em 2012 no exterior, a Punk Scholar Network tem promovido uma série de atividades voltadas a reflexões direcionadas a cultura punk mundo à fora. Nesse sentido como se deu a aproximação e criação da versão brasileira da PSN?
O contato com a Punk Scholars foi uma das coisas mais legais que aconteceram no ano passado. Foi tudo muito rápido. Já acompanhava a página no Facebook e achava incrível. Quando vi a divulgação do Seminário Global Punk resolvi escrever para os contatos que estavam no site e perguntar se havia algum processo de filiação. Eles ficaram muito contentes de receber o meu e-mail e perguntaram se eu não tinha interesse em fundar uma célula da PSN no Brasil. Achei o máximo! Matt Grimes e Russ Bestley, dois dos coordenadores, foram muito receptivos! Se colocaram a disposição para o esclarecimento de todas as dúvidas que foram surgindo no processo. Assim que recebi a carta oficial de filiação por e-mail fiz uma chamada pública convidando pesquisadores e pesquisadoras que trabalhavam com o tema do punk para compor a rede. Temos um grupo bastante engajado de aproximadamente 20 pessoas e no final do mês de janeiro faremos nosso primeiro seminário.
A PSN tem como nobre missão levar a cultura punk para ambientes que não lhe são tradicionais, dando lhe a atenção e profundidade necessárias. Mas acredito que este não seja exercício dos mais fáceis. Quais são os maiores desafios inerentes a esta proposta?
Penso que o maior desafio é fazer com que vejam o punk como algo sério, que merece e deve ser estudado como um fenômeno complexo. Nos EUA e em grande parte da Europa existe uma tradição do pensamento, especialmente nos Estudos Culturais que valorizam esse tipo de manifestação. Os estudos subculturais desenvolvidos pelo CCCS (Centre for Contemporary Cultural Studies) na Universidade de Birmingham na década de 70 são a prova disso. Eles têm uma produção gigantesca sobre punk, skinhead, góticos, etc. Nas universidades brasileiras há certa predileção em torno de determinados temas e consequentemente a desqualificação de outros, então os desafios para divulgar esses trabalhos entre os pares são bem maiores. É difícil encontrar programas de pós-graduação com linhas de pesquisa que abarquem esses temas e mesmo docentes que se proponham a orientar dissertações e teses. A questão da língua também é um obstáculo a ser transposto. Poucas pessoas no país falam fluentemente o inglês ou mesmo conseguem ler um texto, o que dificulta uma troca mais intensa entre a produção daqui e aquela produzida lá fora.
O movimento punk brasileiro tem uma longa trajetoria, com vários vieses e desdobramentos. Mas salvo o clássico livro do Antônio Bivar (“Punk”) e algumas biografias como a da Clemente (dos Inocentes) e a do João Gordo (feita pelo André Barcinski), o mercado editorial brasileiro carece de uma bibliografia mais vasta sobre o assunto para o grande público. Para você, por que o mercado editorial ainda não se tem um olhar para com a cultura punk?
Como disse anteriormente, há uma predileção por certos temas nas universidades e nas editoras e o punk não é um deles. Como você mesmo citou, temos pouquíssimos livros, que dá para contar nos dedos. Livros acadêmicos só temos o da Janice Caiafa (“O Movimento Punk na Cidade”), o da Márcia Regina da Costa (“Os Carecas do Subúrbio – Caminhos de um Nomadismo Moderno”), o do Nécio Turra (“Enterrado Vivo: Identidade Punk e Território em Londrina”) e o meu (“Sóbrios, Firmes e Convictos – Uma Etnocartografia dos Straightedges em São Paulo”). Pelo menos são os que conheço. Se existirem outros, por favor me avisem. Temos também algumas dissertações e teses sobre o tema, mas que não foram publicadas. Quem sabe a PSN Brasil não consegue virar essa página? Estamos trabalhando na produção de um livro, que provavelmente será publicado esse ano ou no começo do próximo.
Historicamente quando se observa o movimento numa escala global se percebe que em cada canto do mundo o punk adquiriu características próprias, fruto da relação com a realidade local. Numa das conferências programadas para o PSN Brasil o punk colombiano será analisado por Minerva Campion. Pensado na América Latina, de modo geral quais são as idiossincrasias quem unem nossas cenas?
Nos últimos anos tenho pensado muito sobre a descolonização do punk como proposta teórico-política. As referências do punk que chegaram aqui inicialmente vieram da Europa, especialmente da Inglaterra. Apesar de existir um diálogo com os países da América Latina, o punk nacional sempre foi muito mais influenciado esteticamente e musicalmente pela Europa (na academia é a mesma coisa) (risos). Apesar de sermos um dos poucos países latino americanos que não tem o espanhol como língua materna, partilhamos dos mesmos problemas econômicos e políticos. A começar pelo processo de colonização, que trouxe a reboque o extermínio das populações indígenas e a exploração de nossas riquezas naturais. “Filhos bastardos de um estupro sagrado e paternal…”, como diz a letra de “Latinoamérica”, do Flicts. No século XX presenciamos a ascensão de governos totalitários quando tivemos as mais sangrentas ditaduras da história. Todos esses acontecimentos nos unem enquanto povos que compartilham de uma história comum, apesar das diferenças culturais e linguisticas. Penso que as cenas punks dos países latino americanos também guardam muitas semelhanças do ponto de vista dos desafios enfrentados para produzir e fazer circular sua música, como também compartilham do mesmo espírito combatente para resistir as dificuldades. Será ótimo ter a Minerva como conferencista no Seminário da PSN Brasil, pois ela irá trazer elementos históricos sobre a cena colombiana que nos permitirá conhecê-la um pouco melhor, como também apontar semelhanças e diferenças entre os dois países. Atualmente o punk latino americano está se reinventando, olhando muito mais a sua história e incorporando elementos da cultura local em suas produções e isso é incrível.
O discurso reacionário hoje se faz largamente presente no ideário nacional e na cultura punk não é diferente. Como estudioso, como você analisa esta anomalia cultural, onde se percebe uma desvirtuada guinada a direita do espectro político?
Como apontei anteriormente, o punk precisa ser analisado enquanto fenômeno complexo e multifacetado. Ele absorve as mudanças e tendências que se apresentam na vida social mais ampla. O “punk de direita”, conservador, reacionário, não é uma invenção dos últimos meses, ele está entre nós há mais tempo do que se imagina. O punk não era político em sua origem, posteriormente o anarquismo tornou-se uma pauta comum entre os adeptos, do mesmo modo, o skinhead não era um movimento fascista em sua origem, mas acabou se tornando mundialmente reconhecido por sua ligação com os movimentos de extrema direita. O que estou querendo dizer é que essa contradição sempre fez parte da cultura punk de uma maneira geral. Um exemplo que sempre destaco é a utilização da suástica por parte de alguns punks como forma de “chocar a população”. Sid Vicious costumava se apresentar com esse símbolo estampado em sua camiseta. Mais recentemente John Lydon (Johnny Rotten) apareceu vestindo uma camiseta com o slogan “Make America Great Again” e defendeu a reeleição do Trump. E o mais curioso: ele utilizou o mesmo discurso anti-política, antiestablishment que já aparecia nas letras dos Sex Pistols nos 70. No Brasil, punks pichavam a suástica nos muros e as desenhavam e em cadeiras e mesas da escola onde estudavam. A antropóloga Janice Caiafa discute essa questão no livro “Punks na Cidade”. Outro exemplo: a xenofobia direcionada a população nordestina esteve presente entre os punks de São Paulo ao longo dos anos 80 (e não apenas entre skinheads). Naquele momento, o “nordestino” se apresentava como um bode expiatório para grande parte da população. Ele não só era acusado de roubar empregos, mas também de provocar o aumento dos bolsões de miséria e consequentemente o aumento da violência. Os indivíduos punks não estavam alheios a esse discurso porque suas maneiras de pensar e agir eram produzidas por relações sociais estabelecidas naquele espaço e contexto. Claro que isso não era um consenso entre os jovens, uma pauta abraçada coletivamente, mas esse discurso estava presente nos diversos setores da sociedades, das elites às classes populares. Do mesmo modo, entendo que essa guinada à direita no contexto contemporâneo não seja um fenômeno expressivo dentro da cena punk, longe disso. De todo modo, é importante destacar que endossar posturas niilistas, “antisistema”, antipolítica (como se isso fosse possível), sem uma contextualização e reflexões mais profundas pode colaborar para o aparecimento de ideias desvirtuadas, especialmente em tempos de redes sociais. Nos últimos anos tornou-se “cool” decretar a morte da política e das instituições, o que permitiu a ascensão de figuras execráveis como Trump e Bolsonaro. É preciso ficar atento! Combater posturas reacionárias e sectárias é um dever de todos, todas e todes que fazem parte de qualquer cena punk.
Por fim, 2020 tem sido um ano de enormes desafios e, ao que parece, 2021 não será diferente. Nesse sentido falar sobre planos e perspectivas futuras pode ser um exercício hercúleo, mas quais são as projeções para o ano vindouro?
Definitivamente não tenho muitas esperanças de que esse ano será muito diferente do anterior, mas espero estar errado. Primeiramente, desejo que essa vacina venha de onde vier e que a população seja imunizada para que possamos retornar a nossa rotina sem medo de encontrar e de abraçar pessoas. Mas falando de projetos que estão mais ao meu alcance nesse momento, pretendo colocar alguns em prática, mesmo que inicialmente a distância. O primeiro já saiu do papel, que é o seminário da PSN Brasil que acontecerá agora no final de janeiro, especificamente nos dias 27, 28 e 29. Também estou trabalhando na organização de um livro sobre punk com outro colega da PSN, que deve ser publicado até o final de 2021 ou início de 2022. Faço parte de uma outra rede, a REAJ, que é formada por pesquisadores e pesquisadoras das diferentes regiões e instituições do país que se dedicam a reflexão sobre o fenômeno da juventude. Acabamos de publicar um livro pela Editora Telha chamado “Juventudes Contemporâneas – Desafios e Expectativas em Transformação” e pretendemos fazer o lançamento nos próximos meses. Estamos trabalhando na organização de um seminário internacional (online) que acontecerá no mês de abril. Também tenho alguns dossiês em revistas especializadas que deverão ser publicados ao longo de 2021. No mais, acho que do ponto de vista de trabalho, é isso. É muito difícil projetar coisas em um contexto político tão incerto e bizarro. Mas, a gente segue resistindo.
– Bruno Lisboa é redator/colunista do O Poder do Resumão. Escreve no Scream & Yell desde 2014.